sábado, 31 de março de 2012

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ - TONICO LOPES

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – TONICO LOPES

Enoque Alves Rodrigues

Durante muitos anos o único acesso que qualquer ser vivente teria que utilizar para atravessar o Rio Verde Grande, na estrada que liga Montes Claros ao Brejo das Almas, ou Francisco Sá, era pela Fazenda de Tonico Lopes. Havia ali um ponto onde as águas eram baixas propiciando a passagem sem quaisquer dificuldades, de manadas de gado, além de servir de pouso de curta temporada para muitos vaqueiros e, nos tempos das colunas, de bandoleiros a caminho do Sertão.

Grande fazendeiro, Tonico Lopes era muito influente naquela localidade em tempos hoje já muito distantes. O Rio Verde atravessava ao meio toda a extensão de suas vastas e férteis terras, onde ele além de cultivar várias culturas como arroz, milho, feijão, algodão, cana de açúcar, alho e outras, ainda se dedicava a criação de gado de engorda com a qual abastecia os frigoríficos de toda a região. 

Casado com Lindalva com quem tinha quatro filhos labutava aquele grande brasileiro de sol a sol no sentido de prosperar a cada dia. Dotado de índole impecável e coração bondoso, colaborava com todos os transeuntes em passagem por suas terras. Nos períodos de chuva as cheias invadiam grande parte da Fazenda cuja Sede ficava no alto de um pequeno morro. O casarão da Sede funcionava naquelas ocasiões como a uma verdadeira “arca de Noé” porque todos os viajores surpreendidos pela elevação das águas não conseguiam seguir viagem e lá permaneciam até que as águas baixassem. Tonico Lopes a todos socorria sem pedir nada em troca.

Premido pelas circunstâncias, contemporâneo das maiores e mais importantes forças politicas regionais, não demorou muito e aquele sinuoso e íngreme caminho passou a receber as benfeitorias necessárias a sua adequação em prol dos transeuntes para que pudessem utiliza-lo sem riscos ou traumas.

Agora aquele mísero genérico de ponte estava finalmente de cara  nova. A coisa ficou muito bonita. Empedraram grande parte da estradinha que levava à Sede e tudo agora estava às mil maravilhas. Tudo dentro dos conformes. Tudo na paz do Senhor.
Será?

As coisas e as pessoas estão em constantes modificações. O que não está melhorando, está piorando. A vida não é estática, é dinâmica. E ela gira em torno de si própria numa velocidade assustadora que é impossível ao nosso cérebro e raciocínio acompanhar. Aí, como não conseguimos acompanhar, surgem a nossa frente, inicialmente pequenos hiatos que, à medida que não os ocupamos inteiramente, vão se avolumando e, de repente, em fração de segundos nos vimos diante dos mais difíceis e intransponíveis obstáculos já que estamos falando aqui de “estradas,” “pontes,” “acessos,” “passagem”, etc.

É oportuno e de salutar importância ressaltar que segundo estimativas  confiáveis feitas por quem entende realmente do riscado, aproximadamente 95% dos nossos dissabores são atribuídos a nós mesmos, principalmente por nossas incertezas. Quando na maioria das vezes pensamos termos certeza de alguma coisa, partimos para a ação precipitada, exatamente no momento mais inoportuno possível, quando o cavalo selado da vida de há muito já passou, ou sequer se aproximou ainda de nós, e assim, ao nos jogarmos, caímos, inevitavelmente, com os fundilhos no chão. Essas reações adversas acontecem, exatamente porque quase sempre, as nossas ações e atitudes são tomadas em cima dos nossos próprios egoísmos e de interesses mesquinhos. Não conseguimos pensar por muito tempo no coletivo. Já que deitamos, dormimos e acordamos com o nosso “eu” interior, claro está que é mais fácil pensarmos em nós mesmos. Quanto aos outros? Bem... Isto já é uma “outra história.” Não é comigo... Assovie... Olhe para os lados. Disfarça que lá vem gente. Os outros não são da nossa conta. Eles que se virem. Farinha pouca, meu pirão primeiro. Não é assim?

Ele começou a crescer os olhos. A mente dele, antes bem articulada, agora se achava em pandarecos. Pudera, deitava e não dormia. Qualquer coisa dava-lhe nos nervos. Agora a movimentação por suas terras era muito mais intensa. Ele precisava fazer alguma coisa. Tinha que tirar proveito daquela situação. Aquela agitação por suas terras poderia lhe render muitos dividendos. Mas como começar? Até ali jamais houvera lucrado um centavo sequer com isso. Puxa vida ele não havia pensado naquilo! Como foi capaz de ser tão tonto durante todo aquele tempo? Quanto dinheiro ele teria arrecadado se tivesse cobrado antes? Não, não cobraria nada. Teria que ficar como estava. Não lhe parecia justo cobrar de alguém que estava apenas em transito por sua fazenda até porque não havia outro acesso. Não se prevaleceria disso agora. Bem... Pelo menos, por enquanto. Talvez um dia, quem sabe. Estas indefinições por si só já são mais que suficientes para indicar que o caboclo está “balançando.” Que os dois “diabinhos” um do bem e o outro do mal (uai, existe diabo bom?) estão pelejando entre si lá dentro do coité do peão. Quando é assim basta um pequeno empurrãozinho que o sujeito capota. Pois foi o que aconteceu.

José Maquinista. Esse brejeiro foi o primeiro a dirigir um veiculo por aquela região. Era um FORD de bigodes. Ele não era o dono, era chofer e ás vezes conduzia também o Ministro Francisco Sá. Chegou ao anoitecer no casarão da sede da fazenda de Tonico Lopes naquela tarde chuvosa depois de haver atravessado o rio verde. Ele trazia em sua companhia um cunhado seu de nome Raimundo que vinha da Capital. Pernoitaram por lá. Na manhã seguinte o acesso que permitia a passagem para o outro lado do rio verde aonde o viajante podia continuar sua jornada rumo ao Brejo das Almas e região, se encontrava com uma cancela e, ao lado da dita cuja uma placa com letras de forma e erros gramaticais sofríveis  onde se lia: “PERDAGI DE UM CRUZERO PUR CABEÇA TANTO BOI CUMA GENTE. CARRO E CARROÇA UM E MEIO CRUZERO.” Dois capatazes completavam o cenário bucólico de bornal nas mãos, cobrando ou pelo menos tentando cobrar, daquela gente, pelo simples acesso para o outro lado. Utilizavam uma termologia estranha que até então ninguém por aquelas bandas ouvira dizer: “Pedágio”. Dessa forma conclui-se que a mesma tenha vindo da Capital trazida que fora por Raimundo, cunhado de Zé Maquinista.

