domingo, 6 de janeiro de 2013

BREJO DAS ALMAS - 75 ANOS SEM JACINTO



BREJO DAS ALMAS - 75 ANOS SEM JACINTO

*Enoque Alves Rodrigues

Brejo das Almas, 17h30m do dia 8 de Janeiro de 1938. Com quase 67 anos, falecia, depois de padecer por doze anos do mal de Parkinson, no Brejo das Almas, ou Francisco Sá, distante 480 quilômetros da Capital Belo Horizonte, ao norte de Minas Gerais, Jacinto Alves da Silveira. Portanto, brejeiros, hoje, terça-feira, oito de Janeiro de 2013, o nosso Brejo completa 75 anos sem o seu fundador, ou principal responsável por sua emancipação politico-administrativa.

A Parkinson é idiopática, ou seja, é uma enfermidade primária de causa obscura. Há deterioração e morte celular dos neurônios produtores de dopamina. É, por isso, uma doença degenerativa do sistema nervoso central, com início geralmente após os 50 anos de idade. É uma das patologias neurológicas mais frequentes visto que sua prevalência situa-se entre 80 e 160 casos por cem mil habitantes, acometendo, aproximadamente, 1% dos indivíduos acima de 65 anos de idade. Apesar do muito que já se pesquisaram, decorridos quase duzentos anos do descobrimento desta gravíssima doença por James Parkinson, pouco ou quase nada se sabe sobre suas causas.

O fato é que, deve-se a ela, todas as consequências de doze anos de sofrimentos que vitimaram o grande e insubstituível benfeitor de nossa Cidade. Tudo começou quando ainda vereador em Montes Claros, no momento em que lutava pela aprovação de mais um projeto que beneficiaria o Brejo. Ali ele sentiu as primeiras dores no dedo indicador da mão direita, que insistia em não obedecer aos seus comandos. Seu colega de partido, Antônio Ferreira de Oliveira, o Niquinho “Açúcar”, ou Farmacêutico, é quem conta com todos os detalhes, o inicio desse duradouro tormento, que, como já mencionei, doze anos depois ceifaria a vida do nosso mais ilustre Brejeiro.

Jacinto Alves da Silveira foi, até hoje, o único capaz de reunir todos os predicados que habilitam qualquer individuo a afirmar ter vivido a vida em toda a sua plenitude na prática do bem. Descendente de famílias de Ouro Preto, assim como os Pena, Oliveira, Dias, Xavier, entre outras, esta última pertencente à genealogia do grande Mártir da Inconfidência, o Tiradentes, Jacinto, um dos muitos filhos do velho Fazendeiro José Alves da Silveira, nasceu no Brejo, lá pelos idos de 1871, quando o Brejo sequer sonhava em ter as feições de hoje. Ao contrário, assemelhava-se, muito mais, ao longínquo dois de novembro de 1704, quando não passava de uma vasta mata às margens dos rios Verde Grande, São Domingos e Gorutuba, onde Antonio Gonçalves Figueira, dono de várias fazendas na região, fincou pela primeira vez, ao lado da Lagoa das Pedras, o imenso cruzeiro que marcaria para sempre, no tempo e no espaço, o inicio de uma nova era, de uma promissora civilização e de uma progressista Cidade, como o próprio Bandeirante profetizara. Jacinto, ao contrário de seus outros irmãos que eram todos Fazendeiros, desde a infância, apesar de rústico, já se revelava muito inteligente, quando lia, escrevia e realizava cálculos difíceis até mesmo para quem tinha a mais elevada cultura. Era, desde aqueles tempos, um iluminado, na mais clara e límpida definição do termo.

Bonito, com 1,80 de altura, bigodes aparados e bem fornidos, cabelos cortados à escovinha, trajando-se sempre de brim cáqui, o belo jovem Jacinto Silveira juntamente com outros peões, percorria, no lombo do cavalo, por estradas de chão batido a longa distância de 270 quilômetros conduzindo grandes manadas de gados de corte que eram vendidas na cidade de Curralinho, hoje, Corinto, situada ao norte de Minas Gerais. Com 24 anos conheceu e casou-se com a normalista Maria Luiza de Araújo, na velha Matriz de Montes Claros, no dia 16 de Novembro de 1895. Maria Luiza foi durante toda a vida, sua fiel e inseparável companheira, a qual foi responsável pela condução dos destinos do povo brejeiro no campo da educação e cultura, enquanto Jacinto preparava esse mesmo povo na política e principalmente para a emancipação administrativa do Brejo, que ocorreria em 1923/24. Foi o primeiro presidente da primeira legislatura municipal brejeira, 1924/1930, que era composta pelos seguintes vereadores: Padre Augusto Prudêncio da Silva, Francisco Fernandes de Oliveira, José Dias Pereira Zeca, João de Deus Dias de Farias e Rogério da Costa Negro, este último, um grande comerciante do ramo de tecidos.

