sábado, 29 de outubro de 2011

GENTE DO BREJO - GERALDO MAZZAROPI

GENTE DO BREJO  -  GERALDO MAZZAROPI

Enoque Alves Rodrigues

Durante muitos anos, quando a precariedade das comunicações imperava nas pequenas cidades do norte de Minas, a Prefeitura Municipal de Francisco Sá, ou melhor, do querido Brejo das Almas,  tomou a iniciativa de criar seu próprio sistema de som. Uma velha Kombi caindo aos pedaços, de “cor daltônica”, sim, por que Cristão algum conseguia distinguir qual era a cor da danada, de tão suja que se apresentava, era utilizada nesse serviço. Alguns, quando chovia, arriscavam em afirmar meio, mineiramente, que a cor da Kombi era branca, devido pingos de chuva mais afoitos terem conseguido remover o encardido que existia sobre o teto externo. Outros, numa ilusão de ótica iminente, talvez sugestionados pela predominância da cor da terra Brejeira,  teimavam em dizer que a cor da Kombi era vermelha. Alguns mais inadvertidos ou com algumas doses de cana na cuca juravam que a cor daquela Kombi era amarela, lilás, azul, verde, etc. Na verdade, nenhum Brejeiro em pleno gozo de suas faculdades mentais possuía assertividades suficientes para tais afirmações. Instados a definir com exatidão aquela cor, apropriavam-se de palavras desconexas de nosso peculiar mineirismo, que é quando falamos tudo sem dizermos nada, a fim de não penhorarmos nossa palavra com afirmações das quais não temos a convicção plena, e mandavam:

- “Noquinho, posso lhe afirmar com toda certeza do mundo que a cor desta Kombi da Prefeitura é vermelha, mas olhando melhor, me parece que é azul, cinza, roxa, rosa, sei lá...”

- “Uai, sô, mas assim você não está afirmando nada. Qual é a cor da Kombi, afinal?” Bem... Deixa pra lá...

Completando a parafernália da qual vinha falando, instalaram-se um potente alto falante sobre o teto da Kombi e, dentro da dita cuja, um locutor com voz semelhante a do grande ícone do Cine Comédia Brasileiro, o saudoso  Amácio Mazzaropi, nascido aqui em São Paulo, no bairro do Brás, mas que passou quase toda a sua vida na Cidade de Taubaté, rasgava o verbo. Tendo como fundo musical a toada melosa e porque não dizer machista denominada “empreitada perigosa” (Quem tem mulher que namora, quem tem burro empacador. Quem tem a roça no mato,  me chama que jeito eu dou... Eu tiro a roça do mato e sua lavoura melhora. E o burro empacador eu corto ele na espora e a mulher namoradeira passo o couro e mando embora...), composta pelo quase conterrâneo, o Montesclarense Tião Carreiro, que formava dupla com Pardinho, ouviam-se: “Alô brejeiros, aqui vos fala Geraldo Mazzaropi. Por iniciativa do Excelentíssimo Senhor Prefeito de Francisco Sá, tenho a honra de convidar você e digníssima família,  para os festejos comemorativos pelo aniversário de nossa bem administrada cidade...”

Geraldinho Mazzaropi, assim o chamávamos, além da entonação da voz que, como já disse, que era idêntica a do velho “Mazza”, tinha também todos os jeitos e trejeitos do Jeca de Taubaté: nádegas propositadamente estufadas para trás, pernas lânguidas e andar meio ziguezagueante como se fosse um frango d’água.  Os Brejeirinhos, ao vê-lo, logo se acercavam dele, que sempre solicito, lhes dizia: “qual é a historinha de Jeca que vocês querem ouvir hoje?”

-  Sabem aonde o Jeca pegou aquele peixão?

-  Nãããããão!

- Perguntem pro homem do Emulsão. 

- Ahhhhh!

Referia-se ao Emulsão Scott em cuja  embalagem havia um homem com um peixe às costas.

 “Domingo ás 20 horas tem espetáculo no majestoso Cine e Teatro Mineiro... Não percam o duelo do século: O grandalhão “João Váine” (não conseguia pronunciar John Wayne) vai enfrentar o sela de prata “Juliano Gema” (Giuliano Gemma). Vai ser tiro para todos os lados. Vamos lá para ver quem vai vencer. Brejeiros, façam suas apostas...”