Mas como é a necessidade que faz o sapo pular, não demorou muito e os transeuntes conseguiram encontrar alternativa mais trabalhosa porque tinham que dar uma grande volta para atravessar para o outro lado, mas menos onerosa, pois não tinham que pagar nada. Precavidos, colocaram outra placa “desvio a 500 metros”. Agora todos passavam por ali. Enquanto no pedágio, ninguém ia. Maior fiasco. A coisa miou. O tiro saiu pela culatra. A esperteza, como dizia Tancredo Neves, acabou engolindo o esperto. Pouco  tempo depois a cobrança foi extinta. Tardiamente, alguém de bom censo veio lhe alertar que aquilo não valia a pena. Que era muito mais fácil para ele continuar sendo bom. Que cobrar dos outros para que transitassem por alguns metros sobre suas terras não era a melhor prática a ser adotada. Que era infinitamente muito mais valioso continuar ouvindo dos passantes o “Deus lhe pague.” “Deus lhe ajude.” “Deus te abençoe,” ou na pior das hipóteses, um “muito obrigado”. Dinheiro nenhum no mundo conseguiria substituir estas simples e fluídicas palavrinhas mágicas que brotavam do coração eternamente agradecido daqueles andantes. 

É...

Por vezes, é preferível deixar como está para ver como é que fica. Se você não tiver certeza sobre que passo dar, que caminho seguir, plantar-se ao chão é o melhor negócio. E reze para que os ventos não o balancem.

E tenho dito!

Enoque Alves Rodrigues, que vive em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção. Atua há 40 anos na área de Engenharia. É Escritor, com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

sábado, 24 de março de 2012

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ - LUCAS DOS INFERNOS


ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – LUCAS DOS INFERNOS

Enoque Alves Rodrigues

Criado no seio das tradicionais famílias Prates e Sá, de onde provem o Deputado Camilo Prates e os irmãos Francisco e Alfredo Sá, respectivamente, Lucas dos Infernos, escravo que fora lá na Fazenda Brejo de Santo André, Município de Brejo das Almas, hoje Francisco Sá, depois de ter servido ambas as famílias por mais de 40 anos, vivia, finalmente, seus dias de glória. Passava a maior parte do tempo em companhia de “seu Camilinho” como era chamado carinhosamente o Deputado Camilo Prates, que como recompensa pelo muito que o velho escravo Lucas fizera por sua família, como prova de gratidão, não permitia que ele trabalhasse mais. Aonde o Dr. Camilo ia, levava seu fiel escudeiro Lucas, um preto alto, magro, de olhos esbugalhados e faces largas. O que mais o destacava dos outros serviçais era a sua presença de espirito e seu astral sempre elevado até as nuvens. Exímio contador de “causos”, brincalhão, prestimoso, a todos conquistava com seu largo sorriso. Não havia quem não gostasse de Lucas dos Infernos. Sua alegria em qualquer parte onde ele estivesse contagiava a todos. No entanto, cortava uma cana dos diabos e, nem mesmo os efeitos etílicos conseguia mudar sua personalidade. Alias foi num desses porres homéricos que ele recebeu o aditivo “dos infernos” no nome. Dizia ele em mais uma de suas histórias, essa segundo afirmava, verídica, que após se embriagar teve sonhos assustadores onde de repente se achou em meio ao inferno junto com vários asseclas de Lúcifer. Depois de ele ter passado por “poucas e boas lá nas profundas” quando os capetas iam, finalmente, fechar os portões para mantê-lo encarcerado lá para todo o sempre, ele, assim como num passe de mágica, se despertou daquele tenebroso pesadelo. Foi a partir deste dia que ele teve o seu sobrenome “dos Santos,” substituído por “dos infernos.”

Lucas nasceu na Fazenda dos pais de Francisco e Alfredo Sá em uma época em que a escravidão se achava em plena evidência no Brasil. Ricos e poderosos, porém, os pais de Francisco e Alfredo jamais foram de dispensar quaisquer maus tratos aos escravos sob suas responsabilidades. Foi por isso que mesmo depois de abolida a escravidão no Brasil, a 13 de Maio do ano de 1888, por Sua Alteza, a Princesa Isabel Cristina Micaela e mais um milhão de nomes, quase todos os escravos que serviam os pais de Francisco e Alfredo preferiram continuar com eles. Assim sendo é certo que Lucas dos Infernos embalou, em infância, os sonhos destes dois irmãos, grandes estadistas, orgulho maior do norte das Alterosas.

Servidão e lealdade. Era este o binômio sobre o qual durante toda a vida repousava as relações de Lucas dos Infernos para com seus patrões ou senhores. Tanto em Brejo de Santo André, em casa dos pais de Francisco e Alfredo, como em Montes Claros em casa do Deputado Camilo Prates ou no Brejo das Almas, em companhia deste em casa do Padre Augusto, pois muitas vezes “Seu Camilinho” o cedia para ficar uma temporada com o Padre Augusto no Brejo das Almas, várias foram ás oportunidades que o preto Lucas teve de provar aos seus senhores o quanto lhes era fiel. O orgulho que tinha em servi-los era indescritível. Por isso que ele agora em idade avançada colhia os louros que amealhou durante muitos anos de dedicação e esmero. 

Ele se levantava todos os dias lá pelas 8 horas da manhã. Depois de dar umas voltas pelo Centro do Brejo onde, entre um “causo” e outro, manguaçava  nos muitos botecos, retornava ao meio dia para almoçar. Puxava uma palha até ás 14 horas e voltava ao Centro para continuar bebericando. Ás 19 horas após passar pela velha Matriz onde se ajoelhava e rezava aos pés do cruzeiro, regressava para casa. O Padre Augusto não se incomodava por este hábito. Isso era irrelevante ou sem muita importância. Lucas não incomodava ninguém. Bastava abrir a boca para contar suas histórias e piadas para que todos caíssem na gargalhada. Isto sim, era o que mais importava. O resto não tinha peso algum. 

Naqueles tempos longínquos era prática comum ao dono da casa quando recebia visitas importantes, convidar algum de seus serviçais para contar-lhes algumas histórias ou piadas desde que desprovidas de duplo sentido ou qualquer grau pejorativo. Tais procedimentos, acreditem, retratavam o alto nível intelectual e financeiro com os quais o dono da casa era aquinhoado. 

Certa vez se encontravam na casa do Padre Augusto, no Brejo das Almas, o Dr. Honorato Alves, Camilo Prates, Alfredo Sá,  Jacinto Silveira, Antonio Ferreira, Francelino Dias,  o próprio Padre Augusto e o famoso Jornalista Mário Cassassanta que à época escrevia uma matéria para um Jornal do Rio de Janeiro sobre o Brejo das Almas. Na grande sala de estar, sentados confortavelmente em bancos de couro depois de terem se esbaldado com o angu de fubá com molho de quiabo e brotinhos de feijão de corda, que Wenceslau sabia preparar como ninguém, lá pelas tantas chamaram o negro, velho escravo “aposentado” para contar suas anedotas. Entrou todo faceiro e gracioso. Sentou-se em meio à roda de visitantes e pôs se a olhar nos olhos do Dr. Camilo e do Dr. Alfredo. Estava à espera de um sinal de ambos para que pudesse iniciar. O sinal não vinha. Por certo que nem o Dr. Camilo tampouco o Dr. Alfredo foram avisados por Lucas dos Infernos dessa sua nova mania. Depois de algum tempo de trocas de olhares sem que o sinal fosse enviado, o Dr. Camilo vendo que a plateia já se achava inquieta, perguntou-lhe: 

- E então, Lucas. Não vai começar? Até quando você vai nos deixar aqui sedentos por ouvir suas belas histórias, menino? 

