CENAS BREJEIRAS 4 – CLEONICE
*Enoque Alves Rodrigues
Ela nasceu no Catuni num tempo em
que o ouro branco, algodão e alho imperavam. Ainda criança veio com os pais
para o centro do Brejo das Almas, Francisco Sá. Residiam, ela, a mãe, o pai e
dois irmãos menores à Rua Lauro Oliveira, próximo ao Grupo Donato dos Santos. Foi
matriculada no Mariquinha Silveira onde desde então passou a estudar com todo
afinco. Parente distante de dona Daza, senhora influente e bem situada na
sociedade Brejalmina de então, não demorou muito para que a pequena Cleonice Rodrigues
Pereira, a Cléo, ainda no curso primário, despontasse para a intelectualidade,
em cujo campo, surpreendentemente, trafegava com grande desenvoltura que
impressionava os mais sábios brejeiros daqueles tempos. Ela discorria com total
naturalidade sobre os mais variados temas.
Além de dota-la de singular
inteligência, a mãe natureza também fora pródiga com Cléo no item formosura. Á
maneira que ela crescia, seus dotes femininos acentuavam-se. Adolescente ainda,
ela se transformou numa deusa de rara beleza. Em todas as paradas de sete de
Setembro, a segurar a flâmula do Mariquinha, durante muitos anos, lá estava
Cléo sempre bonita, alegre e vibrante. Mancebo algum se achava à altura da
beleza e inteligência daquela beldade. Por isso ninguém se atrevia a dirigir-lhe
qualquer gracejo por mais simples e despretensioso que fosse. A beleza dela ao
invés de atrair, afugentava. Rapazes de famílias ricas e tradicionais de
Francisco Sá se acanhavam. Bem que eles queriam se aproximar. No quesito beleza
exterior até que eles se achavam arrumadinhos e não deixavam tanto a desejar,
mesmo muito aquém da beleza de Cléo. Mas o problema mesmo estava no conteúdo.
Na “beleza das ideias”. Ai sim, eles tremiam nas bases qual varas-verdes.
Pulavam miúdos e recuavam de todo e qualquer intento. Cléo era mesmo poderosa e
eles, coitados, “não tinham garrafas vazias para quebrar”. Eram quase bonitos,
mas xucros. Não tinham chances. Será?
Casa Viena, assim como Casa
Branca e Costa Negro, liderou o comércio de Francisco Sá durante décadas. Ali Cleonice empregou-se na condição de
balconista. A notícia correu célere qual rastilho de pólvora. Brejeiros que
faziam compras na Viena difundiam a boa nova numa frenética propaganda
boca-a-boca, a outros brejeiros de várias localidades, cujos comentários não se
referiam a chegada de novidades da Capital, nem a preços e qualidades dos
produtos que, diga-se de passagem, eram bons e imbatíveis. O que eles
propagandeavam eram as curvas sinuosas da balconista que os atendera. Eles não
falavam da inteligência porque no afã de observarem a beleza externa, sequer se
atinham a esse tópico, para eles, desprezível.
Em pouco tempo, as vendas que já
não eram poucas triplicaram. Brejeiros vinham de todas as partes. Eles chegavam
e ao invés de fazerem seus pedidos paravam diante de Cléo e permaneciam
estáticos por alguns minutos. Indagados por ela “o que desejam?”, mineiramente,
titubeavam, respondendo-a:
-Não sei... Parece que eu vim
aqui comprar alguma coisa da qual não me lembro! Depois, disfarçadamente,
pediam um produto qualquer e saiam.
Numa manhã quente outonal, a
cidadezinha de Brejo das Almas, terra dos meus encantos, amanheceu triste. Não
demorou muito para que os falatórios começassem a tomar conta do lugar. A bela
da Casa Viena sumira. Muitos acorreram à Rua Lauro Oliveira. Os portões de
madeira rústica do velho casarão onde ela morava, jaziam silentes e
adormecidos. Os laranjais que outrora, ali existiam cujo perfume das floradas
insistia em competir-se, inutilmente, com o perfume natural da diva, apesar do
vento que varria as ruas, não tremulavam mais. As maritacas comumente
barulhentas em suas algazarras agora mal se entreolhavam. Pintassilgos, sabiás,
pássaros-pretos e beija-flores estavam entristecidos. A velha paineira,
testemunha ocular e privilegiada daquela beleza agora rangia, chorosa. Pudera a
fada, cuja presença radiante lhes alumiava os desejos de seguirem em frente,
não mais se encontrava.
