sábado, 10 de novembro de 2012

CENAS BREJEIRAS 3 - DONA LURDES



CENAS BREJEIRAS 3 – DONA LURDES

*Enoque Alves Rodrigues

Aquela década transcorria celeremente. Estranho, por aquelas bandas, naqueles tempos, se utilizar de qualquer palavra relacionada à pressa ou agitação. Mas em meu caso particular, não. Realmente o tempo que antes não passava, agora voava. Estava preocupado com o serviço militar e com a possibilidade de alçar voos mais altos. E o pior: com medo de estar vivendo um sonho de Ícaro, com asas de cera. Aproximava-se a cada dia, o temido momento em que eu teria que despedir dos familiares, do meu povo e da minha terra. O cordão umbilical tinha que ser cortado. As perspectivas, naquela ocasião, não eram favoráveis a um jovem com a cabeça cheia de sonhos a serem realizados, custe o que custasse. Desde muito cedo aprendi que do Céu só cai chuva e de quando em vez algum canivete. Nada mais. Aliás, pensando melhor, a chuva nem cai do Céu, mas de uma nuvem qualquer que na verdade se forma na terra. Quanto ao canivete. Bem, essa já é outra história. Entenda-o como “elemento decorativo” ou “licença poética”. Sendo assim, estamos entendidos que do Céu não cai nada. Por isso eu tinha que ir à luta. 

Ela vivia nos arrabaldes do Brejo das Almas, ou Francisco Sá, em companhia de seu digno esposo Eduardo, ou “Duia”. Particularmente, jamais o chamei pelo apelido. Talvez pelo fato de o “Duia” compor-se a um adjetivo que fazia alusão a cor da pele, ou quiçá à diferença etária não me facultasse tal liberdade. 

Esclarecida, inteligente, sensível e altruísta acima da média. Prendada, dedicada, cordial, amor ao próximo e devotamento religioso que a aproximava dos espíritos mais elevados, dona Lurdes ainda possuía o dom da premonição. Muitas pessoas se consultavam com ela. A todos tinha uma palavra de conforto e de coragem para seguir adiante. Dedicava-se também a expulsar quebrantos e mau-olhado ou olho gordo.

-Pois é Dona Lurdes, a Naninha está com um fastio terrível e não tá comendo nada!

-Se preocupa não, Carmem, respondia. –Dê a ela um chá de sabugueiro que é tiro e queda.

Outra, desesperada, recorria àquela alminha bondosa:

-O meu problema, Dona Lurdes, é que o meu marido Dedé sumiu faz três dias. Já o procurei por toda parte e não o encontrei. Eu acho que alguma coisa de muito ruim aconteceu com ele.

-Ih, minha filha, seu marido está muito bem demais da conta, sô. Quem não vai ficar bem vai ser você depois de saber aonde é que ele está. Dizia isso e apontava o dedinho para os rumos de uma famosa casa noturna que existia no Brejo das Almas de antigamente, cujo denominativo fazia alusão ao único satélite natural da terra. Ali, a “casta” boemia brejeira em surdina e solapa “marcava o ponto”. 

Outras vezes tinha ela o recesso sacrossanto do lar interrompido por moçoilas desesperadas por se acharem balzaquianas devido ainda não ter surgido em suas vidas o príncipe brejeiro encantado. Elas chegavam e já iam intimando Dona Lurdes, como se fosse, aquele divino ser, responsável pelos seus respectivos insucessos no amor.

-E então, dona Lurdes... Como é que eu fico? –Já passou o dia de Santo Antonio, já fiz todas as rezas, mandingas e simpatias e até agora “não caiu nenhum bem-querer nos meus braços”. O que mais eu devo fazer? A solidão está me consumindo toda. Assim não pode... Assim não dá!

Diante de situações extremas como esta aquela boa senhora, com a simplicidade que lhe era peculiar, fitava a amiguinha consulente, de alto a baixo e no final disparava:

-Você já ouviu falar em maquiagem? Batom, pó de arroz, esmalte, por exemplo... Já experimentou usar uns paninhos melhores? E este pisantinho de dedos, já pensou trocar? Você alguma vez saiu para dançar? Conhecer pessoas, ou é daquelas que ficam enfurnadas em casa!

Como naqueles tempos muitas dessas novidades não faziam parte do cotidiano de beldades brejeiras, minhas conterrâneas, recatadas por natureza, a resposta negativa era mais que previsível. Ai dona Lurdes arrematava:

-Então, você tem que acabar com essa mania de jogar tudo nas costas do santo. Ele tem outros afazeres. O santo só ajuda quem se ajuda. Se você não fizer a sua parte, vai morrer seca. Você tem que ir à luta. Correr atrás. Cobra que não anda não engole sapo, menina!

Certa feita o “quem-quem” transbordou. Ao baixarem as águas, as vazantes ficaram cobertas de peixes. Informada, por quem nunca se soube, pois este rio fica distante da cidade, ao norte de Francisco Sá, e antes que alguém empreendesse a “colheita” dos curimbas que se debatiam no lodo, dona Lurdes, taxativa, foi logo adiantando: 

-Negativo. Ninguém vai comer isso. Eles estão envenenados e impróprios para o consumo humano. Vivalma alguma, diante daquele assertivo aviso se atreveu a por a mão naquelas “bocas protráteis”.

Eduardo “Duia” andava de um lado para outro. Algo de sério o preocupava. Ele não era dado a crendices. Muito inteligente preferia resolver as coisas à sua maneira, privilegiando sempre o lado material.

-Duia! –Ela assim o chamava.

-Fala Lurdes, respondeu-lhe Eduardo.

-Enquanto você não aprender a rezar direito, isso ai que você está querendo fazer não vai dar certo!

-E o que é que eu estou querendo fazer, mulher? 

-Você sabe! 

Passada uma semana, Eduardo “Duia” puxava de uma perna. A bela montaria, brava e arredia, pela qual trocara seu manso cavalinho sem que dona Lurdes soubesse, o atirara ao chão na primeira pernada.

Movido pela curiosidade, quando eu estava para sair do Brejo fui ter com ela. Naquele dia falei com ambos. Nas poucas vezes que lá estive sempre fui recebido com carinho. Ao me despedir ouvi de dona Lurdes esse comentário, dirigindo-se a Eduardo.

-Esse menino dificilmente vem aqui. Aliás, se bem me lembro, vi-o umas duas ou três vezes. Dessa vez ele veio aqui para me perguntar alguma coisa, mas se acanhou. Mais eu sei o que ele ia me perguntar.  E olhando para mim acenava e dizia:

-Vá com Deus, menino. Vai dar tudo certo na sua vida. Siga em frente. Basta você acreditar.

É o que tenho feito até hoje. E não tenho do que reclamar. Claro, depois de ter ralado muito na vida.

É...

Por vezes, ou quase sempre, assim como o navegar, acreditar também é preciso.

E tenho dito!

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

Aos meus leitores:
Á partir de outubro/12 postarei somente uma crônica por mês.
Abraços.