- Não posso senhor, respondeu Lucas levando as duas mãos à cabeça. Só poderei começar quando o senhor e o doutor Alfredo me autorizarem. Para tanto basta que cada um pisque seu olho esquerdo, ao mesmo tempo, simultaneamente. Dito isto, estufou o peitoral pra frente, esticou o longo pescoço e arregalou os dois olhões sobre ambos em busca do impossível que não veio, pois por mais que os Doutores Camilo Prates e Alfredo Sá tentassem, não conseguiam sintonizar suas piscadelas. Quando um fechava o olho para piscar, o outro abria, e vice-versa. Depois de longos minutos neste diapasão coube a Jacinto intervir.

- Compadres, por favor, parem com isso! Os senhores ainda não perceberam que este Lucas dos Infernos está tirando sarro de todos nós? O que ele lhes manda fazer, jamais  conseguirão. Ninguém é capaz de fazer isso. Foi bem mais fácil para mim, apesar de sabermos o quanto me foi difícil, (o Coronel Jacinto, como bom Mineiro, de quando em vez também se dava ao luxo de colocar em prática o seu Mineirismo), emancipar o Brejo das Almas. Este negro não quer contar história coisíssima nenhuma!

Sábias palavras. Não fosse isso e ambos estariam até hoje piscando um para o outro. Claro, se não tivessem, há muito tempo, partido para o Andar de Cima. Antes que Jacinto fechasse a boca encerrando seu comentário, Lucas dos Infernos já soltava sua diabólica e sarcástica gargalhada seguida da frase que ele sempre utilizava nestas ocasiões: “Peguei vocês, outra vez, seus espertos!”

Em um inesperado efeito dominó, todos os presentes, ao mesmo tempo, no mesmo minuto, no mesmo segundo, na mesma fração de milésimo, em tempo real, simultaneamente, sei lá mais o que, caíram no riso.

- Uai, sô, dirão alguns, porque razão todos eles conseguiram rir ao mesmo tempo, fazendo com facilidade o que certamente seria o mais difícil?

- A resposta veio do próprio sábio Lucas dos Infernos ainda no meio da roda de visitantes ilustres. 

- Todos e não somente dois conseguiram fazer o mais difícil por que ninguém lhes disse o que teria que ser feito. É necessário dar ao homem liberdade para pensar e agir, acertar e errar, sem que outros lhes digam o que se deve ou não fazer. É para isso que cada um tem a sua cabeça!

É...

Por vezes, revelar o segredo poderá não ser uma boa atitude. Oculta-lo talvez seja o melhor atalho para se chegar ao êxito. Urge ensinar o ser humano a acertar.

E tenho dito!

Enoque Alves Rodrigues, que vive em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção. Atua há 40 anos na área de Engenharia. É Escritor, com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

sábado, 17 de março de 2012

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – WENCESLAU, O MANDINGUEIRO II

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – WENCESLAU, O MANDINGUEIRO II

Enoque Alves Rodrigues

Difícil, para não dizer impossível, contar a história de Wenceslau Bispo dos Santos, “O azar” em um só capítulo. Ainda bem que preveni vocês quanto a merecida continuidade, pois seria uma pena resumi-la em uma só parte. Acredito que o pouco que contei em crônica anterior não faria justiça ao muito que significou aquela límpida alma para aquelas setenta e quatro crianças carentes, que foram resgatadas das ruas do Brejo, pelo Padre Augusto Prudêncio da Silva, em situação de miserabilidade extrema.

Apenas para lembrar, “Azar” surgiu naquele pequeno Orfanato que ficava na antiga Rua do Padre ou Rua da Amargura esta última denominação atribuída à tristeza e melancolia da qual era a mesma acometida durante a semana santa, como que por encanto. Jamais se soube ao certo quem foi que o enviou. Aliás, esta era uma preocupação do Padre Augusto, que, no entanto, só perdurou até ele conseguir ler e decifrar, inteiramente, tudo que se passava na cachola de Wenceslau. Finalizados os seus estudos, analises e conclusões, resultaram indiscutivelmente positivas as boas intenções e ações de “Azar”. Foi a partir daquele voto de confiança do Padre, o qual “Azar” jamais burlou que ele foi investido nas funções de colaborador direto do Padre Augusto, dedicando-se, de corpo e alma a cuidar daqueles menores necessitados. Se algo nos surge no caminho para nos fustigar, certo está que removeremos Céus e Terra no sentido de detectarmos o mais rapidamente possível a origem do mal que nos aflige para eliminarmos antes que nos elimine. Já com relação às dádivas ou acontecimentos positivos que de quando em vez nos brotam no caminho, não temos as mesmas preocupações. Elas vêm e vão sem que nós sequer nos demos ao trabalho de dar uma espiadela no que tange ao seu nascedouro e quais foram os percursos que elas tiveram que percorrer para chegarem até nós. Somos falhos, sim senhor, mas devo dizer que esse procedimento é natural a todos nós humanos. Portanto não chega a ser um erro ou desvio de conduta. Talvez a explicação se prenda ao fato de nos subestimarmos, julgando-nos, em função de nossos débitos contraídos com o pretérito, não merecedores de qualquer dádiva. Bestagens. Ninguém recebe do Alto ou de quem quer que seja nada além do que realmente merece. Ou, então, o pior, por nos acharmos excessivamente merecedores acabamos por não darmos a atenção devida a estas dádivas. “os Céus não fizeram mais que sua obrigação!”

Mas o Padre Augusto, como já disse em várias oportunidades, era incomensuravelmente espiritualizado. Se à época estivesse em voga a termologia “católico espirita” o Padre Augusto a ela se enquadraria sem delongas. Ele sabia de tudo. Por isso não tinha porque investigar. Ele possuía o dom da clarividência. Voltemos ao Wenceslau, o “Azar”.

Ao compulsar os anais da história de Brejo das Almas, hoje Francisco Sá, minha “beldade do norte de Minas,” (Nossa, há quanto tempo não a chamo assim), você irá constatar inúmeras invasões da pequena Cidade por tropas de bandoleiros que se intitulavam legalistas que agiam em nome do Governo, sob cuja égide praticavam  as piores atrocidades. Eram violentadores, ladrões e arruaceiros mal cheirosos que a ninguém respeitava. Aonde eles chegavam o pânico estava instalado. Invadiam as roças, criações de gados, porcos e galinhas. Entravam em  casas residenciais e comerciais, levavam tudo o que queriam e ninguém podia dizer nada. Só de vê-los de longe já dava medo.

A mais temida “coluna” de bandoleiros que adentrou Brejo das Almas teve como chefe Rotilio de Souza Manduca que se autodenominava Coronel e “Patriota Supremo.” Isso aconteceu precisamente no dia 18 de Fevereiro de 1926. Aquele sujeito juntamente com sua tropa, formada por mil tranqueiras da pior espécie, permaneceram na Cidade por exatos 52 dias. Semearam o terror. Quando finalmente levantaram acampamento, rastros de destruição eram evidentes por se assemelharem às devastações vulcânicas. Mas antes de irem embora tiveram que passar pelo constrangimento de serem “peitados” pelo negro “Azar” que os humilhou publicamente. “Azar” era um tipo de “guardião” do Padre Augusto, apesar deste jamais necessitar disso, pois o Padre também não era de mandar recados e sabia “se virar sozinho.”