Lutador incansável pelos direitos de seu povo, íntegro, transparente, correto em todas as suas atitudes, honesto até a medula, numa época em que a mosca varejeira sequer sonhava sobrevoar o mundo da política, Jacinto Silveira conduzia os destinos do povo Brejeiro pelos caminhos da retidão e do porvir, assim como Moisés do Egito conduzia seu povo rumo à Terra Prometida. Jamais perdeu uma só eleição. O Brejeiro daqueles tempos sabia reconhecer os valores inalienáveis daquele homem e o tinha como a um verdadeiro Líder. E como tal se comportava: respeitador e cerimonioso, de falar pausado, olhava sempre nos olhos do interlocutor e não o interrompia quando o outro se pronunciava. Firme e assertivo, sempre expressou o seu pensamento. Nunca se utilizou de meias palavras. Era homem de posições claras e definidas. Benevolente e despojado, servia a todos com amor sem pedir nada em troca. Disciplinado, sabia ser enérgico sem ser jactante. Muitos foram os Governadores de Estado que utilizaram o prestigio de Jacinto. A palavra dele era uma ordem e nela todo e qualquer Brejeiro acreditava cegamente por que Jacinto nunca deixou de cumpri-la.

Rico, dono de várias fazendas de gado e cultivo, casas comerciais e muitas outras fontes de renda, Jacinto Alves da Silveira, homem que durante toda a existência sempre teve a casa cheia de amigos e correligionários, que sem nenhum apego às coisas materiais, ajudava, com recursos pessoais a todos, brejeiros ou não; bancava, do próprio bolso, inúmeros candidatos em campanhas eleitorais caríssimas. Depois de ter custeado a emancipação do Brejo das Almas, tendo inclusive doado prédios de sua propriedade para comporem a Sede Administrativa e o conjunto arquitetônico do Município, condição esta indispensável a sua homologação, já no final da vida, corroído pela enfermidade degenerativa, ainda era obrigado a arrastar-se de sua casa até a Prefeitura, onde dava expedientes, deixando-nos o belo exemplo de que é no trabalho que nos realizamos e enobrecemos. Morreu, no entanto, pobre, mas digno e praticamente só, tendo a seu lado apenas os familiares.

Não é sem motivo que um de seus filhos, o também Coronel Geraldo Tito Silveira, assim se expressa em um de seus lindos libelos, referindo-se as indiferenças das quais fora vitima o pai: “Nos áureos tempos de sua vida abastada, quando ele plantava as sementes de uma pequena fortuna, depois esbanjada nos ardores da política, feita somente para o bem-estar de outrem, sua casa solarenga vivia repleta de “amigos”. Até então, não se via pela estrada real, que ia dar à Bahia, uma só pousada ou hospedaria, de modo que os forasteiros que por ali passavam procuravam a casa do Coronel Jacinto, onde recebiam todo o conforto, gratuitamente. Muitas dessas pessoas eram acometidas de terríveis pestes inclusive febre brava!”.

E arremata o grande escritor do Norte de Minas, Geraldo Tito Silveira, agora lamentando mais uma grande injustiça com a qual brindaram o pai. Aliás, muito já falei sobre tal injustiça que espero um dia, quiçá nessa atual encarnação ver corrigida: “Como corolário da ingratidão dos homens, mudaram o nome de Brejo das Almas, não para perpetuar o nome de Jacinto Silveira, na terra que engrandecera, mas para honrar o nome de outro Brasileiro, Ilustre, é verdade, mas que nada fizera por ela.”. Refere-se ao Doutor Francisco Sá, (1862-1936), nascido na fazenda Brejo de Santo André, que naqueles tempos pertencia ao Município de Grão Mogol e que foi Ministro da Viação e levou a Estrada de Ferro Central do Brasil até Montes Claros, que muito lhe deve.

Não sei, até porque de há muito não vivo mais no Brejo e não participo de seu dia-a-dia, se a Sociedade Brejalmina ou Brejalmense, movida por nobres sentimentos de gratidão, ou, quiçá, políticos locais, se lembrarão de promover neste dia 8 de Janeiro, alguma cerimônia, por mais simples que seja, ainda que um singelo minuto de silêncio, àquele que foi, é e será, o primeiro e mais importante Brejeiro. O maior de todos, porque deu tudo de si, até a própria vida, para que o Brejo das Almas ou Francisco Sá figurasse no mapa de Minas e do Brasil, como o Município importante e promissor que é.

