CENAS BREJEIRAS 6 – ANA LUCÍLIA
DO TABUAL
*Enoque Alves Rodrigues
Ana Lucília. Era esse o nome de
minha primeira professora no curso primário lá no povoado de São Geraldo.
Ela era natural de Tabual,
lugarejo pertencente ao Município de Brejo das Almas ou Francisco Sá, ao norte
de Minas Gerais. Filha de Joaquim Silva e de dona Maria Garcia, foi designada pela
Prefeitura do Brejo para lecionar na pequena São Geraldo, cuja escola tinha
minha mãe como diretora.
Uma vez em São Geraldo, Ana
Lucília, ficava hospedada em casa de dona Dazinha, também professora, esposa de
seu Lau, açougueiro.
De 1959 a 1960 Ana Lucília foi minha
professora e por que não dizer também, a diva que povoava o meu ilimitado mundo
de fantasias, fomentando-o com sonhos bons mais irrealizáveis. “Sweet memories.”.
Naquele tempo de saudosa
lembrança, Ana Lucília não possuía mais que 17 anos. No entanto, inobstante
tratar-se apenas de uma adolescente, todos nós em sinal de respeito e
reverência natural para caracterizar a posição hierárquica que ela mantinha
sobre nós, seus pupilos, a tratávamos por “dona”, numa época abençoada onde o
professor era tido como um segundo pai ou uma segunda mãe, pois os cupins do
desequilíbrio, indisciplina e desamor ainda não haviam corroído as bases
sólidas da sagrada família como ocorre nos dias atuais, quando não mais se
mantém o menor respeito por aqueles que nos ensinam as primeiras letras assim
como os primeiros passos pelos caminhos da vida.
Em meus tempos de infante
escolar, que não foram, de forma alguma, os tempos da palmatória, a única
referência á travessura cometida por um aluno na sala de aula era surrealista,
pois servia apenas como elemento figurativo para ilustrar uma das estrofes da
música, a meu ver, de péssimo gosto, “capeta em forma de guri,”, cantada pelos
Incríveis. Bem, para cantar aquilo, tinham que ser mesmo “incríveis”: “crescendo o menino, pra escola entrou, de
cara feia logo a professora olhou”.
No meio da aula, num teco fatal, mandou um coleguinha logo pro Hospital...
Conheci um capeta em forma de guri...”. Lembram-se?
Antes de sentarmos para fazermos
as nossas lições, guiados pelas suaves mãos da pequena grande mestra, tínhamos de
rezar o Pai Nosso e cantar o hino nacional, assim como também fazíamos em nossa
saída. Éramos orientados a sermos solidários e a tratarmos uns aos outros com
respeito e cordialidade. Recebíamos ali, entremeados com o bê-á-bá e tabuada,
noções de religião, amor a Deus, ao nosso semelhante e à Pátria, embasamentos
singelos, mas fundamentais que nos preparavam para sermos bons cidadãos no
futuro. A minha primeira escola só tinha uma porta que era a mesma de entrada e
saída. Não tinha carteira ou banco escolar que eram improvisados, mas, sem
quaisquer jactâncias, seria até covardia de minha parte comparar o aprendizado
que recebi ali com o de outras escolas que frequentei mundo á fora. Frondosas em
seus interiores e frontispícios e imponentes em seus currículos, mas nenhuma
tão rica e pródiga em ensinamentos como foi minha primeira escolinha. Pois é.
E o que vemos hoje? Vamos analisar?
Lares desestruturados com pais truculentos,
xucros e negligentes que brindam seus filhos, desajustados desde o nascimento,
com péssimos e abomináveis exemplos. No bojo paternalista de um genérico de
governo quinto-mundista veio ás creches e várias ações sociais que, dado ao
baixo nível sociocultural do Brasileiro, tornaram-se fomentadoras da preguiça e
paternidade irresponsável. É muito fácil e gostoso fazer filhos para o estado,
ou seja, para nós, contribuintes responsáveis criarmos. Eles deixam, na maioria
das vezes, toda a educação infantil, inclusive aquela da qual eles, os pais,
não deveriam jamais se abdicar por lhes serem atribuições intransferíveis por
dever constitucional, por conta dos professores que no final, ainda são cobrados
pelos pais inescrupulosos e insolentes, quando algo não sai muito bem para o
seu capetinha. O termo “não sair muito
bem” aqui utilizado significa dizer, quando os professores em pleno exercício
de suas prerrogativas na cruel arte de ensinar, acabam por contrariar as
vontades do capetinha birrento, entojado e mal criado. Há casos extremos aqui
em São Paulo que certamente não se diferem das demais regiões Brasileiras,
aonde alunos, capetinhas e capetões, chegam mesmo a agredir fisicamente seus
professores sob o beneplácito dos pais bundões, e de um risível código penal
bichado, ultrapassado desde o seu nascedouro em 1940, desprovido de efeitos reais
coercitivos que beiram o ridículo e que nenhuma autoridade exerce sobre eles. É
o fim do mundo. Definitivamente eu não seria um bom professor. Talvez seja por isso que Deus não me deu esse
dom apesar de vir de família onde todos exercem com muita honra, orgulho,
galhardia e dignidade esta nobre arte.