Ao lado da casa do Padre havia um grande mangueiro onde ele mantinha seus animais de montaria pastando, além de algumas vaquinhas que abasteciam com o leite, o bucho de seus pequenos internos e uns porquinhos de engorda para a extração de banha, carne e torresmos, porque ninguém é de ferro. Manduca, já no final de sua “estada” no Brejo, não tendo mais a quem acharcar, cismou de mexer com as coisas do Padre. Primeiro mandou que um de seus homens amarrasse um cavalo no cruzeiro que ficava em frente à Igreja. O Padre que naquele momento rezava missa interrompeu a homilia e, aos berros ordenou que o capanga tirasse imediatamente o cavalo do cruzeiro. Este retrucou dizendo que só recebia ordens de seu superior Manduca. O Padre que tinha uma força “estranha” no olhar observou-o com “ternura.” Alguns segundos depois o pobre jagunço começou a tremer e a se borrar. Rabo entre as pernas desatou o nó do cabresto no cruzeiro e deu no pé com sua animália. Chegando ao acampamento que ficava em frente ao mercado velho, inteirou Manduca do ocorrido. Este, de propósito foi pessoalmente até o mangueiro do Padre e, lá chegando, juntou duas vaquinhas, quatro leitões e a mula de estimação do Padre. Quando já estava de saída com os produtos do roubo, antes de ganhar a porteira, deu de cara com o negro Wenceslau, o “Azar.” 

- Deixe estes animais ai, disse-lhe “Azar”, porque eles não lhe pertencem. Eles são propriedade do Padre e ninguém vai levar na mão grande.

- Sou Coronel, respondeu-lhe, Manduca, trabalho para o Governo em beneficio do Cidadão. Tudo que estiver a minha frente eu posso utilizar. Eu vou levar, sim, e não será um negro como você que me irá impedir!

- Bem, retrucou Wenceslau, você pode ser Coronel lá pra suas negras. Aqui neste solo sagrado você não passa de um pé rapado. Vá embora enquanto há tempo. 

- Quem você pensa ser, disse-lhe Manduca, para me falar desse jeito?

- Vá simbora, voltou a dizer “Azar”, que é o melhor que você tem a fazer!

- Você não vai? Bem, eu lhe avisei.

- Mas você me avisou do que seu negro safaaa...

Não conseguiu finalizar a frase. Um quase inaudível assovio de “Azar” foi mais que suficiente para que nuvens de maribondos ávidos por picarem sangue ruim, caíssem sobre Manduca, que quanto mais tentava se proteger mais era atacado. Não lhe restou alternativa senão implorar ao bom “Azar” para que fizesse que os maribondos parassem de ferra-lo. “Azar” após obter de Manduca a palavra de que jamais voltaria a incomoda-los ordenou, com outro assovio, que os maribondos o deixassem. Humilhado, mas covarde, Manduca retirou-se ameaçando retornar para finalizar seu intento em outra oportunidade.

“Azar” ouviu-o atentamente e no final foi claro: “Não haverá outra oportunidade seu bandoleiro besta. Você não entendeu o que eu lhe disse que isso aqui é solo sagrado por ser terra do Padre? Seus pés sujos não podem pisar mais aqui.”

Dois dias depois Manduca, em companhia de trinta de seus melhores jagunços, retornou ao mangueiro do Padre em calada sorrateira. Vinham pisando em algodão para não levantarem suspeitas. Pretendiam levar todos os animais do Padre. Já estava acessa uma grande fogueira no acampamento para assarem os porquinhos. Não tiveram tempo. Outra vergonhosa derrota agora os esperava. Entraram todos no mangueiro. De onde surgiu tanto lamaçal jamais se soube. O que se via e até soava engraçado, era aquele bando de marmanjos tentando se equilibrar sobre as pernas, que se achavam enterradas no barro até a altura dos joelhos. 

Sobre a porteira, confundindo-se com um preto mourão, Wenceslau ou “Azar” observava. E à maneira que a turba tentava sair do barro mais se afundava. Quando isso acontecia, “Azar” soltava grandes gargalhadas a guisa de gozação. O negro era perverso quando queria. Não contente em somente ele apreciar aquela cena deprimente para quem, como Manduca, se dizia autoridade, foi até o Largo da Matriz onde convidou os presentes a irem assistir aquele dantesco espetáculo. Todos viram. Mas ninguém acreditou. Aquilo não era possível. Amedrontados tentaram segurar o riso. Mais “Azar” foi implacável: “Suas pulgas, não trouxe vocês aqui para chorar, mas para sorrir. A menos que estejam com pena deles.” Pronto: era tudo que faltava. Sarcásticas gargalhadas foram ouvidas durante toda a madrugada. Não satisfeitos, subiram sobre a cerca e de lá, qual plateia no Coliseu Romano, dos tempos de Nero, atiçavam: “Vamos, seus bocós. Queremos ver quem de vocês vai sair primeiro desta merda!” Outros, diziam, “cuidado, não vão se misturar!”
 
De manhã, ao se levantar, o Padre Augusto, já velho e meio surdo, custou a entender de onde partia aquela algazarra. Levantou-se e se dirigiu até o mangueiro. Lá estavam todos, cansados e esbaforidos. Enterrados agora até a cintura. Ao avistarem o Padre foram logo dizendo: Tire-nos daqui, tire-nos daqui. Sua Reverendíssima, “piedosamente” apenas observava. Depois de algum tempo, mineiramente, lhes indagou:  Por favor, meus “filhos”, quem foi que os colocou em meio a tanto barro e bosta de vaca? Como é que vocês foram parar ai? Porventura, disse-lhes o Padre, entre sorrisos, estavam vocês praticando alguma estripulia? Eu não acreditaria devido serem vocês bastante crescidinhos. 

Todos, desesperadamente, responderam a uma só voz, apontando para “Azar”: Foi ele. Foi este preto dos demônios que nos colocou aqui neste inferno!

- Então, disse-lhes o Padre, se foi ele que os colocou ai, ele que os tire. Eu também, assim como um de vocês me disse outro dia, não sou empregado dele e de ninguém. Eu só trabalho para Deus!

Dito isto juntou a batina e se retirou.

Agora, por favor, amantíssimos conterrâneos, brejeiros do meu coração, povo meu, não perguntem a este quase sexagenário, cabeça branca, o que Manduca teve que prometer desta vez a Wenceslau, para que os liberasse. O que posso lhes informar é que na manhã daquele mesmo dia todo aquele “exército de sujos” era visto a caminho da Bahia. Derrotados, apontavam suas armas para o alto e disparavam. Vitoriosos, agora felizes e aliviados, os Brejeiros, lá atrás, respondiam com sonoras gargalhadas e fogos de artifícios.

É...

Por vezes, ou quase sempre, a prudência nos recomenda que não ha fracos nem fortes diante das estratégias do sobrenatural. O importante é saber achar o “ponto G” do equilíbrio.

E tenho dito!

