sábado, 27 de abril de 2013

CENAS BREJEIRAS 9 – CREUZÃO



CENAS BREJEIRAS 9 – CREUZÃO

*Enoque Alves Rodrigues
 
Nascida em São Geraldo, à época, diminuta comunidade pertencente ao Município de Francisco Sá ou Brejo das Almas, ao norte das Gerais, Creuza Maria dos Santos, ou Creuzão, codinome alusivo ao seu porte avantajado, desde muito cedo batalhava pela própria subsistência. Aquele divino ser dava um duro dos diabos nas fazendas adjacentes vendendo dias de serviço assim como nós, marmanjos. Responsável pela cozinha, ela realizava verdadeiros milagres na criação de apetitosas gamelas que ela própria se encarregava de levar até as frentes de trabalho onde nós, peões roceiros depois de cansativa manhã de labuta no cabo da foice, entre, cascavéis e teiús, famintos e famélicos, as detonávamos. Se você for um bem nascido que jamais pisou em bosta de vaca não vai saber do que estou falando. Talvez você nunca tenha visto uma gamela. Bem, se você ainda não a conhece, permita-me apresenta-la ainda que extemporaneamente. Ao contrário do que muitos pensam as atribuições de uma gamela iam muito além de um reles e tosco utensílio de cozinha. Não entendeu? Explico: Era ao redor de uma gamela onde era servida a mesma refeição para todos, que nós nos juntávamos, cada qual com uma colher para, respeitando o sagrado espaço pertencente ao outro, almoçarmos. É, portanto, a gamela, de madeira ou de barro, (eu preferia ás de madeira), o mais nobre e importante invento da humanidade até hoje. Capaz de promover a ordem e costumes elementares de educação e honestidade (ninguém se apoderava do mais carnudo pedaço que não fosse seu, não obstante estar ali debaixo de seus olhos), a gamela ainda consolidava o que hoje se considera a maior das utopias que é a paz e união “entre os povos” além de aglutinar em torno de si todas as espécies. Ao redor de uma boa gamela os inimigos se confraternizavam. Não existiam desiguais. Ali, todas as diferenças se ajustavam. Todos os prumos se alinhavam. Os contrários se atraiam. E todos os feios eram bonitos. Era, portanto, incomensurável o poder da gamela. Igualdade para todos, devia ser o lema do gameleiro.

Agora que você já sabe o que é uma gamela, vamos falar um pouco sobre Creuzão, a deusa negra que ilustra esta minha crônica brejeira de Maio-13.

Pele preta, alta, gorda e “magra”. Mineirismo á parte, são estes alguns traços fisionômicos de Creuzão que por si só, nenhuma atração despertaria ao mais simples dos mortais. Culta, falante e sensível. Mudou alguma coisa? Claro, agora, podemos conversar!

Enquanto conseguiu driblar a necessidade, ela estudou na mesma Escolinha que este que vos fala. Lembram-se da Escolinha de uma porta só? Pois é, foi lá. Quando, juntos, conseguimos decifrar a primeira palavra que Florisbela Martins escreveu no quadro negro, “estrangeiro” que nos colocaria no rol dos alfabetizados, a vida lhe desferiu um grande golpe. Perdeu a mãe. Tinha nove anos. Grande foi á batalha travada pelo senhor Alfredo, seu pai, no sentido de protelar o máximo a saída de Creuzão da Escola. Destarte, foi vencido, e por isso não demorou muito para que Alfredo optasse por levar Creuzão para o trabalho onde, infante ainda, especializou-se na divina arte de cozinhar.

Venúcios, Rosalino, Juca, Idalino, Senhorzão, Saturnino, Pompilio e muitos outros fazendeiros regionais tiveram, sem que o soubessem, a honra de tê-la, um dia, pilotando um fogão de lenha em suas respectivas fazendas. Mas foi por pouco tempo, por que não demorou muito e Bimbim, um parente distante de meu querido avô, encantado com seus dotes culinários a “sequestrou”, tirando-a da cozinha das fazendas. Agora ela podia ser encontrada dando expediente na cozinha da Pensão da Dona Quinor, no Centro do Brejo, onde ficou durante algum tempo.

Alvissareiras foram as noticias que recebi do amigo Badú aqui em São Paulo, dez anos depois, a respeito de Creuzão. Informava o conterrâneo recém-chegado que Creuzão já não estava mais no Brejo. Que deixara o emprego na Pensão. Que ela havia se casado e agora possuía um luxuoso e muito bem movimentado Restaurante em Bairro nobre de Belo Horizonte, ou melhor, no Pampulha, próximo ao Aeroporto.