Depois de permanecer longo tempo na erraticidade, acha-se, atualmente, no meio de nós. Não dentro da política que, convenhamos, mudou muito, e para pior. Servidor nato e dedicado que jamais fugiu à luta, não obstante toda a ingratidão que recebeu, acreditem céticos de plantão: Se hoje se realizassem uma “chamada oral” convocando homens de bem a colaborarem com qualquer causa que tivesse por objetivo o bem comum, a justiça social, a luta contra as desigualdades dos menos favorecidos, alguém, digno, decente, probo e humano em quem, todos nós pudéssemos nos espelhar, ao bradarem o nome “Jacinto Alves da Silveira!” Com toda certeza ouviríamos, prontamente, em algum lugar do Brasil, a voz firme, forte e determinada do Coronel e grande Líder: “Presente... Eis-me aqui!”.

E tenho dito

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.


ALGUNS FRAGMENTOS ALUSIVOS A JACINTO SILVEIRA – CRÔNICAS DE 2012.

*Enoque Alves Rodrigues
 1.
      
“Que Jacinto Luz era sogro de José Alves da Silveira, grandes fazendeiros no Brejo das Almas de antigamente, sendo este último pai de Jacinto Alves da Silveira, principal responsável pela fundação e emancipação do Brejo das Almas, hoje Francisco Sá?...”.
2    2.
“Naquele tempo, Jacinto que era seu compadre, dava expediente na Prefeitura”. A farmácia de França ficava exatamente no trajeto, que Jacinto fazia três vezes ao dia, pois almoçava em casa. Numa dessas passagens, França, desesperado, chamou-o:
- Compadre!
- Pois não. Respondeu-lhe o Coronel Jacinto, sempre educado, cordial e solícito.
- Já não sei mais o que fazer compadre. Não posso mais aceitar porco, galinha e mantimentos como forma de pagamento. Os meus cercados estão cheios. Se eu continuar assim vou quebrar. Mas também não posso deixar o povo sem remédio. O senhor precisa me ajudar!
Jacinto, homem prático, de raciocínio rápido, desses que em fração de segundos cria, amadurece e executa uma ideia, ali mesmo, sobre o balcão da farmácia, pegou sua pena e num papel timbrado escreveu em letras garrafais: “Com o único objetivo de zelar e preservar a valiosa saúde do povo brejeiro, com o intuito exclusivo de evitar propagação de doenças e pestes eventuais, inerentes ás espécies suínas e ovinas, porcos e penosas, proíbo, a partir de hoje, qualquer forma de pagamento de remédios mediante tais modalidades”.
Depois de assinar, entregou o papel para França com a recomendação: “Aqui está compadre, a solução para o seu problema. Pegue isso e cole na frente da farmácia. Quando alguém chegar com porcos e galinhas, basta o senhor mostrar o cartaz. Como a maioria não sabe ler, diga que o papel lhe proíbe de vender remédios para receber de outra forma que não seja em dinheiro vivo...”.
3.
“Quantos, porventura, de nossos conterrâneos saberiam definir o quanto representou o nome gravado naquela velha placa para o Brejo das Almas? O certo é que o Padre Augusto Prudêncio da Silva, sobre o qual muito já escrevi neste mesmo espaço foi, juntamente com Jacinto Silveira, um dos maiores beneméritos do antigo Brejo das Almas...”.
4.
“Alto, magro e esguio”. Vestido do mais puro brim, cáqui, calçado com botas de couro, canos longos, com chapéu panamá à cabeça, olhar tranquilo e falar manso. Sentado estava no solar de seu casarão de onde observava todo o Brejo das Almas, reduzido, naquele tempo, a um pequeno amontoado de casas. Ao avistar Marcolino, elegantemente se expressou:
- Bom dia, meu amigo. Como vai o senhor? Porventura, há algo que eu possa fazer para lhe ajudar?
- Sabe o que é coronel! Eu vim aqui para lhe vender o meu voto. Quanto é que Mercê está pagando?
- Vender, o que, meu filho? Por favor, seja mais especifico. Não lhe entendi!
- Então, coronel, o senhor sabe que todo eleitor aqui vende o voto e que aqui no Brejo qualquer candidato só se elege se comprar votos, já que não tem voto de cabresto para todo o mundo.
Aquele candidato olhou para Marcolino com piedade. Após fitar-lhe de alto a baixo, respondeu-lhe educadamente.
- Creio que o amigo esteja enganado. O voto deve ser dado e não vendido.  Voto não tem preço, voto tem consequência. Aliás, você nem precisa conhecer a pessoa para votar nela. O que você tem que conhecer é o seu plano de governo. Não faça de seu voto moeda de troca senão os candidatos vão fazer de você massa de manobra e posso lhe garantir que esta ciranda perversa não é benéfica nem para você tampouco para à Democracia que todos nós um dia almejamos. Não vote, jamais, em quem se propõe a comprar o seu voto. “Ele não o merece...”.
Democracia? De que diabos aquele coronel visionário estava falando em plena década de 1920 quando a maioria das questiúnculas era resolvida à bala ou sorrateiramente?
Impossível seria mesmo entender, quanto mais explicar, não fosse aquele candidato o Coronel Jacinto Alves da Silveira que, segundo os anais da história, jamais perdeu uma eleição das muitas que disputou.
5.
“E o nosso fundador, Seu Jacinto. Você já leu alguma coisa sobre ele?...”.
6.
Certa vez se encontravam na casa do Padre Augusto, no Brejo das Almas, o Dr. Honorato Alves, Camilo Prates, Alfredo Sá, Jacinto Silveira, Antonio Ferreira, Francelino Dias...
7.
Depois de longos minutos neste diapasão coube a Jacinto intervir.
- Compadres, por favor, parem com isso! Os senhores ainda não perceberam que este Lucas dos Infernos está tirando sarro de todos nós? O que ele lhes manda fazer, jamais conseguirão. Ninguém é capaz de fazer isso. Foi bem mais fácil para mim, apesar de sabermos o quanto me foi difícil, (o Coronel Jacinto, como bom Mineiro, de quando em vez também se dava ao luxo de colocar em prática o seu Mineirismo), emancipar o Brejo das Almas. Este negro não quer contar história coisíssima nenhuma!