Rua doutor Santos, em frente ao
número 127, em Montes Claros. Naquela época neste número ficava uma pequena
loja que depois se fez grande. Parece-me que a mesma se denominava Geraldino
Boutique. Não tenho certeza, sou brejeiro e apesar de o Brejo das Almas se
encontrarem a apenas dez léguas de distância de Montes Claros, posso dizer que
pouco ou quase nada conheço da bela MOC.
Eu descia mencionada rua. Por
alguns instantes pensei estar sonhando. Não poderia ser verdade. Não era
Cleonice...
Era Cleonice, sim. Mais bonita
impossível. Mais simples bem isso eu não poderia saber. Mesmo menino, eu também
fazia parte do rol dos que tinham medo de se aproximarem dela. Não por eu ser
feio, pois conforme meu pai me dizia, “eu era muito bonito devido parecer com
ele”. Mas eu não estava certo se a minha inteligência a alcançaria. Eu também
não era nenhum “garoto papo firme e que eu saiba, o Roberto, jamais falou de
mim”. Foi assim que ao avista-la do outro lado, timidamente parei. Atravessei a
rua e estendendo lhe a mão em cumprimento, cheio de simpatia, tagarelei:
-Olá, Cléo, como vai? Tudo bem? Você
sumiu do Brejo! O que fazes em Montes Claros? Todos nós sentimos sua falta.
Você está morando por aqui? E seus pais, como estão?
Ao contrário do que eu imaginava
em minha pobre ignorância que envergonharia a mais infeliz e reles das
criaturas, aquele divino ser, simplesmente, retribuiu-me o aperto de mão e após
abrir-me um largo sorriso, calma e educadamente, como se fossemos velhos amigos,
passou a responder o meu sofrível questionário. Falou-me que estava muito bem.
Que havia saído do Brejo temporariamente apenas para acompanhar os pais que
estavam em Montes Claros a trabalho. Que ela estava fazendo curso de
especialização. Que também sentia muitas saudades do Brejo e de sua gente. Que
voltaria em definitivo no próximo ano, etc.
Enquanto ela falava, eu pensava:
Meu Deus, como Cléo era simples! Mesmo farta em tudo, era de uma singeleza sem
tamanho. Quão precipitados fomos por não termos nos aproximado dela antes! Por quais razões havíamos nos subestimado
tanto ao ponto de nos privarmos do convívio de uma pessoa tão sábia e
iluminada? Quantas vezes deixamos de avançar alguns degraus na escada dolorosa da
vida e do saber apenas por imaginarmos que os nossos sentimentos não seriam
correspondidos?
Enquanto conflitava com o meu eu,
Cléo, como se estivesse lendo os meus previsíveis pensamentos, se despedia, com
esta afirmativa.
-Foi muito bom falar com você.
Aliás, pensando bem, a gente jamais se falou. Eu tinha vontade de conversar com
você, mas sou muito tímida e aguardava iniciativa sua nesse sentido. Também não
entendo porque os jovens do Brejo me evitam tanto. Eles praticamente me isolam.
Diabos, isso já era covardia. Eu
não estava ouvindo aquilo!
Informada de que, assim como ela,
todos nós éramos igualmente tímidos e o pior, que sua beleza e inteligência nos
assustavam, sorriu e acrescentou:
Assim fica difícil. Vocês não se
aproximam por acharem que sou mais bonita e inteligente que vocês e eu, de
minha parte, não me aproximava por pensar que vocês fosse um bando de metidos.
Desse jeito viveríamos cem anos no Brejo sem nos falarmos e depois, morreríamos
todos com a certeza plena de que as nossas piores e mutuas impressões eram
verdadeiras. Como? Se jamais nos falamos!
É...
Por vezes, diziam os antigos, se
você quer conhecer e se fazer conhecido, então, fala Mané.
E tenho dito!
*O autor
nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.
Aos meus leitores:
Á partir de outubro/12 postarei somente uma
crônica por mês. Entre as inúmeras atividades difíceis de conciliar, também
estou colaborando ativamente com uma revista de grande circulação nacional e
internacional voltada à divulgação do espiritismo.
Abraços.
Enoque.
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