CENAS BREJEIRAS 9 – CREUZÃO
*Enoque Alves Rodrigues
Nascida em São
Geraldo, à época, diminuta comunidade pertencente ao Município de Francisco Sá
ou Brejo das Almas, ao norte das Gerais, Creuza Maria dos Santos, ou Creuzão,
codinome alusivo ao seu porte avantajado, desde muito cedo batalhava pela
própria subsistência. Aquele divino ser dava um duro dos diabos nas fazendas
adjacentes vendendo dias de serviço assim como nós, marmanjos. Responsável pela
cozinha, ela realizava verdadeiros milagres na criação de apetitosas gamelas
que ela própria se encarregava de levar até as frentes de trabalho onde nós,
peões roceiros depois de cansativa manhã de labuta no cabo da foice, entre, cascavéis
e teiús, famintos e famélicos, as detonávamos. Se você for um bem nascido que jamais
pisou em bosta de vaca não vai saber do que estou falando. Talvez você nunca
tenha visto uma gamela. Bem, se você ainda não a conhece, permita-me
apresenta-la ainda que extemporaneamente. Ao contrário do que muitos pensam as
atribuições de uma gamela iam muito além de um reles e tosco utensílio de
cozinha. Não entendeu? Explico: Era ao redor de uma gamela onde era servida a mesma
refeição para todos, que nós nos juntávamos, cada qual com uma colher para,
respeitando o sagrado espaço pertencente ao outro, almoçarmos. É, portanto, a
gamela, de madeira ou de barro, (eu preferia ás de madeira), o mais nobre e
importante invento da humanidade até hoje. Capaz de promover a ordem e costumes
elementares de educação e honestidade (ninguém se apoderava do mais carnudo
pedaço que não fosse seu, não obstante estar ali debaixo de seus olhos), a
gamela ainda consolidava o que hoje se considera a maior das utopias que é a
paz e união “entre os povos” além de
aglutinar em torno de si todas as espécies. Ao redor de uma boa gamela os
inimigos se confraternizavam. Não existiam desiguais. Ali, todas as diferenças
se ajustavam. Todos os prumos se alinhavam. Os contrários se atraiam. E todos
os feios eram bonitos. Era, portanto, incomensurável o poder da gamela.
Igualdade para todos, devia ser o lema do gameleiro.
Agora que você
já sabe o que é uma gamela, vamos falar um pouco sobre Creuzão, a deusa negra
que ilustra esta minha crônica brejeira de Maio-13.
Pele preta, alta,
gorda e “magra”. Mineirismo á parte,
são estes alguns traços fisionômicos de Creuzão que por si só, nenhuma atração
despertaria ao mais simples dos mortais. Culta, falante e sensível. Mudou
alguma coisa? Claro, agora, podemos conversar!
Enquanto
conseguiu driblar a necessidade, ela estudou na mesma Escolinha que este que
vos fala. Lembram-se da Escolinha de uma porta só? Pois é, foi lá. Quando,
juntos, conseguimos decifrar a primeira palavra que Florisbela Martins escreveu
no quadro negro, “estrangeiro” que
nos colocaria no rol dos alfabetizados, a vida lhe desferiu um grande golpe. Perdeu
a mãe. Tinha nove anos. Grande foi á batalha travada pelo senhor Alfredo, seu
pai, no sentido de protelar o máximo a saída de Creuzão da Escola. Destarte,
foi vencido, e por isso não demorou muito para que Alfredo optasse por levar
Creuzão para o trabalho onde, infante ainda, especializou-se na divina arte de
cozinhar.
Venúcios,
Rosalino, Juca, Idalino, Senhorzão, Saturnino, Pompilio e muitos outros
fazendeiros regionais tiveram, sem que o soubessem, a honra de tê-la, um dia,
pilotando um fogão de lenha em suas respectivas fazendas. Mas foi por pouco
tempo, por que não demorou muito e Bimbim, um parente distante de meu querido
avô, encantado com seus dotes culinários a “sequestrou”,
tirando-a da cozinha das fazendas. Agora ela podia ser encontrada dando
expediente na cozinha da Pensão da Dona Quinor, no Centro do Brejo, onde ficou
durante algum tempo.
Alvissareiras
foram as noticias que recebi do amigo Badú aqui em São Paulo, dez anos depois,
a respeito de Creuzão. Informava o conterrâneo recém-chegado que Creuzão já não
estava mais no Brejo. Que deixara o emprego na Pensão. Que ela havia se casado
e agora possuía um luxuoso e muito bem movimentado Restaurante em Bairro nobre
de Belo Horizonte, ou melhor, no Pampulha, próximo ao Aeroporto.
