sexta-feira, 12 de outubro de 2012

CENAS BREJEIRAS 2 - ASPÁSIA



CENAS BREJEIRAS 2 – ASPÁSIA

*Enoque Alves Rodrigues

Outrora, divertia-me observando o transitar de pessoas pelas ruas do Brejo das Almas ou Francisco Sá. O principal ponto de aglomeração, para onde todos se convergiam, ainda hoje existe em forma de Alameda com seus calçadões.

As jardineiras, carroças, charretes e carros de bois que vinham de Salinas, Grão Mogol, Taiobeiras e outras cidades da região tinham como ponto final a Alameda, ou precisamente, em frente à Pensão da Dona Quinó. Durante as minhas férias escolares era para lá que eu também ia com o objetivo de apreciar aquela movimentação toda. Sentava-me na soleira da porta da Pensão da dona Quinó, uma senhora forte, de meia idade, cujas instalações ficavam em um antigo casarão. Dali, daquele “point”, nada, absolutamente nada, me escapava às vistas. 

Foi assim, quase do nada, que numa manhã de sol de rachar mamona, sem querer, observei que do outro lado da Alameda acabava de “apear”, era assim que falávamos na época, de uma empoeirada Jardineira, uma jovem muito bem vestida. Trazia numa das mãos uma mala de fibra enquanto com a outra, agarrava-se a uma frasqueira de couro cru. Entre os dedos tinha um diminuto pedaço de papel. Após atravessar o pequeno trajeto parou á minha frente, indagando-me:

-Menino, você sabe onde é que fica a Pensão da Dona Quinó?

-Sei, sim, dona. É aqui! Respondi, levantando-me da soleira a fim de facilitar-lhe a passagem.

-Uai, disse-me surpresa, quanta coincidência! Como é que eu vim perguntar exatamente no endereço onde vou ficar?

-Fácil, dona, respondi-lhe, como o ponto final das Jardineiras é aqui, seria mais difícil não encontrar.
Olhou-me, fixamente, e, esboçando um sorriso, depois de pensar um pouco, apresentou-se.

-Meu nome é Aspásia. Sou Normalista e venho de Taiobeiras para participar de um estágio no Eliseu. Eu vou me hospedar aqui na Pensão da dona Quinó. Você trabalha aqui? Você conhece o Eliseu? Você é do Brejo?

Meu Deus, quantas perguntas eu tinha que responder. Bem, do alto da timidez que sempre me foi peculiar, principalmente no trato com estranhos, passei a responder.

-Não. Eu não trabalho aqui. Venho nesse local para ver a chegada das Jardineiras. Conheço o Eliseu Laborne. Ele fica na Mariquinha Silveira. Sim, sou Brejeiro.

Daquele dia em diante Aspásia passou a fazer parte integrante da vida brejeira. Aliás, como se revelaria posteriormente, se adaptou a tal ponto que parecia ter nascido no Brejo. Concluiu o estágio em trinta dias, fim dos quais escreveu à família informando sua desistência do magistério e que optaria por algo ligado à saúde, que ficaria em definitivo no Brejo, etc.

Tempos depois podia ser vista dando expediente no São Dimas. Continuava, no entanto, hospedada na Pensão da dona Quinó. 

Alegre, sorriso fácil, brincalhona e responsável. Exercia, com dedicação e zelo, o novo e digno oficio que agora abraçava. Ela se destacava em tudo. Como simples auxiliar de enfermagem prestou vestibular no qual foi aprovada para Medicina. Agora o Brejo encolhera para ela. Era demasiado pequeno para lhe proporcionar tão grandes sonhos. Sonhos estes que naqueles tempos nem mesmo a bela MOC seria capaz de realizar. Ela queria muito mais. Tinha que ganhar o mundo.

Em prantos convulsivos, abraçada a dona Quinó, vemos agora, aquele divino ser, com um dos pezinhos delicados apoiado sobre a soleira, se debulhando em lágrimas e palavras de gratidão, àquela benfeitora que apesar do pouco tempo de convívio, dizia considerar como se fosse sua mãe. Iria estudar Medicina na Capital das Alterosas.

-Adeus, dona Quinó, muito obrigado por tudo! 

-Adeus, Aspásia, vê se aparece um dia por aqui, menina! Respondeu-lhe, dona Quinó.

Em instantes surgia a Jardineira que a levaria até Montes Claros de onde tomaria o trem de ferro com destino a Belo Horizonte. Lembro-me que havia uma fila tão grande de Jardineiras que a obrigou a embarcar alguns metros antes do ponto, exatamente em frente onde hoje é a “Moda Brasil”.

Quis o destino, assim como o fez em sua chegada, que também em sua saída, marcas indeléveis fossem gravadas em nossos recônditos. Pois, ao passar por mim, pequeno pirralho, sem mais nem menos, assim pensávamos, depois de acalantar-me, com respeitoso abraço, disse-me: “Para você, menino, eu digo um até breve. É certo que nos veremos bem antes do que imaginamos”. 

