sábado, 24 de setembro de 2011

A FÊNIX BREJEIRA – MANEZIN VAQUEIRO


A FÊNIX BREJEIRA – MANEZIN VAQUEIRO

Enoque Alves Rodrigues


Na década de 1960, mesmo com a crise, as visitas aos principais pontos turísticos mais importantes do Velho Brejo das Almas, ou Francisco Sá, “beldade do norte de Minas”, fervilhavam-se. Uma das atrações turísticas mais visitadas era a antiga e histórica Lagoa das Pedras. Para lá, convergiam-se multidões, vindas de quase todas as localidades e se aportavam às suas margens, onde passavam dias e noites se divertindo com a gama infinita de lazer que ali existia.
Águas claras e cristalinas onde se via, nitidamente, várias espécies de peixes, hoje inexistentes, nadando ao fundo. Ovinos, bovinos, caprinos, suínos e outras criaturas do mundo animal domesticado, misturavam-se a outros animais, do mundo racional civilizado, cada qual consumindo, engolindo inteiro, mastigando e ruminando, de acordo com o que determinam suas respectivas cadeias alimentares.
Canoas a remo, barquinhos com e sem motores, transportavam os homens “de coragem” até o meio da lagoa, cuja profundidade, diziam não ter fim. As mulheres com suas crianças de colo palestravam sentadas à beira da Lagoa com seus pezinhos delicados levemente mergulhados na água rasa, enquanto que seus pimpolhos, mais crescidinhos, cavalgavam sobre pôneis nativos ou brincavam de tourear algum bezerrinho recentemente desmamado. Os mais traquinas brincavam de caçar com bodoque, juritis, pombas amargosas, codornas, rolinhas e outras avezinhas silvestres.
Famílias abastadas de Montes Claros, Grão Mogol, Salinas e até mesmo de “Belzonte”, Capital das Alterosas, faziam dali seu habitat natural. Muitas chegavam ao ponto de fixarem suas residências naquelas imediações e de lá não arredavam pé de forma alguma. Usufruíam dos confortos que a grana lhes proporcionava naquele Rincão Paraiso, enquanto que muitos de nós, Brejeiros autênticos, nascidos nos arrabaldes ou com os dois pés cravados num brejo qualquer de lá, apenas nos conformávamos em  vê-los se divertirem. Era tudo que nos restava. Naqueles tempos assim como é hoje, amanhã e para todo o sempre, amém, a nata do leite jamais se deixou misturar com o soro. O máximo que nós, soros, conseguíamos, era como já disse, observar, discretamente, a nata em sua diversão.
- Uai, e a quem pertencia a Lagoa das Pedras?
- A nós, Brejeiros, uai!
Também íamos lá, claro. Mas somente quando não se achavam os ricos. Sim, porque eles nos olhavam com desdém. Agiam em relação a nós que não fruíamos de seus “status quo” como se fossemos Cidadãos de segunda classe. Desprezavam-nos em nosso próprio território. Nada podíamos fazer. Eles aportavam riquezas ao erário de Francisco Sá. Eles faziam a máquina pesada da Administração Municipal girar, ao passo que nós, povinhos simples, apenas produzíamos algumas migalhas que em nada impactavam de relevante.
É possível que muitos dos meus conterrâneos que neste momento se encontram lendo as bestagens que escreve esse reles genérico de escritor, se lembrem, com saudades daquelas tardes e manhãs domingueiras à beira da Lagoa das Pedras.
Manezin Vaqueiro era um desses pobres brejeiros, sem eira nem beira, que se contentava apenas em ver a nata bem sucedida se divertir. Timidez própria dos que “não souberam nascer”, vivia embrenhado nas matas adjacentes a Lagoa das Pedras, observando, sorrateiro, a pompa de seus desiguais. Os homens remavam enquanto sorriam deixando à mostra o ouro que cobria seus dentes bem tratados, que reluziam sob os reflexos lampejantes do Astro Rei naquela manhã primaveril.