Enoque Alves Rodrigues, que vive em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção. Atua há 40 anos na área de Engenharia. É Escritor, com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

sábado, 10 de março de 2012

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – PADRE SALÚ E TIBÚRCIO

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ –  PADRE SALÚ E TIBÚRCIO

Enoque Alves Rodrigues

SERRA  DO CATUNI - BREJO DAS ALMAS
Quando em 17 de Março do ano de 1931, acometido por um câncer na garganta, o Padre Augusto falecia no Brejo das Almas, preocupações e incertezas se apossaram das famílias Brejalminas. Todas as atenções agora pairavam sobre uma dúvida muito séria, mas oportuna, pelo fato de que o Padre, que ora perdiam, era muito querido no lugarejo. Todos o adoravam. Ele fazia por merecer. 

Quem seria o seu substituto?

Por muito tempo esta pergunta permaneceu no ar. As beatas, que já não sabiam mais o que fazer, sequer  conseguiam dormir. Não dava mais para levar adiante, até o seu final, novenas e terços. Além de terem que conviver com a ausência do Padre Augusto, ainda se sentiam  desamparadas pela falta de um condutor dos destinos dos católicos da região. Algum tempo depois, soavam-se as trombetas anunciando a chegada de um novo Pároco para os serviços eclesiásticos junto aos pecadores de Maria. Curiosos, todos, indistintamente, acorreram-se a velha Matriz para se certificarem da boa nova. Sim. Era verdade! Lá estava ele, robusto, o senhor Padre, vestido com sua batina de gala. Estrearia com ela a primeira missa na calorosa tarde outonal daquele mesmo dia.

Apesar de vir da diocese de Salinas, distante a poucos quilômetros de Francisco Sá ou Brejo das Almas, ninguém no Brejo o conhecia. Sequer antes ouviram falar seu nome. Logo o inevitável passou a acontecer. O povo, acostumado com a forma carinhosa do Padre Augusto que permaneceu à frente da Igreja do Brejo por trinta e cinco anos, passou a fazer comparações. No frigir dos ovos resultava como liquido e certo que aquele Padre que agora substituía o Padre Augusto, diferia deste como a água do vinho. Nada, absolutamente nada tinham em comum.

Salustiano Fernandes dos Anjos, ou Padre Salú, era este o nome do sucessor do Padre Augusto. Enquanto um era dado a longas conversas, preocupando sempre em ouvir atentamente o interlocutor para, no final, oferecer seus préstimos que sempre eram acompanhados por palavras de carinho, motivação e ternura, o outro era ríspido. De poucas palavras. Não era muito de ouvir. Chegava mesmo a interromper aos berros, fiéis em confissão. As missas já não tinham mais o ânimo de outrora e o povo começou a se debandar. A Igreja, aos poucos, foi se esvaziando e os casamentos e batizados se escassearam.  Os jovens continuavam com vontade de se casar, ter filhos, batiza-los, etc. No entanto, quando imaginavam a cara de bravo do Padre Salú, perdiam a vontade, neste caso, literalmente, perdiam o tesão. Questionava as moças e os mancebos quanto a seus respectivos celibatos numa época em que vários tabus existiam sobre este tema, que não era tratado nem mesmo no seio da família. Quando nas cerimonias de batismos ao perguntar aos pais que nome dariam ao filho, se este nome não fosse de seu agrado ele simplesmente o substituía por outro. Caso houvesse recusa dos pais ao novo nome, encerrava ali mesmo a cerimônia, deixando o anjinho pagão. O padre Salú era muito materialista. Não era mau, tanto que era Padre. Era demasiado criterioso e entendia que com estes pequenos exageros,  estaria zelando melhor de seu rebanho.

O fim não justifica os meios. Mas  é possível que o fato de o Padre Salú, ao contrário do Padre Augusto, vir de camadas sociais mais abastadas, o  tenha influenciado para que ele fosse desse jeito. Passava a impressão de que não gostava de pobre. Que apenas o tolerava por força de um oficio que pouco se parecia com uma vocação. Mas no fundo como eu já disse, ele era boa gente. Era do bem, indubitavelmente, desde que não comparado ao antecessor. Ai não tinha jeito mesmo. O outro ganhava de goleada.

Tibúrcio Procópio Soares, ele colaborava com o Padre Salú nos trabalhos da Igreja. Funcionava como ajudante de ordens e Sacristão, destes que muitas vezes se esquecem, até mesmo de tocar os sinos. Tibúrcio era nascido em Grão Mogol. De lá foi para Salinas onde trabalhou nas Fazendas dos pais do Padre Salú. Das fazendas passou a colaborar com o Padre nos trabalhos da Igreja. Foi por isso que ao ser transferido para a Freguesia do Brejo das Almas, sim, quando o Padre Salú chegou ao Brejo, o Brejo ainda não era Francisco Sá, pois só veio receber esta denominação em 1938, levou consigo seu ajudante e fiel escudeiro, Tibúrcio.

Vejam vocês as coincidências. Não foi, creiam-me, propósito meu. Na semana passada me achava aqui, neste mesmo horário e prefixo escrevendo sobre um ajudante de ordens de outro Padre. Nesse caso, o Wenceslau, ou “Azar”, que surgiu como por encanto e trabalhava com o Padre Augusto, cuja alusão, fiz acima. Já que, sem querer, comparamos  os costumes daquelas duas figuras exponenciais da vida religiosa do Brejo, por que não traçaríamos analogias entre seus dois serviçais? Não vou, no entanto, cansar vocês relembrando algumas façanhas do bom “Azar”. Voltarei a ele em outras oportunidades. Fixemos, agora, em Tibúrcio.

Vinte e seis anos, alto, mulato, semblante fechado, jamais sorria. Passava por todos nas ruas sem sequer cumprimentar. Mirava a todos com o olhar severo de uma Madre Superiora. De cima para baixo. Encrenqueiro dos mais temidos. Mentiroso de nascença e carteirinha. Garganteador. Nem ele mesmo acreditava no que falava. Somente o Padre lhe dava crédito. Certa vez arrumou um “fuzuê” na “ZBM” que ficava próximo ao Centro. Desentendeu-se com um tal de Calixto de Vaca Brava. Chegaram ás vias de fato. Rolaram pelo chão. Ele tinha dois metros e meio de altura. Calixto tinha três. Os cinquenta centímetros a mais fez a diferença. Levou uma tremenda sova. Chegou a Igreja todo ralado. Indagado pelo Padre Salú, foi logo dizendo: “Estava participando da novena ao São Gonçalo e ao passar defronte a uma casa suspeita fui atacado por um tal de Calixto.”

- Dê-me, disse-lhe o Padre, o nome completo desse facínora que eu vou amaldiçoa-lo agora mesmo! Que mal poderia fazer você, este “santo homem,” a ele para que agisse dessa maneira? Não se agride assim um “homem de Deus.”

O Padre Salú era assim: o que pertencia a ele era valorizado ao extremo ainda que pouco ou quase nenhum valor tivesse. O simples fato de fruir do convívio e confiança dele já era motivo mais que suficiente para que tivesse dele total proteção. Uma pena que somente Tibúrcio tinha esta primazia e deferência. 

A aspereza e o jeito rústico de ser, destarte, haver tido uma boa educação de berço, ás vezes arrebatavam o Padre Salú aos mais tenebrosos pensamentos e comentários. Dizia, por exemplo, em seus devaneios, ao se referir ao câncer na garganta que ceifara a vida do Padre Augusto, seu antecessor, que “o Padre só morreu de doença ruim porque era muito bom para os outros. Dando assim uma falsa conotação de que os Céus não pertencem aos justos e bons.