8.
“Até mesmo o Coronel Jacinto Silveira, meio sisudo, por natureza, recebia com sorrisos os seus gracejos...”.
9.
“Assim sendo, personagens, cuja vida detalhei em suas minucias como, por exemplo, o Padre Augusto Prudêncio da Silva, Jacinto Alves da Silveira, Geraldo Tito, Feliciano Oliveira, entre outros, não serão abordados...”
10.
“Aqui estamos diante do túmulo do ilustre Brasileiro e acima de tudo, Brejeiro, Jacinto Alves da Silveira, que por toda a sua vida...”.
11.
“Ainda solteiro, Jacinto conduzia grandes boiadas que eram vendidas em Curralinho, hoje, Corinto...”.
12.
“Dos muitos filhos do velho Zé Alves jacinto foi o único a inclinar para o campo do intelecto e, menino ainda, já dominava o alfabeto e tabuada...”.
13.
“Ali foi celebrado o enlace matrimonial de Jacinto Alves da Silveira com Maria Luiza de Araujo, que...”.
14.
“Não obstante ter sacrificado a própria vida pelo Brejo das Almas, Jacinto Silveira pouca ou quase nenhuma homenagem recebeu em vida...”.
15.
“A esposa de Jacinto Silveira, dona Maria Luiza, tinha uma cultura refinadíssima e muito além de seu tempo. ela foi a primeira normalista do Brejo das Almas...”.
16.
“Mantendo as mesmas tradições de injustiças com que regalaram o marido Jacinto, Maria Luiza, mesmo tendo sido a primeira Normalista do Brejo, não teve a primeira Escola do lugar nominada em sua homenagem...”.
17.
“Nem mesmo na concessão do Cartório do Brejo se dignaram a destina-lo a esposa de Jacinto, agregando-o a outra família, também merecedora, claro, mas sua tradição e amor ao Brejo sequer se aproximavam da tradição dos Silveira...”.

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

CENAS BREJEIRAS 5 – NEIDE DO ANGICO



CENAS BREJEIRAS 5 – NEIDE DO ANGICO

*Enoque Alves Rodrigues

Neide Francisca vivia na digna comunidade do Angico, localizada nas imediações do Brejo das Almas, ou Francisco Sá, quando a seca e a fome castigavam o norte de Minas Gerais. Ali ela cresceu, casou-se e constituiu sua numerosa família ao lado do marido Antonio Donato ou Toni Donato.

Vida dura e Severina. Trabalhavam no campo. Quando as crianças nasciam á parteira ia logo dizendo: “Hehém, tão lisinho e parrudinho. Daqui a pouco vai crescer engrossar o cangote e calejar a mão no cabo da enxada. Vai tirar muita roça do mato!”. 