De repente, grita uma voz de mulher:
- “Socorro. O Marquinho está se afogando... Tirem-no da água, pelo amor de Deus!” Á maneira que a mulher não obtinha resposta ao seu pedido de socorro, a criança se afundava e eram mais fortes e desesperadores os seus gritos de aflição.
Ao notar que nenhum daqueles “bem nascidos, bundas moles” se manifestavam, Manezin Vaqueiro  perdeu a timidez. Num gesto de bravura, coragem e destemor, imbuído do mais puro e elevado sentimento de amor ao próximo e solidariedade, independente de condição social, com habilidade e destreza peculiares a todos nós que nascemos na barranca do rio, jogou-se, de corpo e alma, nesta altura mais alma que corpo, nas águas profundas da Lagoa, só saindo de lá, minutos depois, com a criança quase desfalecida em seus frágeis braços. Foi aplaudido por todos que ali estavam pela sua coragem. Mas, matuto que é matuto, principalmente o brejeiro, não se deixa influenciar por endeusamentos fúteis.
Será?
À sua maneira, frente ao mulherio, carimbou, ali mesmo, a sua lição de moral, passando um tremendo sabão nos “bundas moles” que não tiveram coragem de lançarem-se ao rio.
- “Ocêis é uns riquin de merda qui num tem corage, porra niúma e qui borra as bota a cada peido... É muito fáci ficá ai si divertindo inquanto o minino afoga... De nada adianta ter esses barrigão cheio de cumida boa si nu curação de preda num tem nada. Ni um poquin de amô siqué... Eu divia era de cutucá ocêis cumia vara de tocagado prá vê se ocês se acorda... A cabeça docêis é cuma a cabeça de bagre, só tem b...”
Antes que Manezin completasse a frase, os “ricos bundas moles” corados de vergonha, no afã de sufocarem aquela descompostura matuta, na maior cara de pau, alçaram-no do chão e enquanto caminhavam com ele nos braços, gritavam, em uma só voz, a plenos pulmões, este refrão, aliás, próprio dos habitantes do Sudeste quando em aniversário.
- “E prá Manezin, nada?” Ao passo que outros gaiatos respondiam.
- “Tudo!”
- “E, então, como é que é?”
- “É!”
- É pique... É pique... É pique... É pique... É pique. É hora... É hora... É hora... É hora... É hora.  Ra... Tim... Bum... Manezin... Manezin... Manezin... Manezin.
Num misto de frustração pelo “abafo” de suas palavras agora inaudíveis aos ouvidos humanos, mas sentindo-se como se fosse a Fênix Brejeira que renascia das cinzas nos braços daqueles marmanjos vestidos do mais puro tergal, Manezim, agora, apenas sorria. Um sorriso amarelo e desdentado, é verdade, mas era um sorriso.
Não demorou muito para que os “riquin bundas moles” encontrassem o primeiro “infernin” mais próximo aonde “dispensaram aquela tralha”. Antes, no entanto, tiveram o cuidado de efetuar o pagamento antecipado de várias garrafas de “Chora Rita”. Ao saírem dali, deixaram ordens expressas e implacáveis à Margot, dona daquele fétido boteco de beira de estrada: “Segure esse tonto ai, Margot. Faça-o beber quantas garrafas de pinga forem necessárias. Não deixe que esse encosto vá à Lagoa encher o nosso saco. Não queremos que esse estorvo perturbe o nosso merecido sossego. Estamos cansados de não fazer nada. Nós precisamos nos divertir”.
É...
Por vezes, não é sem motivo que o velho adágio popular nos diz que quando a esmola é muito grande o santo deve desconfiar.
Enoque Alves Rodrigues, brejeiro de nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia, é Escritor com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil. Visitem meu blog: Pra variar, é sobre Francisco Sá: http://enoquerodrigues-earodrigues.blogspot.com/  http://www.facebook.com/profile.php?v=info&edit_info=all&ref=nur