Algum tempo depois, retornando de uma pescaria, sentiu uma pequena fisgada na perna esquerda. Depois veio uma dorzinha de cabeça chata que não passava nunca. Daí a pouco o  estomago começava a dar voltas. Comia, mas as substâncias dos alimentos não se retinham no organismo. Bebia um copo de água, por pequeno que fosse e se achava como se tivesse engolido um elefante inteiro. Nesse entrementes o humor que já era ruim, piorou. Não tinha “Niquinho”, nem “Francelino, o França”  os “doutores” da farmácia do Brejo, assim como não tinha também o Dr. João José Alves, na bela MOC.

Procurou, então, os médicos da Capital das Alterosas “Belzonte” que foram taxativos e implacáveis no diagnóstico: “Câncer em estágio avançado e irreversível nos intestinos!”

Após longo padecer, agora era a vez de Salustiano Fernandes dos Anjos, o Padre Salú, acompanhar o seu antecessor na longa viagem rumo ao Cosmos. Igualando-se a ele, pelo menos neste quesito, onde todos nós somos iguais perante as Leis Infinitas que Regem o Universo. Seu espirito, finalmente, pode comprovar meio decepcionado, que a morte não é o fim e que viver não é nenhum privilégio. Que não existem diferenças entre mortos e vivos senão a simples e ás vezes chocante e assustadora troca de vestimenta. Sim, porque mesmo que você não creia, saiba que quem escolhe os “modelitos” que pretende vestir lá em cima somos nós mesmos, enquanto aqui no chão. 

Quanto a Tibúrcio, por algum tempo, ainda continuou no Brejo. Mas depois retornou para Salinas de onde ninguém mais teve noticias.

É...

Continuo com aquele certo William.

Por vezes, dizia ele, “há muito mais coisas entre o Céu e a Terra além do que supõe nossa vã filosofia.”

E tenho dito!

Enoque Alves Rodrigues, que vive em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção. Atua há 40 anos na área de Engenharia. É Escritor, com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – PADRE SALÚ E TIBÚRCIO

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ –  PADRE SALÚ E TIBÚRCIO

Enoque Alves Rodrigues

Quando em 17 de Março do ano de 1931, acometido por um câncer na garganta, o Padre Augusto falecia no Brejo das Almas, preocupações e incertezas se apossaram das famílias Brejalminas. Todas as atenções agora pairavam sobre uma dúvida muito séria, mas oportuna, pelo fato de que o Padre, que ora perdiam, era muito querido no lugarejo. Todos o adoravam. Ele fazia por merecer.

Quem seria o seu substituto?

Por muito tempo esta pergunta permaneceu no ar. As beatas, que já não sabiam mais o que fazer, sequer  conseguiam dormir. Não dava mais para levar adiante, até o seu final, novenas e terços. Além de terem que conviver com a ausência do Padre Augusto, ainda se sentiam  desamparadas pela falta de um condutor dos destinos dos católicos da região. Algum tempo depois, soavam-se as trombetas anunciando a chegada de um novo Pároco para os serviços eclesiásticos junto aos pecadores de Maria. Curiosos, todos, indistintamente, acorreram-se a velha Matriz para se certificarem da boa nova. Sim. Era verdade! Lá estava ele, robusto, o senhor Padre, vestido com sua batina de gala. Estrearia com ela a primeira missa na calorosa tarde outonal daquele mesmo dia.

Apesar de vir da diocese de Salinas, distante a poucos quilômetros de Francisco Sá ou Brejo das Almas, ninguém no Brejo o conhecia. Sequer antes ouviram falar seu nome. Logo o inevitável passou a acontecer. O povo, acostumado com a forma carinhosa do Padre Augusto que permaneceu à frente da Igreja do Brejo por trinta e cinco anos, passou a fazer comparações. No frigir dos ovos resultava como liquido e certo que aquele Padre que agora substituía o Padre Augusto, diferia deste como a água do vinho. Nada, absolutamente nada tinham em comum.

Salustiano Fernandes dos Anjos, ou Padre Salú, era este o nome do sucessor do Padre Augusto. Enquanto um era dado a longas conversas, preocupando sempre em ouvir atentamente o interlocutor para, no final, oferecer seus préstimos que sempre eram acompanhados por palavras de carinho, motivação e ternura, o outro era ríspido. De poucas palavras. Não era muito de ouvir. Chegava mesmo a interromper aos berros, fiéis em confissão. As missas já não tinham mais o ânimo de outrora e o povo começou a se debandar. A Igreja, aos poucos, foi se esvaziando e os casamentos e batizados se escassearam.  Os jovens continuavam com vontade de se casar, ter filhos, batiza-los, etc. No entanto, quando imaginavam a cara de bravo do Padre Salú, perdiam a vontade, neste caso, literalmente, perdiam o tesão. Questionava as moças e os mancebos quanto a seus respectivos celibatos numa época em que vários tabus existiam sobre este tema, que não era tratado nem mesmo no seio da família. Quando nas cerimonias de batismos ao perguntar aos pais que nome dariam ao filho, se este nome não fosse de seu agrado ele simplesmente o substituía por outro. Caso houvesse recusa dos pais ao novo nome, encerrava ali mesmo a cerimônia, deixando o anjinho pagão. O padre Salú era muito materialista. Não era mau, tanto que era Padre. Era demasiado criterioso e entendia que com estes pequenos exageros,  estaria zelando melhor de seu rebanho.

O fim não justifica os meios. Mas  é possível que o fato de o Padre Salú, ao contrário do Padre Augusto, vir de camadas sociais mais abastadas, o  tenha influenciado para que ele fosse desse jeito. Passava a impressão de que não gostava de pobre. Que apenas o tolerava por força de um oficio que pouco se parecia com uma vocação. Mas no fundo como eu já disse, ele era boa gente. Era do bem, indubitavelmente, desde que não comparado ao antecessor. Ai não tinha jeito mesmo. O outro ganhava de goleada.

Tibúrcio Procópio Soares, ele colaborava com o Padre Salú nos trabalhos da Igreja. Funcionava como ajudante de ordens e Sacristão, destes que muitas vezes se esquecem, até mesmo de tocar os sinos. Tibúrcio era nascido em Grão Mogol. De lá foi para Salinas onde trabalhou nas Fazendas dos pais do Padre Salú. Das fazendas passou a colaborar com o Padre nos trabalhos da Igreja. Foi por isso que ao ser transferido para a Freguesia do Brejo das Almas, sim, quando o Padre Salú chegou ao Brejo, o Brejo ainda não era Francisco Sá, pois só veio receber esta denominação em 1938, levou consigo seu ajudante e fiel escudeiro, Tibúrcio.

Vejam vocês as coincidências. Não foi, creiam-me, propósito meu. Na semana passada me achava aqui, neste mesmo horário e prefixo escrevendo sobre um ajudante de ordens de outro Padre. Nesse caso, o Wenceslau, ou “Azar”, que surgiu como por encanto e trabalhava com o Padre Augusto, cuja alusão, fiz acima. Já que, sem querer, comparamos  os costumes daquelas duas figuras exponenciais da vida religiosa do Brejo, por que não traçaríamos analogias entre seus dois serviçais? Não vou, no entanto, cansar vocês relembrando algumas façanhas do bom “Azar”. Voltarei a ele em outras oportunidades. Fixemos, agora, em Tibúrcio.