O pai, todo entusiasmado, ouvia aquilo e ficava feliz. Claro, não existiria, ainda que o filho vivesse cem anos, alternativa que não fosse o cabo da enxada. Invariavelmente era este o destino do mal nascido. Aliás, minto. Havia outras opções sim: o cabo da foice, do machado, da picareta e dos cambões. Você escolhia onde queria se especializar. Eu, por exemplo, “um gênio para a época” apesar da idade tenra, doutorei-me na arte de bater cambões. Os caras traziam montanhas de feijão, claro, quando havia boa safra, e eu detonava. Fui mestre nessa arte assim como também fui um exímio retratista. Só que nessa honrosa profissão não prosperei muito, ou melhor, nada, pois apesar de eu ser o “degas”, em quase todas as fotos degolava o distinto e ilustre fotografado, deixando-o sem cabeça. Eu não conseguia enquadrar o sujeito como fazem os fotógrafos de verdade. Até hoje sou um fracasso. Dificilmente consigo tirar uma foto de alguém de corpo inteiro. Sempre falta alguma parte.

Neide do Angico e Toni tiveram nove filhos, mas três morreram de tétano umbilical ou mal de sete dias. Em todos os partos que foram feitos pela mesma parteira, esta profetizava o destino do recém-nascido com a mesma e surrada cantilena. Quando foi para nascer o ultimo, a quem deram em pia batismal o nome de Levi, ao escutar a voz da velha parteira em mais um agouro, Neide do Angico interrompeu-a e vaticinou categórica: “Negativo, o meu ultimo filho não vai provar do cabo da enxada, não... Ele vai ser doutor, vai curar muita gente e vai ser muito rico. Ele vai salvar muitas vidas. Ele vai nos ajudar!”.

Aquilo era um verdadeiro delírio numa época em que por mais que você ralasse, o máximo que você conseguia era não morrer de fome. Imaginem, então, quantos triunfariam na arte de Hipócrates? Quase zero. Apenas filhos de fazendeiros chegavam lá. Assim mesmo, a maioria, quando conseguia, se especializava em medicina veterinária que era para cuidar dos bois do paizão.

Quando a tirinha de folha de bananeira com a qual a parteira amarrou o cordão umbilical de Levi começou a secar, Toni Donato, o pai, já queria leva-lo para a roça. A mãe, a guerreira, Neide, atropelou-o: 

-Negativo, já falei que esse menino vai ser Médico.

-Uai, sô, mas Médico de que? Desde quando pobre tem filho Médico? Eu preciso do menino na lavoura para aumentar a produção e vancê sabe disso, resmungou Toni!

-Medicina... Medicina... Medicina. Levi vai ser Médico e não se fala mais nisso!

Neide estava determinada que o filho caçula ao contrário dos demais irmãos que eram analfabetos, estudaria Medicina. Ela só não sabia de que jeito. Com quais recursos, por exemplo.

Com oito anos o nosso amiguinho ainda “estava” analfabeto. Foi aos nove anos que Neide, finalmente, se tocou.

-Diabos, essa criança além de não estar estudando, também não trabalha. Desse jeito não vai dar certo. Toni está com a razão. Tenho que fazer alguma coisa.

Neide, coitada, esperava que a tão prometida Escola fosse inaugurada em seu Angico para que o menino começasse a estudar. Mas estava difícil. Politico entrava e saia e nada de se construir a Escola. Foi assim que ela procurou dona Idazinha, senhora culta e muito bem instruída na arte do bê-á-bá e tabuada. Pronto. Era só o que faltava. Em pouquíssimo tempo Levi já dominava o alfabeto assim como as quatro operações aritméticas. No angico não tinha mais espaço para o garoto. Neide, a mãe, pela primeira vez dava sinais de cansaço. Já não sabia mais o que fazer. Toni estava irredutível. Queria o menino na roça. Continuariam no Angico. Não sairiam de lá para nenhum outro lugar. Afinal, dizia ele, ninguém precisa estudar.

João estava em campanha eleitoral. Ele tinha suas bases em Montes Claros que naqueles tempos era “dono” do Brejo. Tudo se decidia lá. João já havia sido Prefeito de Montes Claros, mas ele queria mais, por isso tinha que engolir poeira. Assim sendo inesperadamente acabou baixando no Angico, em casa de Neide e Toni. Bebeu água do pote, comeu biju e pediu voto. Neide sequer sabia quem ele era. Mas ela estava desesperada e já quase incrédula quanto ao cumprimento da própria profecia. Quando alguém está se afogando qualquer raizinha pode ser a salvação. E era: Ela interpretou a visita daquele forasteiro a sua humilde casa como um aviso dos Céus. Um enviado de Deus. Sem saber com quem estava falando, mas de saco cheio com tantas promessas não cumpridas por velhas e felpudas raposas para a construção da Escola que nunca saia, Neide, aquele divino ser, foi curta e grossa.

