Enoque Alves Rodrigues
Quando em Março de 1931 o médico Dr. Paulo Cerqueira Rodrigues Pereira assumiu a Prefeitura da terra dos meus encantos, Brejo das Almas, ou Francisco Sá, na condição de seu primeiro Prefeito, iniciou-se um tremendo quebra-quebra na pacata Cidadezinha. Não, não se tratava de nenhuma confusão ou levante de revoltosos refratários à nova administração. Já naqueles tempos assim como nos dias atuais, a paz que muitos anseiam em várias partes do Mundo, sempre se fez presente naquele “pedacinho de céu” que quis a Divina Natureza me servisse de berço. Obras e mais obras pipocavam por todos os lados. O Dr. Paulo era na verdade um Médico com espírito de Engenheiro. O homem era foda!
O antigo Largo da Matriz, hoje Praça Jacinto Silveira, assim como a maioria das casas, se achavam sobre grande elevação mais parecida com um morro em pleno centro. Não teve jeito: o nivelamento das ruas e praças do velho Brejo das Almas era inevitável.
Incontinenti, iniciaram-se os trabalhos, árduos por sinal. Naqueles tempos eram absolutamente desnecessárias as famosas tomadas de preços e licitações. Claro, ninguém roubava.
Assim sendo, todas as atividades inerentes ao corte do mato, poda da grama, retirada e recolocação de empedramentos nas ruas, escavações, terraplenagens, movimentação de materiais, eram executados na base da enxada, foice, picareta e carroças puxadas por mulas. Os funcionários pertenciam aos quadros efetivos da Prefeitura.
Formaram-se, então, duas frentes de trabalho. Todas elas tinham seu “front” no próprio Largo da Matriz. Elas eram batizadas com os nomes de seus capatazes, ou seja, o cabo de turma. Esse indivíduo era o responsável por comandar o pessoal, realizar as medições das tarefas executadas que eram reportadas, implacavelmente, ao Ilustre Prefeito. Senhor alto, magro, olhos claros, que vestia-se, impecavelmente, pela mais pura gabardine e ternos bem cortados pelos melhores alfaiates de Montes Claros. Era nascido na região e apesar de tudo, fazia da simplicidade a sua maneira de ser.
A primeira frente, uma barraca coberta com lona onde os peões guardavam seu ferramental, ficava logo atrás da Igreja, onde hoje é o número 41, da Rua Padre Augusto. Esta era comandada pelo Salineiro Geraldo Salinas, cujo sobrenome fazia jus a sua terra de nascimento e também a cachaça de mesmo nome produzida na Cidade de Salinas, da qual era ele fiel adepto. Enquanto que a outra frente de trabalho, comandada pelo brejeiro Gedeão Picareta, ficava no final do Largo da Matriz, no exato lugar onde se encontra atualmente o Hotel Amaralina. Sua equipe, por sinal a mais produtiva, era composta por vários indivíduos entre eles, o baiano “Zé Mãozinha”, apelido que fazia alusão a sua deficiência física, por não possuir a Mão direita, que, no entanto, não o impedia de ser o “rei da picareta”. Era o melhor de todos. O carroceiro era o Jerônimo “pernas tortas”, codinome este que indicava suas curtas pernas arqueadas à guisa de uma torquês. Para completar o trio de aleijados, a própria besta, encarregada de puxar a carroça também possuía as patas dianteiras tortas, igual ao seu carroceiro. Qualquer incauto que observasse aquele trio fora de ação não daria um tostão furado por ele. No entanto, quando ás 6 da manhã ouvia-se o tilintar da pedra sobre a velha enxada pendurada em frente à tenda, o trio se transformava e não tinha pra ninguém. Eram metros e mais metros cúbicos de terra escavados e puxados.
O Estelita Pena, além de vendeiro, fora nomeado fiscal da Prefeitura. A ele cabia fiscalizar a todos e levar diretamente os reportes ao Prefeito Dr. Paulo.
Certa ocasião, a mais produtiva frente de trabalho, a frente do final do Largo, a do trio de aleijados, não contente com o “ganhame” e principalmente por ver que a outra frente da “rua do Padre” que não produzia quase nada e, no entanto, ganhava igual, resolveu fazer corpo mole. Ou melhor, “cozinhar o galo”. Só que o galo era muito velho. Sabendo disso, o Dr. Paulo recomendou ao Estelita Pena “fechar o cerco” sobre mencionado trio. As atenções do Fiscal foram redobradas para que o trio voltasse a dar a produção de antes.
Mas não teve jeito. Ai entrou em ação o “mineirismo brejeiro”. Os outrora senhores produtivos, incluindo ai a pobre besta, se transformaram em malandros, cheios de tretas e artimanhas que utilizavam para driblar as atenções do Fiscal Estelita. Combinaram, então, “Zé Mãozinha” e “Pernas Tortas”, menos a besta que puxava a carroça, coitada, linguagem cifrada na qual se comunicavam com os demais trabalhadores. Ao Dr. Paulo Cerqueira, Prefeito, por ser exaltado e exigente, deram o apelido de “tempestade”. Já para o Fiscal Estelita Pena, alcunharam-no de “chuva fina”. E assim passavam longas horas enrolando cigarros e mais cigarros de palha e bebericando uma cachacinha dentro de um corote, providencialmente escondido sob uma moita, sem que se ouvisse qualquer zumbido de picaretas a agredirem as pedras, nem o barulho natural das enxadas escavando a terra, ou das pás jogando-a sobre a carroça e nem a voz de comando do carroceiro “Pernas Tortas” à besta: “Vamos tortinha, levá mais essa terrinha. O Brejo pricisa de nóis”.
Paradões estavam... Enquanto fumavam e bebiam, conversavam amenidades e, claro, sempre às espreitas, observavam o movimento. A desídia definitivamente se abatera sobre aquela produtiva equipe.
Quando, no entanto, o Fiscal Estelita Pena surgia ao longe, percorrendo o caminho entre a Prefeitura e o Largo, hoje convertido em Alameda principal, por onde transitam os lindos pezinhos da mais pura “beleza brejeira”, meu povo, meus conterrâneos, meus iguais, ouvia-se os gritos dos agora “malandros”
- “Chuva Fina!”. Lá vem “chuva fina...” Pronto. Era este o grito de guerra... As picaretas que até então estavam imobilizadas subiam ao ar freneticamente e ao descerem-se retiniam sobre as pedras arrancando delas faíscas de fogo como verdadeiros meteoros. A pobre mula, ou melhor, a besta, que até então dormia o “sono dos justos”, atarantada, não conseguia entender porque agora era acordada com os gritos desesperados de seu carroceiro “pernas tortas”, que ainda lhe xingava: “Vamos lá, sua mula pernas tortas de uma figa, levá esta mardita terra, senão no fim do mêiz num sobra nada prá nóis, diabos!”
A cada aparição do Prefeito seguiam-se no mesmo diapasão, só que a senha era outra: “Lá vem a tempestade” e ai o pau comia solto de novo.
É...
Por vezes, é muito tênue a linha que separa o trabalhador dedicado e comprometido com sua lide, do malandro imaginário.
Enoque Alves Rodrigues, brejeiro de nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia, é Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil. Visitem meu blog: Pra variar, é sobre Francisco Sá: http://enoquerodrigues-earodrigues.blogspot.com/
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