No fim daquele ano visitei minha tia Tatá que residia em BH no Jardim Laguna. Como sempre gostei de prestigiar a garra do ser humano principalmente enaltecendo o sucesso daqueles que vieram de baixo, não fosse sempre assim e eu não teria hoje tantas histórias para contar, aproveitei para dar um pulo até o Pampulha. Eu não tinha o endereço, mas tinha o nome. “Bar e Restaurante Flor da Pampulha”. Não foi difícil encontra-lo. Com três indagações eis-me de fronte ao mesmo. Tudo que Badú me relatou de luxo e badalação e que em alguns momentos cheguei a duvidar, foi pouco.

Logo na entrada havia um tapete vermelho sob toldo esverdeado em forma de espiral que começava na calçada e terminava na grande e emoldurada porta de entrada onde clientes em fila indiana transitavam em trajes elegantes de executivos enquanto as damas ostentavam pulseiras e colares de ouro e vestidos longos. Intrigado, eu, que nas fazendas brejeiras sempre comi das gameladas de Creuzão vestido “impecavelmente” de minha única calça “arranca toco” toda remendada e camisa confeccionada de saco alvejado de algodão, calçado de alpargatas de couro cru feitas pelo meu saudoso avô, não conseguia imaginar as razões, daquela pompa toda de uma aristocracia fria e burra que vivia em uma Metrópole idem, apenas para se alimentar. O que será que aquela gente comeria? Que prato Creuzão prepararia de tão especial e apetitoso para agradar tanto o paladar exigente e refinado daqueles grã-finos? Em que local encontraria Creuzão dentro daquele mausoléu de mármore, granito importados e porcelanas chinesas? Como ela se comportaria ao ver-me ali? Será que me reconheceria? Falaria comigo ou fingiria que nunca me viu? O que eu lhe diria?

Bem, eu havia ido ali não para satisfazer minha curiosidade, mas para motivar-me com a constatação de que nada é impossível para os que trabalham.
   
No entanto, brejeiros, meus diletos conterrâneos, vocês concordam que eram muitas as dúvidas que eu tinha? Como dirimi-las durante aquele curto espaço de tempo que ali permaneci? Sim, por que desde cedo eu aprendi que em nenhuma circunstância se deve avançar quando se tem mais que uma dúvida. E eu tinha várias. Avançaria assim mesmo?

Não. De forma alguma. Aquele gesto poderia causar constrangimentos desnecessários a ela e a mim. Não me aproximaria nem mais um milímetro.

Para “não perder a viagem” por que, afinal, do saco a embira, uai, aguardei do lado de fora pacientemente á saída de algum serviçal. Quando finalmente isso ocorreu me aproximei, tímido, mas jeitoso.

- Por gentileza, “migô” (era assim que se chamava amigo naquele tempo em BH), poderia me dar uma informação?

- Claro. Como não?

- Você trabalha aqui?

- Sim, trabalho!

- Quem é o seu patrão?

- Não tenho patrão... Tenho patroa... É a dona Creuza!

- Creuza?

- Sim. Creuza!

- Creuza de que?

- Creuza Maria dos Santos... É a minha patroa. E acrescentou – tremenda gente fina. E saber que veio do nada... E o pior, nasceu num tal de São Geraldo no Município de um lugar esquisito que tem dois nomes, Brejo das Almas e Francisco Sá, que, aliás, ninguém conhece... Parece que fica lá “no norte”. E olhando pelos lados como se não desejasse que ninguém mais além de mim o escutasse, baixou o tom da voz e aos meus ouvidos sussurrou: “eu acho que quem nasce no brejo é sapo, mais a dona Creuza é tão boa que nem parece ter nascido lá!”.

Maldição... Por mil demônios. Outra vez aquela história de sapo nas minhas orelhas! Será que aquele infeliz me conhecia? Sabia, porventura, que eu era brejeiro?

Eu já estava convencido. Nem precisava de tantos detalhes. Agradecido, retirei-me, sem entrar.

- Muito obrigado, “migô!”, pelas informações.

- Sempre ás ordens... Num tem importância... Até logo... Deus te crie. Respondeu-me, cerimonioso, o serviçal.

É...

Por vezes, quando não se tem o que dizer ou garrafas vazias para quebrar, sair à Francesa é a melhor das estratégias.

E tenho dito!

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais.

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