Apontando para o raquítico pirralho, cujo nariz escorria, disse ao desconhecido Politico:

-O senhor está vendo aquele magrelinho ali? Pois é, ele é meu filho! Tem dez anos e nunca foi à Escola. O nome dele é Levi. Vira e mexe vem gente aqui igual ao senhor pedir voto prometendo escola pra todo mundo. Eles ganham e somem e nós continuamos sem Escola. Quando o Levi nasceu eu falei que ele ia ser Médico. Mas como, se até agora não iniciou nem o curso primário? Por isso só voto em quem o transformar em Médico. Se o senhor fizer dele um Médico terá o meu voto.

Aquele cidadão, paciente, observou aquela senhora com piedade. Apesar de ele próprio se originar de família simples, não conseguia entender de onde vinham tanta simplicidade e convicção.

-A senhora não precisa votar em mim. Mas eu tenho a obrigação e aqui lhe dou a minha palavra, de transformar o Levi, seu filho, em Médico. Basta que a senhora me autorize leva-lo para Montes Claros. Estou autorizado?

-Está. Pode levar!

Muitos anos depois Levi era Médico. Seu consultório ficava ao lado do consultório de seu benfeitor e agora padrinho. Trouxe todos os familiares do Angico para Montes Claros. 

O sujeito que estava no Angico pedindo votos. Que ouviu as súplicas daquela rude senhora. Que chamou a si a responsabilidade de tornar aquela pobre criança um grande e respeitado Médico, era ninguém menos que o Doutor João José Alves, um dos mais importantes Médicos que o norte de Minas Gerais já produziu e que, portanto, dispensa aqui quaisquer outras apresentações. Aliás, muito já escrevi sobre ele. O cara era tão fudido que mesmo em vida, tinha uma praça em sua justa homenagem que ainda existe no centro de Montes Claros, onde se localizavam sua casa e consultório.

Pode?

Em tempo: ele se elegeu naquela campanha. Foi prefeito da bela MOC pela segunda vez.

É...

Por vezes, dizia Albert Einstein, é no meio da dificuldade que se encontra a oportunidade. 

E tenho dito!

Ótimo 2013 pranóis.

Postado ás 11 horas do dia 01 de Janeiro de 2013

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

FELIZ NATAL E UM PRÓSPERO 2013, BREJEIROS!


FELIZ NATAL E UM PRÓSPERO 2013, BREJEIROS!
*Enoque Alves Rodrigues

Alô, Brejeiros. Alô meu povo!

“Ói nóis aqui travêiz!”

Por mais um ano estivemos juntos e separados. Juntos, por que ficamos, através de minhas crônicas, que são postadas neste Blog inteiramente dedicado ao Brejo das Almas ou Francisco Sá e seu povo, meus diletos conterrâneos, que sempre me prestigiaram concedendo-me a honra e privilégio de lerem aquilo que despretensiosamente escrevo. A internet, nesse sentido nos ajunta de maneira inequívoca ao ponto de nos sentirmos uma só pessoa, mesmo estando eu aqui em São Paulo há mais de 1000 quilômetros de distancia e vocês ai em meu Brejo das Almas querido.
Separados porque mesmo sendo o meu desejo, nem sempre consigo escrever-lhes com a frequência e assiduidade que gostaria. Principalmente neste ano de 2012 que se finda, devido eu ter abraçado outras atividades que, confesso-lhes, estão consumindo muito do meu já escasso tempo.

Foi muito bom contar com vocês durante mais este ano. Espero poder continuar sendo digno de suas atenções e credibilidades no próximo ano de 2013. É certo que não tenho a pretensão de agradar a todo mundo. Assim sendo talvez seja possível que os meus escritos mesmo sendo referentes a épocas remotas e extemporâneas aos dias atuais, tenham em algum momento desagradado alguns ou até mesmo frustrado. Mas isso para mim não tem a menor importância. O importante, na verdade, é a consciência tranquila de que o que me motiva está sendo cumprido, ou seja, compartilhar com muitos de vocês que não tiveram oportunidades de tomar conhecimento a respeito de fatos de há muito ocorridos em nosso Brejo, que o tenham agora através destas crônicas, até porque a maioria de minhas narrativas não se encontra ainda registrada nos anais da história. Elas foram passadas pelo boca a boca, de pai para filho e divulga-las, hoje, possibilita que estes fatos não venham morrer um dia ou cair no esquecimento, deixando os nossos pósteros órfãos.