Pronto, a sorte estava lançada. Nas escolas, bares e alamedas, Brejalminos confabulavam-se e no final deixavam seus palpites sobre quem supunham seria o vencedor do duelo. Mal conseguíamos esperar pelo domingo. Cheios de entusiasmos, acorríamos todos ao velho Cine Mineiro. Sentávamos quase sempre nas primeiras fileiras para não perdermos nenhum lance. Expectativa... Adrenalina a mil... Atônitos e eufóricos... Espera difícil. O filme não começava. Murmúrio geral. Brejeiros inquietos:

- Uai, sô, mas cadê esse trem de filme que não começa?

- Sei lá... Uai... Espere um pouco... Aquele que está lá atrás com um carretel de filme nas mãos não é o Geraldinho Mazzaropi?

- Ih... É ele mesmo! 

- Deu crepe... O tão anunciado e esperado filme enroscou todo antes mesmo de ter começado. Enquanto isso, Geraldinho, que era um “faz de tudo”, agora estava com um dos lados do carretel em uma das mãos, enquanto com o dedo  puxava a ponta da fita cinematográfica, na tentativa de endireita-la dentro do carretel para que não houvesse cortes ou comprometimento da imagem. Mesmo com todo esse esforço, tais ações resultavam-se,  quase sempre, ineficazes, pois do começo ao fim do filme, pouca coisa se aproveitava. Cortes longos e intermitentes muitas vezes, de cenas inteiras, impediam que até mesmo as mais férteis das imaginações concatenassem idéias ou tivessem a mais simples e mísera noção de como seria realmente o enredo do filme e seu final. Entretanto, frustrações “tenebrosas” ainda estavam por vir.

Após passarmos longas horas assentados, com os “quartos” doloridos e a bexiga sobrecarregada reclamando pelo xixizinho básico e imediato, eis que surge, afinal, para a alegria de todos e felicidade geral da nação brejeira, o tão esperado fim do filme e o duelo “de titãs”, finalmente ia começar.

De um lado, Wayne com seu inseparável cigarrão em um dos cantos da boca e com duas tremendas pistolas, uma em cada coldre. Do outro lado, Gemma, equipado igualzinho a Wayne. Ao lado de cada um deles, suas montarias. Ao fundo, vários casarões de madeira com alpendres, onde moçoilas se achavam debruçadas para assistirem o espetáculo de horror. Em um barzinho de araque, vários bebuns observam. Em frente à Igrejinha, também de araque, o Padre e o Sacristão faziam o sinal da cruz. Lá no front os dois homens fitam-se com ódio nos olhos. Dão algumas voltas como se estivessem estudando um ao outro. Olhar tenso. Wayne, de tanta raiva, treme os músculos da face e cerra os dentes, rompendo em dois o cigarrão, cujo pedaço, vai ao chão. Gemma, também treme todo, da cabeça aos pés. Acometido de mortal ojeriza pelo desafeto Wayne, começa a piscar um dos olhos. Não entendíamos nada. Perdemos as principais cenas do filme. Meu Deus, quais foram os motivos que levaram aqueles dois homens ao ápice da ignorância humana? Porque se odiavam tanto?

Numa sintonia de fazer inveja a perfeição da Mãe Natureza, sacaram de uma só vez suas respectivas pistolas e abriram fogo um contra o outro. Baixadas a fumaça das saraivadas de tiros e a poeira levantada pelo tropel das montarias, agora, jaziam, ali, inertes, dois corpos estendidos no chão. Morreram-se os dois.

Para nossa decepção, pelo menos daquela vez, ou enquanto os dedinhos ágeis de Geraldinho Mazzaropi tivessem forças para seguir rebobinando aquela “maldita” fita, não houve ganhadores. Todos perderam. Inclusive nós.

Deu empate!