Vinte e seis anos, alto, mulato, semblante fechado, jamais sorria. Passava por todos nas ruas sem sequer cumprimentar. Mirava a todos com o olhar severo de uma Madre Superiora. De cima para baixo. Encrenqueiro dos mais temidos. Mentiroso de nascença e carteirinha. Garganteador. Nem ele mesmo acreditava no que falava. Somente o Padre lhe dava crédito. Certa vez arrumou um “fuzuê” na “ZBM” que ficava próximo ao Centro. Desentendeu-se com um tal de Calixto de Vaca Brava. Chegaram ás vias de fato. Rolaram pelo chão. Ele tinha dois metros e meio de altura. Calixto tinha três. Os cinquenta centímetros a mais fez a diferença. Levou uma tremenda sova. Chegou a Igreja todo ralado. Indagado pelo Padre Salú, foi logo dizendo: “Estava participando da novena ao São Gonçalo e ao passar defronte a uma casa suspeita fui atacado por um tal de Calixto.”

- Dê-me, disse-lhe o Padre, o nome completo desse facínora que eu vou amaldiçoa-lo agora mesmo! Que mal poderia fazer você, este “santo homem,” a ele para que agisse dessa maneira? Não se agride assim um “homem de Deus.”

O Padre Salú era assim: o que pertencia a ele era valorizado ao extremo ainda que pouco ou quase nenhum valor tivesse. O simples fato de fruir do convívio e confiança dele já era motivo mais que suficiente para que tivesse dele total proteção. Uma pena que somente Tibúrcio tinha esta primazia e deferência.

A aspereza e o jeito rústico de ser, destarte, haver tido uma boa educação de berço, ás vezes arrebatavam o Padre Salú aos mais tenebrosos pensamentos e comentários. Dizia, por exemplo, em seus devaneios, ao se referir ao câncer na garganta que ceifara a vida do Padre Augusto, seu antecessor, que “o Padre só morreu de doença ruim porque era muito bom para os outros. Dando assim uma falsa conotação de que os Céus não pertencem aos justos e bons.

Algum tempo depois, retornando de uma pescaria, sentiu uma pequena fisgada na perna esquerda. Depois veio uma dorzinha de cabeça chata que não passava nunca. Daí a pouco o  estomago começava a dar voltas. Comia, mas as substâncias dos alimentos não se retinham no organismo. Bebia um copo de água, por pequeno que fosse e se achava como se tivesse engolido um elefante inteiro. Nesse entrementes o humor que já era ruim, piorou. Não tinha “Niquinho”, nem “Francelino, o França”  os “doutores” da farmácia do Brejo, assim como não tinha também o Dr. João José Alves, na bela MOC.

Procurou, então, os médicos da Capital das Alterosas “Belzonte” que foram taxativos e implacáveis no diagnóstico: “Câncer em estágio avançado e irreversível nos intestinos!”

Após longo padecer, agora era a vez de Salustiano Fernandes dos Anjos, o Padre Salú, acompanhar o seu antecessor na longa viagem rumo ao Cosmos. Igualando-se a ele, pelo menos neste quesito, onde todos nós somos iguais perante as Leis Infinitas que Regem o Universo. Seu espirito, finalmente, pode comprovar meio decepcionado, que a morte não é o fim e que viver não é nenhum privilégio. Que não existem diferenças entre mortos e vivos senão a simples e ás vezes chocante e assustadora troca de vestimenta. Sim, porque mesmo que você não creia, saiba que quem escolhe os “modelitos” que pretende vestir lá em cima somos nós mesmos, enquanto aqui no chão.

Quanto a Tibúrcio, por algum tempo, ainda continuou no Brejo. Mas depois retornou para Salinas de onde ninguém mais teve noticias.

É...

Continuo com aquele certo William.

Por vezes, dizia ele, “há muito mais coisas entre o Céu e a Terra além do que supõe nossa vã filosofia.”

E tenho dito!

Enoque Alves Rodrigues, que vive em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção. Atua há 40 anos na área de Engenharia. É Escritor, com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

sábado, 3 de março de 2012

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – WENCESLAU, MANDINGUEIRO.

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – WENCESLAU, MANDINGUEIRO.

Enoque Alves Rodrigues

Quando em 1914 o pequeno Orfanato particular que era mantido pelo Padre Augusto Prudêncio da Silva, em Francisco Sá, Brejo das Almas, atingiu a marca de 74 (setenta e quatro) pequeninos abandonados à própria sorte e que agora encontravam guarida no seio daquele coração misericordioso, coincidentemente ou não, sem que se soubessem ao certo de onde veio, “brotou”, ali, na antiga Rua da Amargura ou Rua do Padre, ou especificamente naquele simples Orfanato, um negro alto, feio, de pele áspera e olhos vermelhos esbugalhados, de andar ziguezagueante. A princípio aquela imagem aparentemente sinistra e ameaçadora, causou um verdadeiro rebuliço a todos. O próprio Padre Augusto, que  nada temia, até porque como é de conhecimento de todos, mantinha relações muito estreitas com o mundo invisível, se assustou. Sua Reverendíssima na verdade não gostava de surpresas. Por isso indagava a si mesmo: Quem quer que tenha enviado aquele negro à sua porta teria por obrigação avisa-lo antes. Sim, por que o negro Wenceslau chegou até a casa do Padre com endereço certo. Viram-no, inicialmente, em frente ao velho mercado com um pequeno e amarelado pedaço de papel à mão. Ali notaram que alguém apontava para a direção da Rua da Amargura. Não haveria dúvida, aquela “aparição” repentina tratava-se de uma encomenda. De um presente. Bem, se se tratava de um presente que não fosse de gregos. Não haveria outra forma de saber senão perguntando. A curiosidade que “matou o gato” agora atazanava a vida do Padre. Ele queria saber de onde viera o negro Wenceslau, mas não queria constrangê-lo com perguntas e indagações inoportunas, até porque ele tinha isso como principio. Ajudava a todos sem sequer perguntar de onde veio ou quem foi que o abandonou. O Padre Augusto sobre quem tive o privilégio de dedicar várias crônicas era exatamente assim. Um santo na terra, diziam todos que o conheciam. Fazia tudo em beneficio dos menos favorecidos, muitas vezes em detrimento de si próprio. Quando  a Igreja de Roma não era a potência econômica que é hoje, ele deixava de comer para repassar o seu pão a uma boca mais necessitada e esfomeada. O Padre Augusto era incondicionalmente comprometido com as massas desfavorecidas pela sorte. Era, guardadas as devidas proporções, um São Vicente Brejeiro.

Durante uma semana o Padre manteve-se calado. Apenas observava as atitudes do negro Wenceslau. Quanto mais o observava mais curioso ficava. Sim, porque o negro por possuir idade aproximada de dezoito anos era mantido apartado dos pequenos onde a faixa etária atingia os 14 anos. Ele dormia numa pequena edícula nos fundos.