Desejo a todos vocês meus conterrâneos os mais puros e sinceros votos de um Feliz Natal e um ano de 2013 cheios de Paz e muitas realizações, em vossas vidas pessoais ou profissionais.

Lembrando sempre que querer é poder. Desde que você vá á luta e acredite em você, próprio. Mas não se esqueça de que do Céu não cai nada. Aliás, aqui em São Paulo, atualmente, nem chuva está caindo.

Não tirarei férias neste fim de ano. Portanto o nosso próximo encontro ocorrerá somente na primeira semana de Janeiro/2013 em minha primeira crônica de mencionado ano.
Um forte abraço!

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

sábado, 1 de dezembro de 2012

CENAS BREJEIRAS 4 - CLEONICE



CENAS BREJEIRAS 4 – CLEONICE

*Enoque Alves Rodrigues

Ela nasceu no Catuni num tempo em que o ouro branco, algodão e alho imperavam. Ainda criança veio com os pais para o centro do Brejo das Almas, Francisco Sá. Residiam, ela, a mãe, o pai e dois irmãos menores à Rua Lauro Oliveira, próximo ao Grupo Donato dos Santos. Foi matriculada no Mariquinha Silveira onde desde então passou a estudar com todo afinco. Parente distante de dona Daza, senhora influente e bem situada na sociedade Brejalmina de então, não demorou muito para que a pequena Cleonice Rodrigues Pereira, a Cléo, ainda no curso primário, despontasse para a intelectualidade, em cujo campo, surpreendentemente, trafegava com grande desenvoltura que impressionava os mais sábios brejeiros daqueles tempos. Ela discorria com total naturalidade sobre os mais variados temas.

Além de dota-la de singular inteligência, a mãe natureza também fora pródiga com Cléo no item formosura. Á maneira que ela crescia, seus dotes femininos acentuavam-se. Adolescente ainda, ela se transformou numa deusa de rara beleza. Em todas as paradas de sete de Setembro, a segurar a flâmula do Mariquinha, durante muitos anos, lá estava Cléo sempre bonita, alegre e vibrante. Mancebo algum se achava à altura da beleza e inteligência daquela beldade. Por isso ninguém se atrevia a dirigir-lhe qualquer gracejo por mais simples e despretensioso que fosse. A beleza dela ao invés de atrair, afugentava. Rapazes de famílias ricas e tradicionais de Francisco Sá se acanhavam. Bem que eles queriam se aproximar. No quesito beleza exterior até que eles se achavam arrumadinhos e não deixavam tanto a desejar, mesmo muito aquém da beleza de Cléo. Mas o problema mesmo estava no conteúdo. Na “beleza das ideias”. Ai sim, eles tremiam nas bases qual varas-verdes. Pulavam miúdos e recuavam de todo e qualquer intento. Cléo era mesmo poderosa e eles, coitados, “não tinham garrafas vazias para quebrar”. Eram quase bonitos, mas xucros. Não tinham chances. Será?

Casa Viena, assim como Casa Branca e Costa Negro, liderou o comércio de Francisco Sá durante décadas.  Ali Cleonice empregou-se na condição de balconista. A notícia correu célere qual rastilho de pólvora. Brejeiros que faziam compras na Viena difundiam a boa nova numa frenética propaganda boca-a-boca, a outros brejeiros de várias localidades, cujos comentários não se referiam a chegada de novidades da Capital, nem a preços e qualidades dos produtos que, diga-se de passagem, eram bons e imbatíveis. O que eles propagandeavam eram as curvas sinuosas da balconista que os atendera. Eles não falavam da inteligência porque no afã de observarem a beleza externa, sequer se atinham a esse tópico, para eles, desprezível.

Em pouco tempo, as vendas que já não eram poucas triplicaram. Brejeiros vinham de todas as partes. Eles chegavam e ao invés de fazerem seus pedidos paravam diante de Cléo e permaneciam estáticos por alguns minutos. Indagados por ela “o que desejam?”, mineiramente, titubeavam, respondendo-a:
-Não sei... Parece que eu vim aqui comprar alguma coisa da qual não me lembro! Depois, disfarçadamente, pediam um produto qualquer e saiam.