Enoque Alves Rodrigues, brejeiro de nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia, é Escritor com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil. Visitem meu blog: Pra variar, é sobre Francisco Sá: http://enoquerodrigues-earodrigues.blogspot.com/  http://www.facebook.com/profile.php?v=info&edit_info=all&ref=nur

sábado, 15 de outubro de 2011

FRUSTRAÇÕES NATURAIS – FRANCELINO DO AREAL

FRUSTRAÇÕES NATURAIS – FRANCELINO DO AREAL

Enoque Alves Rodrigues

Alguns mais antigos devem ter ouvido falar ou talvez conhecido o meu personagem da crônica de hoje. Francelino do Areal, cujo “sobrenome” vinha da denominação da Fazenda Areal, de sua propriedade que ficava no Município de Francisco Sá. Ali Francelino cultivava alho, arroz, feijão, algodão, milho, e outras culturas. Criava também gados de corte, que vendia para um hoje inexistente Frigorífico que ficava no bairro Malhada Santos Reis, em Montes Claros. Festeiro contumaz, Francelino era devoto de Nossa Senhora e de todos os santos, principalmente de São Gonçalo, Padroeiro do lugar. Todas as festas do Brejo das Almas de então, tinham-no como seu principal idealizador. Já na véspera ouviam-se ao longe os foguetórios. As bandeiras dos santos saiam do Largo da Igreja Matriz sempre com Francelino a frente rezando “um bendito é o fruto entre as mulheres” e pedindo para que os marmanjos devotos abrissem alas para que o Santo pudesse passar. “Sai da frente bando de bebuns que o Santo precisa passar”, dizia. Aos renitentes que insistiam em não abrir espaço, empurravam com uma velha bengala. Depois de dar toda uma volta em torno do velho centro, paravam, finalmente, em frente a Igrejinha de São Gonçalo e lá ficavam discursando. Após destacar todas as virtudes do Santo homenageado, iam todos encher a cara nos bares.

Sujeito de palavra, forte e destemido que veio do nada, fizera, graças ao seu elevado espírito de luta, alguma fortuna, que, no entanto, devido as muitas desavenças familiares, numa das quais chegou a levar uma facada na barriga que deixou seus intestinos a mostra, começou a virar pó. Desgostoso, vendeu a Fazenda Areal com tudo que tinha e rumou-se com a família para Grão Mogol, onde  comprou outra fazenda esta bem pequenina, de nome “Três Capões” de onde não mais se teve noticias.

Não me lembro ter feito antes alguma alusão ao grande Francelino. Caboclo brejeiro que dentro de sua simplicidade cultivava hábitos muito salutares, quando se tratava de se obter bons resultados. Empreendedor convicto, daqueles que passam ás 24 horas do dia pensando em como se ganhar mais dinheiro, Francelino era, à sua maneira, um “o Midas do brejo”. Várias eram as abrangências de seus empreendimentos que alcançavam muitos ramos de atividades. Quase analfabeto, mal escrevia, punha nos bolsos muitos doutores das letras que queimavam pestanas e se contorciam todos para ganharem alguns parcos vinténs.

Ligeiro e astuto nos negócios. Mas cordial e generoso com os menos favorecidos. Cauteloso ao extremo, quando algum caboclo se dirigia a ele no sentido de lhe pedir algo fiado ou emprestado, ouvia sempre a mesma cantilena: “num vô lhe fiar ou emprestá nada. Vorte prá sua casa e veja com a Creuza o que ocêis necessita. Eu lhe darei de graça. Se eu te emprestá, ocê num vai ter cuma me pagar. Ocê é meu amigo e ai a nossa amizade vai pro brejo que num é das armas”.

Era um motivador nato. Do alto de sua rústica eloqüência salientava sempre que todos deviam ser como ele que nascera pobre e hoje tinha  mais que o suficiente para viver. Que assim como ele, quando se luta em busca de objetivos, eles acabam “dando as caras”. Contava aos roceiros embrenhados nos eitos de suas roças, várias anedotas que beiravam o inverossímil. Era dado à pesca. Naqueles tempos, hoje tão longínquos, os rios, Verde, São Domingos, Gorutuba, Quem- Quem e até mesmo alguns córregos meio abusados, eram pródigos na oferta de peixes. Havia grandes e importantes espécies de peixes nestes rios, enquanto que nos “córregos abusados” havia desde a traíra até o bagre, que, alias, davam um bom caldo.