terça-feira, 6 de setembro de 2011

SER BREJEIRO É... SUPERAR OBSTÁCULOS COM GALHARDIA

SER BREJEIRO É...  SUPERAR OBSTÁCULOS COM GALHARDIA
Enoque Alves Rodrigues
Março de 1964. O dia 31 que marcaria, literalmente, a ferro e fogo a vida de todos nós Brasileiros, se avizinhava. Falsos sentimentos de amor eterno pela Pátria Amada, Salve, Salve, enrustidos por detrás de vaidades pessoais e interesses mesquinhos e individualistas, levavam forças deletérias a aglutinarem-se em noites caladas, debaixo de sombras sorrateiras. Na marra, desiguais apeariam outros desiguais do Poder, lançando os menos favorecidos nos mais profundos e tenebrosos precipícios durante 20 anos. Não vale a pena detalhar aqui as consequências nefastas deste tresloucado gesto, que todos nós ainda hoje tentamos esquecer.
O certo é que, muito antes desse episódio, as coisas já não andavam muito bem pelas plagas que eu, quase infante, palmilhava com pés descalços. Aliás, as marés dos “mares de Minas” já não estavam mais para peixes há muito tempo. Crises de seca e fome grassavam o País de ponta a ponta. Numa dessas pontas, estava eu, um pirralho de onze anos, estávamos nós, e estava ele, o velho Brejo de todas as Almas, lá na pontinha das Gerais, se debatendo todo para saciar os desejos mais sublimes e elementares de seus filhos. A vida fluía difícil e lentamente. Por mais que se trabalhasse, claro, quando havia trabalho, a coisa não saia do lugar.
Não fosse a velha máxima que diz que “não há nada que de tão ruim não possa piorar”, poderíamos até afirmar que os efeitos desastrosos da Revolução, foram apenas mais uma ferida no corpanzil de um lazarento. Mas as coisas não são tão simples assim.
Dejanir de Cana Brava tinha plena consciência disso. Casado com Francisca, pai de seis filhos pequenos, labutava de sol a sol para conseguir o sustento parco daquela prole numerosa. Tivera ele todos os trinta anos de sua curta existência, forjados na bigorna cruel das mais difíceis necessidades de uma vida miseravelmente Severina. Vendia o almoço para comprar a janta. Trabalhava nas roças  de Zeca. Quando a lide no campo escasseava, recorria-se ao Gorutuba, de onde sempre voltava com alguns peixes. Agradecido, dizia sempre: “Meu Deus... O Gorutuba jamais me deixou na mão. O que será de mim se algum dia isso acontecer?”
Bem, como o Brejeiro aqui já mencionou nestas mal traçadas linhas, “as marés dos mares de Minas”  não estavam mesmo para peixes.  Sendo assim, o Gorutuba, coitado,  não estava nem mesmo para sapo. A seca atazanava a vida de todos nós matutos do Norte de Minas. Eu, apesar de à época contar apenas 11 anos, já não tinha mais cobras para puxar o rabo (roças para carpir) com uma velha enxada lá na Fazenda do “seu” Venúcios, onde defendia alguns trocados. Vem daí a minha obstinação pelo trabalho, fora do qual não vejo nenhuma outra forma de se realizar na vida. Mergulhei-me, então, na função de “retratista”. Com uma velha câmera kodac e rolos de  filmes branco e preto, tentava realçar a sofrível beleza brejeira de meus iguais, que apesar de serem feios de doer, como eu, queriam mesmo era ficar bem e bonitos na fita. Distantes estávamos  dos tempos atuais das câmeras de última geração e do photoshop que hoje, num passe de mágica, transforma gordos em magros, pretos em brancos, feios em bonitos e canhões oxidados pelo tempo, em reluzentes e turbinados boeng’s, aliás, difíceis de pilotar. É o progresso meu chapa.