Wenceslau levantava-se de seu catre e já catava uma vassoura. Punha-se a varrer todo aquele casarão. Quando terminava a varrição, corria de espanador e pano em punhos a limpar os móveis rústicos. Terminada esta tarefa ia até a cozinha oferecer seus préstimos no preparo da comida. Quando tudo estava pronto, pegava os pratos que estavam sobre as mesas diante de cada menino e servia-os. Depois disso servia o Padre que tinha como hábito alimentar, primeiro se servir de um bom e fundo prato de sopas de legumes para só depois passar ao prato principal. Somente após servir a todos é que o negro Wenceslau se servia. Mesmo assim, pegava o seu pratinho e se dirigia a um dos cantos da sala. Nestas ocasiões era sempre repreendido pelo Padre que se levantava de seu lugar à mesa, geralmente na cabeceira e, de braços dados com o negro Wenceslau, levava-o até a outra cabeceira da mesa, onde fazia questão de que ele de assentasse, após lhe aplicar pequeno sermão: “Este lugar é seu por direito. Você não é aqui escravo de ninguém. Se você tem o trabalho de se dedicar a tudo e se esmerar para que tudo saia bem, você tem também o direito e a obrigação de usufruir.”

Não demorou muito e Wenceslau ganhou as graças de todas as crianças. Fruía, agora, de toda a confiança do Padre Augusto que, já meio cansado e alquebrado pelos anos, cuidava daqueles pequenos com certa dificuldade. Dotava-os de conforto alimentar pífio, que as sobras parcas da descapitalizada gente Brejeira permitiam. Não tinha mais pique para fazer gracinhas. Até porque isso não era o seu forte. Mas o negro não. Ele estava em plena flor da idade. Com todo o gás e cheio de vontade de animar aquele Orfanato com cara de velório. O Padre sentia que faltava alguma coisa para aquelas crianças. O Padre sabia que ninguém vive só de comida, bebida e estudo. Faltava alegria. Faltava motivação. Faltava entusiasmo. Wenceslau fez uma careta. A molecada caiu na gargalhada. O Padre franziu a testa. Wenceslau recolheu-se. No dia seguinte Wenceslau puxou as duas orelhas de um dos moleques. Balbuciou alguma coisa aos ouvidos e com trejeitos símios, com uma careta assustadora começou a grunhir. Todos caíram na gargalhada, inclusive o Padre. Pronto, o sorriso do Padre era a senha que Wenceslau queria. Era a assinatura da autorização que ele necessitava para daquele dia em diante tornar a vida daquele pequeno Orfanato a mais alegre possível. Definitivamente, lançava-se ali, naquele momento, os “pródromos de uma nova era.”  A era da alegria.

Wenceslau Bispo dos Santos, ou “azar”. Era esse o seu nome e apelido. Veio na verdade de Taiobeiras, na região. Não conheceu os pais. Vivia com uma avó que ao falecer, levou-o a perambular pelas estradas que davam no Brejo. O “azar” que ele fazia questão de incorporar ao seu nome, segundo ele próprio informava, era porque não tivera a sorte de conhecer os pais que segundo lhe dissera a avó, morreram de paludismo. Ele era feio de doer. Nem precisava fazer caretas. Mas era um verdadeiro templo de simpatias e cordialidades. Fazia graça com tudo. Brincava com todos sem jamais ser grosseiro. Tinha uma piada para cada menino. Visitantes do Padre eram alvos de suas brincadeiras. Até mesmo o Coronel Jacinto Silveira, meio sisudo, por natureza, recebia com sorrisos os seus gracejos. Era ele especializado na arte da mandinga inocente. No entanto ele só as realizava a pedido dos internos quando o Padre Augusto não estava por perto.

Certa vez todos os meninos se acercaram da mesa, pois “Azar” ou Wenceslau, ia fazer o número do ovo. Consistia no seguinte: ele deixava um ovo na cabeceira da mesa e se assentava na outra cabeceira de onde, gesticulando com as duas mãos e proferindo frases aparentemente desconexas, ordenava que o ovo rolasse até ele. O ovo que a primeira vista se achava imóvel, de repente começava a mover-se e dali a instantes estava na outra ponta da mesa. Nas mãos de “Azar.”

De outra feita tentou repetir a façanha. Toda a petizada ao redor da mesa. “Azar” tomou seu lugar costumeiro na cabeceira. Na outra cabeceira estava o ovo. “Azar” iniciou seu ritual com palavras incompreensíveis aos mortais. Contorcia todo em jeitos e trejeitos. Fazia diabólicas caretas. Acenava para o ovo. Em habitual gesto de chamamento para si num abrir e fechar de mãos e o ovo, nada! Permanecia inerte. Mortinho da silva. Por mais que ele se esforçava, o ovo não se movia. Os pequenos infantes já se desesperavam. Sedentos estavam para verem uma vez mais aquele ovo, qual morena faceira, partir em direção aos braços do feio Wenceslau e finalmente pousar em suas grossas mãos. Lamento informa-los mais desta vez a coisa, literalmente, não rolou. Ovo parado não tem graça. Empacou qual jumento baiano. Ninguém o faria mover-se. Total decepção.

Foi quando o pobre do “Azar” levantou a cabeça. De soslaio visualizou em meio a multidão de moleques dois enormes olhos azuis. Percebeu também que o rosto ao qual pertenciam aqueles grandes olhos era de há muito, dele conhecido. Fixou-se um pouco mais e constatou vasta cabeleira branca à guisa de véu. Era sim. Era ele mesmo. Era o Padre Augusto, o “dindinho” como o chamavam. Ele estava ali presenciando a cena. Não devia...

Num misto de assustado, envergonhado, decepcionado e constrangido, “Azar” que jamais antes houvera pronunciado qualquer palavra destoante de sua vida simples de matuto agora afinado até a medula com as cousas dos santos evangelhos,  não conseguiu se segurar. Fixando o olhar vermelho no Padre entre a molecada, começou a se justificar aos gritos.

- Diabo! Capeta! Inferno! Agora eu descobri porque este maldito ovo não me obedece. É porque  Sô Padre está ai no meio de vocês, diabos! Na frente dele o ovo não anda. O ovo só anda quando ele não está por perto!

O Padre olhou-o com piedade e brandura. Depois de lhe sorrir, agora foi sua vez de lhe tirar uma casquinha. “Pois é, meu bom “Azar”, eu só estava querendo lhe ajudar.”

- Desculpe Sô Padre, mais eu não sei “que diabo” o senhor tem nos olhos que não permite que o ovo ande.

- Engano seu, meu querido, disse-lhe o Padre, sente-se no seu lugar e chame o ovo, novamente!

Assim foi feito. O ovo sem maiores delongas andou. Caiu nas mãos do negro Wenceslau, o “Azar”. Agora  com os olhos mais esbugalhados que nunca. Assustadíssimo. Em vias de sair correndo.

- “Cruz Credo... Por mil demônios. Esse Padre é o capeta mesmo!”

Para o Padre que só queria ajudar a  emenda saiu pior que o soneto.

É...

Por vezes, dizia um certo William, há muito mais coisas entre o Céu e a Terra além do que supõe nossa vã filosofia.

E tenho dito!

Enoque Alves Rodrigues, brejeiro de nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia, é Escritor com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.