No entanto especialmente naquele ano as coisas não estavam muito boas para Francelino. O ano foi de pouca chuva e a lavoura, quase todas as culturas, principalmente as de arroz, feijão e milho, perderam-se no chão de deserto. Corria-se a enxada no chão seco e era só poeira vermelha que levantava. Era de chorar. Francelino, no entanto, não se abalava, ou pelo menos nada demonstrava. Por outro lado, metera-se na Política onde patrocinava amigos correligionários aos pleitos à Prefeitura, Câmara de Vereadores de Francisco Sá e outras cidadezinhas. Mas para tudo há um limite e o limite da tranqüilidade de Francelino chegou exatamente quando ele enviou uma grande manada de gado para determinado frigorífico, em Montes Claros. O negocio havia sido fechado por ele com o dono daquele frigorífico, de tradicional família da velha MOC, há muito tempo.

Lá chegando, com toda a boiada em frente ao frigorífico, o capataz de Francelino foi informado pelo dono do frigorífico, conhecedor dos costumes do caboclo, que teria que voltar com a boiada para Francisco Sá porque seu frigorífico não estava vendendo nada. Que a “crise o estava devorando aos poucos”. E arrematava: “Esta maldita crise não está deixando mais nem um pouquinho de dinheiro para o pobre comprar carne”.

Como naquela época telefone era artigo de luxo até mesmo para certos ricos, o capataz sem saber o que fazer, mas receoso de volver com a boiada sem um prévio aviso ao seu patrão, permaneceu em Montes Claros, designando um peão de sua comitiva para ser o portador daquela triste mensagem. Depois de uma eternidade, o brejeiro finalmente chegou a Fazenda do Areal. Do alpendre do casarão Francelino o avistou ao longe. Logo deduziu que aquele retorno extemporâneo e solitário não lhe traria bons fluidos. Que havia algo de podre no reino da Dinamarca. Que a porca havia torcido o rabo e que não tinha quem o endireitasse. Ou que alguém havia roído a corda e agora cabia a ele consertar.

Ainda no alpendre, já deu um grito:

- “Mateus, Mateus, é ocê?”

- “É ieu, sim, meu pratão!”, respondeu-lhe o pobre vaqueiro, assustado.

- “E por que diabos ocê tá aqui só? Adonde tá Juca com o dinheiro dos boi?”

- “Antonces, meu pratão, é sobre isso qui eu quero falá e mecê num me deja. O cabra lá do figurifi de Monte Craro falô pro Juca qui num tem fulô de abroba (notas de 1000 cruzeiros da época) prá pagá o gado de mecê, apusquê uma tar de crise teve por lá e cumeu todo o frigurifi dele. Que o probe num tem dinhero pra comprá carne apusquê a mardita crise cumeu tamêm o dinhero. Seno assim, meu pratão, é mió qui nóis num vai lá. É muito pirigoso. Eu insisti cum Juca prá num ficá lá e trazê o gado de vorta. Mais ele é temoso Cuma jumento e me obrigô a vim falá cum mecê.”

Educado, comedido e resignado, Francelino entendeu de pronto o que havia acontecido. Calmamente esperou que o peão finalizasse sua fala. Chamou-o para dentro de casa. Ofereceu-lhe água e comida e no final lhe disse:

- “Bem, ocê já feiz a sua parte. Já foi lá e vortô e a crise nun te enguliu. Mais eu tenho lá os meus gado e os meus peão. Vou lá resgatá eles. Fica ai com a Edna, minha muié rezano prá qui eu ainda encontre eles lá Vico. Tumara que a crise nun tenha cumido eles tamêm!”

Pegou seu jeep e rumou-se à caminho de Montes Claros com a consciência plena de que ali chegando teria que renegociar ainda que em suaves prestações a sua boiada com o dono do frigorífico. Que as marés dos mares de Minas realmente não estavam para peixes e que caititu fora de manada é papo pra onça. Ele tinha que entender. Precisava aderir. Tinha que se recompor. A crise quando vem não poupa ninguém. Engole tudo e ai, meu nêgo, salve-se quem puder.

É...

Por vezes, ou quase sempre, quando a coisa está feia é melhor deixar como está para ver depois como é que fica.

Enoque Alves Rodrigues, brejeiro de nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia, é Escritor com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil. Visitem meu blog: Pra variar, é sobre Francisco Sá: http://enoquerodrigues-earodrigues.blogspot.com/  http://www.facebook.com/profile.php?v=info&edit_info=all&ref=nur