A verdade, sem maiores delongas, é que o que o nosso amigo Dejanir mais temia, aconteceu. O rio Gorutuba começou a dar sinais de cansaço. O peixe que antes oferecia a Dejanir em abundância, agora não mais aparecia. Com o seu velho anzol com vara de bambu, e uma minhoca à ponta, ele ficava horas a fio sentado sobre um toco naquele barranco, à espera  que um pintado, uma gorda traíra ou na pior das hipóteses, um bagre enlameado surgissem. Mas, nada. Quando o desespero apertava, ele tentava se tranquilizar acedendo um cigarrinho de palha. Mas permanecia sempre plantado no mesmo lugar como se um arbusto fosse. À maneira que as horas avançavam ele se descabelava. E em suas lamentações amaldiçoava a tudo e a todos. Em seus queixumes olvidava-se que naquele mesmo lugar, no mesmo rio, houvera tirado durante todo o ano o seu sustento. E resmungava: “Capeta, que diabo está acontecendo com estes peixes?” “Antes eles vinham aqui aos montões e agora, nenhum!” “Será que deu veneno na cabeceira deste maldito rio?” “Cruz, credo...”
Mergulhado em sua própria inércia e muito mais preocupado com suas “desgracências”, sequer lhe ocorreu em algum instante mudar de lugar. Não havia notado que  a pouco menos de cem metros de distância dele, Antão do Catuni, precavido, prudente e motivado, calmamente retirava peixes e mais peixes do mesmo rio que ele segundos atrás amaldiçoara. De soslaio, entre uma baforada e outra, viu-o. Pôs-se estático. Nada conseguia entender. Em suas divagações inferiores só conseguia concatenar isso: “Desgraça, como é possível que Antão tão perto de mim consiga pegar tantos peixes em tão pouco tempo, enquanto que eu que estou aqui o dia todo não consigo pegar nem uma piabinha?”
Ai não teve jeito. A voz da consciência que até então se achava adormecida lá no fundão da cachola do caboclo brejeiro, não se conteve. Perdeu a paciência e compostura. Aos berros,  esbravejou: “Vai trabalhar, vagabundo! Saia dessa inércia inútil! Quem você pensa que é? Durante o ano todo você ficou ai sentado neste toco, e o rio, generoso, empurrou os peixes até você para que você os pescasse. Você no entanto se acomodou de tal forma que hoje não quer nem se dar ao trabalho de caminhar menos de cem metros para busca-los. É por isso que nós, digo, eu, que sou o seu Anjo da Guarda, que recebi a triste missão do Cara lá de Cima para lhe carregar nas costas, seu estrupício,  e Ele Próprio, decidimos que a partir de hoje, se você quiser levar algum peixe para casa terá que correr atrás. Você tem que sair daí. Esse toco já não lhe agüenta mais, cara. Você precisa caminhar um pouco e emagrecer, rapaz... Feio... Molenga...Careca...  Barrigudo... Preguiçoso... Te manca, meu... Cobra que não anda não engole sapo, sô!”
Convenhamos que o vocabulário chulo, próprio de nós, simples mortais, utilizado pelo Anjo da Guarda de Dejanir, estava há milhões de anos luz de distância do que se pratica nas esferas Angelicais mais elevadas. No entanto, foram as palavras certas no momento mais que oportuno. Foi a sacudida que Dejanir necessitava para, daquele dia em diante, seguir em frente, ir à luta com coragem, determinação e galhardia.
É...
Por vezes, quando até mesmo o nosso Anjo da Guarda perde as estribeiras, é porque a coisa entortou de vez e ai, meu nego, mexa-se. Vá em frente, senão jacaré te abraça.
Enoque Alves Rodrigues, Brejeiro de nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia há quarenta anos, é cronista, escritor com dois livros em fase de lançamento, historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil. Contatos: enoque.rodrigues@ibest.com.br; enoquerodrigues2010@hotmail.com. Visitem meu blog: http://enoquerodrigues-earodriguesblogspot.com/; http://www.facebook.com/profile.php?v=info&edit_info=all&ref=nur#!/profile.php?id=100000392634518