No fim daquele
ano visitei minha tia Tatá que residia em BH no Jardim Laguna. Como sempre
gostei de prestigiar a garra do ser humano principalmente enaltecendo o sucesso
daqueles que vieram de baixo, não fosse sempre assim e eu não teria hoje tantas
histórias para contar, aproveitei para dar um pulo até o Pampulha. Eu não tinha
o endereço, mas tinha o nome. “Bar e Restaurante Flor da Pampulha”. Não foi
difícil encontra-lo. Com três indagações eis-me de fronte ao mesmo. Tudo que
Badú me relatou de luxo e badalação e que em alguns momentos cheguei a duvidar,
foi pouco.
Logo na
entrada havia um tapete vermelho sob toldo esverdeado em forma de espiral que
começava na calçada e terminava na grande e emoldurada porta de entrada onde
clientes em fila indiana transitavam em trajes elegantes de executivos enquanto
as damas ostentavam pulseiras e colares de ouro e vestidos longos. Intrigado,
eu, que nas fazendas brejeiras sempre comi das gameladas de Creuzão vestido “impecavelmente” de minha única calça “arranca toco” toda remendada e camisa confeccionada de saco alvejado de algodão,
calçado de alpargatas de couro cru feitas pelo meu saudoso avô, não conseguia
imaginar as razões, daquela pompa toda de uma aristocracia fria e burra que
vivia em uma Metrópole idem, apenas para se alimentar. O que será que aquela
gente comeria? Que prato Creuzão prepararia de tão especial e apetitoso para
agradar tanto o paladar exigente e refinado daqueles grã-finos? Em que local encontraria
Creuzão dentro daquele mausoléu de mármore, granito importados e porcelanas
chinesas? Como ela se comportaria ao ver-me ali? Será que me reconheceria?
Falaria comigo ou fingiria que nunca me viu? O que eu lhe diria?
Bem, eu havia
ido ali não para satisfazer minha curiosidade, mas para motivar-me com a
constatação de que nada é impossível para os que trabalham.
No entanto, brejeiros, meus diletos
conterrâneos, vocês concordam que eram muitas as dúvidas que eu tinha? Como
dirimi-las durante aquele curto espaço de tempo que ali permaneci? Sim, por que
desde cedo eu aprendi que em nenhuma circunstância se deve avançar quando se
tem mais que uma dúvida. E eu tinha várias. Avançaria assim mesmo?
Não. De forma
alguma. Aquele gesto poderia causar constrangimentos desnecessários a ela e a
mim. Não me aproximaria nem mais um milímetro.
Para “não perder a viagem” por que, afinal,
do saco a embira, uai, aguardei do lado de fora pacientemente á saída de algum
serviçal. Quando finalmente isso ocorreu me aproximei, tímido, mas jeitoso.
- Por
gentileza, “migô” (era assim que se
chamava amigo naquele tempo em BH), poderia me dar uma informação?
- Claro. Como
não?
- Você
trabalha aqui?
- Sim,
trabalho!
- Quem é o seu
patrão?
- Não tenho
patrão... Tenho patroa... É a dona Creuza!
- Creuza?
- Sim. Creuza!
- Creuza de
que?
- Creuza Maria
dos Santos... É a minha patroa. E acrescentou – tremenda gente fina. E saber
que veio do nada... E o pior, nasceu num tal de São Geraldo no Município de um
lugar esquisito que tem dois nomes, Brejo das Almas e Francisco Sá, que, aliás,
ninguém conhece... Parece que fica lá “no
norte”. E olhando pelos lados como se não desejasse que ninguém mais além
de mim o escutasse, baixou o tom da voz e aos meus ouvidos sussurrou: “eu acho que quem nasce no brejo é sapo,
mais a dona Creuza é tão boa que nem parece ter nascido lá!”.
Maldição... Por
mil demônios. Outra vez aquela história de sapo nas minhas orelhas! Será que
aquele infeliz me conhecia? Sabia, porventura, que eu era brejeiro?
Eu já estava convencido.
Nem precisava de tantos detalhes. Agradecido, retirei-me, sem entrar.
- Muito
obrigado, “migô!”, pelas informações.
- Sempre ás
ordens... Num tem importância... Até logo... Deus te crie. Respondeu-me,
cerimonioso, o serviçal.
É...
Por vezes,
quando não se tem o que dizer ou garrafas vazias para quebrar, sair à Francesa
é a melhor das estratégias.
E tenho dito!
*O autor
nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais.
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