Vamos sair dessa zona de turbulência
que muito me aborrece e voltemos á docilidade de dona Ana Lucília, de Tabual,
personagem de minha crônica deste mês.
Geralmente, conforme deixei
entender nas entrelinhas, naquela idade todos nós, garotos, estaríamos
preocupados em identificar outro atributo: a beleza física, por exemplo. Dona
Ana Lucília era demasiado linda, é verdade, mais a pujança de sua beleza
intelectual conseguia sobrepor á lindeza material e isso nos prendia a todos.
Quando abria a boca para falar, nossas atenções eram, imediatamente,
arrebatadas para a sua graciosa e eloquente didática. Educada, paciente,
cordial, enérgica, sorridente, determinada e assertiva. Eram predicados
inerentes àquele divino ser, deusa de rara sabedoria e beleza.
Antes de chegarem às férias escolares daquele
fim de ano, todos nós, seus pequeninos alunos fomos tomados por sensações cujas
causas desconhecíamos. Flutuávamos entre o bom e o ruim. Nos intervalos
recreativos conversávamos entre nós ansiosos por encontrar no outro a
explicação que aguçava nossas curiosidades rumo ao desconhecido. Por mais que
tentássemos, não conseguíamos imaginar o que estaria por acontecer. A merenda à
base de triguilha (trigo in natura) com leite em pó parecia-nos insossa. As
palavras doces de dona Ana Lucília, também pareciam não serem mais as mesmas.
Soavam agora meio que sem sentido. Criança é assim. Um oásis de curiosidade,
mas nenhuma criança foi feita para conviver com curiosidade. Nós não éramos
diferentes. Algo estava por acontecer, disso tínhamos certeza. Uai, o que
seria?.
Duas semanas antes das esperadas
férias, a noticia começou a correr trazida que foi por dona Dazinha de seu Lau:
dona Ana Lucília, a linda e inteligente professorinha não mais continuaria
conosco no próximo ano. O seu saber e todas as suas demais virtudes
intelectuais haviam atravessado as fronteiras limitadas da querida São Geraldo.
Agora, o prefeitão do Brejo julgava importante designa-la para ir cuidar de
outras mentes em formação preparando-as para o porvir. Por certo ele entendeu
que nós lá em São Geraldo já havíamos atingido o estágio necessário aos
desafios que a vida nos traria. Ela foi promovida e depois transferida para
Porteirinha, a pedido do prefeitão de lá, de onde jamais tivemos noticias. Nos
primeiros dias do seguinte ano letivo nos sentíamos meio que órfãos, mas depois
“o furacão” do saber e ensinar de nome dona Florisbela Martins, (a quem dedico
á flor animada que cintila e enfeita o introito desta minha crônica), obedecendo
como a um cão de guarda, aos comandos da dona Nazir, preencheu, imediatamente,
a altura, os espaços deixados por dona Ana Lucília. Dali é possível que não
tenha saído nenhum grande vulto exponencial que pudesse revolucionar o podre mundo
da politica, das belas artes ou do saber, ou quiçá, com alguma notoriedade relevante
em outros patamares da vida. Mas de uma coisa estejam certos e convictos: De lá
saíram cidadãos íntegros e cônscios de seus direitos e deveres sociais e acima
de tudo, exemplares pais de família que sabem que a verdadeira educação e
disciplina começam em casa e que a escola, com seus professores mal remunerados
por um Governo hipócrita, inepto e capenga, preocupado apenas com suas
avaliações pífias e tendenciosas, salas de aulas sucateadas e imundas, caindo
aos pedaços, milagrosamente apenas as complementam.
Ou eu estou errado.
Desculpe-me, dona Ana Lucília,
onde quer que a senhora esteja. Mas, neste finalzinho de minha crônica não me
foi possível segurar a onda. Sóbrio, comedido e educadamente, claro, pois foi
assim que minha santa mãezinha, a senhora e o mundo me ensinaram.
É...
Por vezes, necessário se faz cutucar
o gigante que dorme deitado eternamente em berço esplêndido para ver se ele
acorda para cuspir, uai.
E tenho dito!
*O autor nasceu em Brejo das
Almas, Francisco Sá, MG.