Numa manhã quente outonal, a cidadezinha de Brejo das Almas, terra dos meus encantos, amanheceu triste. Não demorou muito para que os falatórios começassem a tomar conta do lugar. A bela da Casa Viena sumira. Muitos acorreram à Rua Lauro Oliveira. Os portões de madeira rústica do velho casarão onde ela morava, jaziam silentes e adormecidos. Os laranjais que outrora, ali existiam cujo perfume das floradas insistia em competir-se, inutilmente, com o perfume natural da diva, apesar do vento que varria as ruas, não tremulavam mais. As maritacas comumente barulhentas em suas algazarras agora mal se entreolhavam. Pintassilgos, sabiás, pássaros-pretos e beija-flores estavam entristecidos. A velha paineira, testemunha ocular e privilegiada daquela beleza agora rangia, chorosa. Pudera a fada, cuja presença radiante lhes alumiava os desejos de seguirem em frente, não mais se encontrava. 

Rua doutor Santos, em frente ao número 127, em Montes Claros. Naquela época neste número ficava uma pequena loja que depois se fez grande. Parece-me que a mesma se denominava Geraldino Boutique. Não tenho certeza, sou brejeiro e apesar de o Brejo das Almas se encontrarem a apenas dez léguas de distância de Montes Claros, posso dizer que pouco ou quase nada conheço da bela MOC.

Eu descia mencionada rua. Por alguns instantes pensei estar sonhando. Não poderia ser verdade. Não era Cleonice... 

Era Cleonice, sim. Mais bonita impossível. Mais simples bem isso eu não poderia saber. Mesmo menino, eu também fazia parte do rol dos que tinham medo de se aproximarem dela. Não por eu ser feio, pois conforme meu pai me dizia, “eu era muito bonito devido parecer com ele”. Mas eu não estava certo se a minha inteligência a alcançaria. Eu também não era nenhum “garoto papo firme e que eu saiba, o Roberto, jamais falou de mim”. Foi assim que ao avista-la do outro lado, timidamente parei. Atravessei a rua e estendendo lhe a mão em cumprimento, cheio de simpatia, tagarelei:

-Olá, Cléo, como vai? Tudo bem? Você sumiu do Brejo! O que fazes em Montes Claros? Todos nós sentimos sua falta. Você está morando por aqui? E seus pais, como estão?

Ao contrário do que eu imaginava em minha pobre ignorância que envergonharia a mais infeliz e reles das criaturas, aquele divino ser, simplesmente, retribuiu-me o aperto de mão e após abrir-me um largo sorriso, calma e educadamente, como se fossemos velhos amigos, passou a responder o meu sofrível questionário. Falou-me que estava muito bem. Que havia saído do Brejo temporariamente apenas para acompanhar os pais que estavam em Montes Claros a trabalho. Que ela estava fazendo curso de especialização. Que também sentia muitas saudades do Brejo e de sua gente. Que voltaria em definitivo no próximo ano, etc.

Enquanto ela falava, eu pensava: Meu Deus, como Cléo era simples! Mesmo farta em tudo, era de uma singeleza sem tamanho. Quão precipitados fomos por não termos nos aproximado dela antes!  Por quais razões havíamos nos subestimado tanto ao ponto de nos privarmos do convívio de uma pessoa tão sábia e iluminada? Quantas vezes deixamos de avançar alguns degraus na escada dolorosa da vida e do saber apenas por imaginarmos que os nossos sentimentos não seriam correspondidos?
Enquanto conflitava com o meu eu, Cléo, como se estivesse lendo os meus previsíveis pensamentos, se despedia, com esta afirmativa.

-Foi muito bom falar com você. Aliás, pensando bem, a gente jamais se falou. Eu tinha vontade de conversar com você, mas sou muito tímida e aguardava iniciativa sua nesse sentido. Também não entendo porque os jovens do Brejo me evitam tanto. Eles praticamente me isolam.

Diabos, isso já era covardia. Eu não estava ouvindo aquilo!

Informada de que, assim como ela, todos nós éramos igualmente tímidos e o pior, que sua beleza e inteligência nos assustavam, sorriu e acrescentou:

Assim fica difícil. Vocês não se aproximam por acharem que sou mais bonita e inteligente que vocês e eu, de minha parte, não me aproximava por pensar que vocês fosse um bando de metidos. Desse jeito viveríamos cem anos no Brejo sem nos falarmos e depois, morreríamos todos com a certeza plena de que as nossas piores e mutuas impressões eram verdadeiras. Como? Se jamais nos falamos!

É...

Por vezes, diziam os antigos, se você quer conhecer e se fazer conhecido, então, fala Mané.

E tenho dito!

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

Aos meus leitores:

Á partir de outubro/12 postarei somente uma crônica por mês. Entre as inúmeras atividades difíceis de conciliar, também estou colaborando ativamente com uma revista de grande circulação nacional e internacional voltada à divulgação do espiritismo.

Abraços.

Enoque.