Naquele momento não me ative aos significados daquelas palavras. Teriam algum sentido? 

Será?

Treze anos depois era chegada a hora do “sapinho” aqui ganhar o Mundo. O Brejo, quem diria, também ficou pequeno para mim. 

Usina hidrelétrica de Volta Grande. Divisa de Minas com São Paulo. Era aquele o maior empreendimento da Construtora Mendes Junior naquele ano. No dia 31 de Maio a Mendes recrutaria mais 200 peões de obra. Eu era um deles. Depois de termos passado uma semana aguardando a vez de fazermos os testes admissionais, eis que somos encaminhados para os exames médicos. Por se tratar de muita gente, o Setor de Recursos Humanos optou por dividir aquela multidão em vários grupos. Como era impossível examinar a todos ali, mandaram dois grupos de dez pessoas para Uberaba, no Triangulo Mineiro. Em um deles estava eu. 

Quando o caminhão da Mendes estacionou defronte ao número 342 da Rua São Benedito onde faríamos os exames, demorei a aceitar o que os meus olhos castanhos insistiam em me dizer. Por alguns instantes cheguei a pensar tratar-se de uma visão. Mas não era: o pomposo nome que aquela bem elaborada placa ostentava não me deixava dúvida alguma. Ali estava escrito:

“Doutora Aspásia Modesto de Medeiros Fonseca – Clínica Geral e Cirúrgica”.

Era ela, com o sorrisão aberto e espontâneo de sempre, que fazia tremer os deuses, e com a mesma simplicidade dos velhos tempos brejeiros.

Maktub!

Aliás, em Uberaba, vários outros fenômenos se revelariam para mim que não cabem aqui comentar.

É...

Por vezes, ou quase sempre, é na singeleza das entrelinhas que se encontram as mais importantes revelações.

E tenho dito!

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

CENAS BREJEIRAS 1 – GERMANA


CENAS BREJEIRAS 1 – GERMANA

*Enoque Alves Rodrigues

Pernas curtas e arqueadas. Andar lento e trôpego. Olhar disperso como se nenhum interesse demonstrasse a sua volta. Sol quente e escaldante não obstante estar ela, como sempre, munida de seu inseparável guarda-chuva. Andava, assim, displicente, pelas calçadas da Praça Rogério da Costa Negro, em Francisco Sá, Brejo das Almas.

-Germana!

-Oi, pode falar!

-Lembra-se de mim?

-Não, respondeu-me, secamente. – como poderia eu me lembrar de você se jamais te vi? 

-Uai, sô, como não? Sou o Noquinho, neto do “seu Liberato”, aquele velhinho de barbas brancas que se parece a um papai Noel. Você não se lembra de meu avô? 

-Não. Não me lembro. Porque haveria de me lembrar?

Aquele diálogo se parecia mais a uma conversa de bêbados. Germana, não sei por quais razões insistia em não querer se lembrar de nada. Teria, por acaso caído e batido com a cabeça? Estaria, porventura, acometida de alguma súbita amnésia? Bebeu? Sei lá!

Bem, cabia a mim, já que fui eu quem começou a conversa, procurar as melhores formas de fazê-la recordar dos meus tempos de menino, quando ela, já beirando os cinquenta, frequentava a fazenda Terra Branca, de meu avô, próximo de Cana Brava e Vaca Morta. Assim sendo, com a finalidade de tornar-me mais visível, por imaginar que talvez tivesse com algum problema de visão próprio da idade, acerquei-me um pouco mais dela. Olhei-a nos olhos, já meio turvos pelos muitos janeiros e, insistentemente, voltei a me apresentar:

-E então, Germana. Sou o neto do senhor Liberato e dona Justina a quem você visitava na época das moagens de cana no mês de Julho. Você se lembra da tia Cota?

-Cota, o que? De que diabos você está falando, homem? 

Caramba. Que coisa chata. Aquela alminha que me fora tão importante em infância, quando ela me embalava com suas lindas e antigas histórias de um Brejo das Almas envolto em épocas perdidas séculos afora, agora estava ali, diante de mim, com sua mente relutante em reconhecer-me. Bem, sendo assim não tomaria mais o seu tempo.

Despedi-me com brejeiras reverências naturais que dispensamos aqueles que tiveram o privilégio de avançarem na idade longeva. Quando eu ia me afastando lembrei-me de um velho apelido de infância. A maneira que caminhava olhava para trás. Como Germana continuava parada, no mesmo lugar, me observando, pensei: porque não voltar e me apresentar melhor? Porque não me dar uma segunda chance? E se ela me desse um esculacho? Sim, porque antigamente ela era boazinha, tranquila, mas de vez em quando embravecia. Depois quem me garantiria que ela não mudou de temperamento depois de tanto tempo?

Voltar ou não voltar? Retornar ou seguir em frente?

Retornei!

Germana continuava estática me olhando. Ao ver que eu volvia em sua direção, fitou-me mais atentamente.

Não lhe dei nenhuma outra chance. Ela tinha que se lembrar de mim. Não se surpreendam: chato é assim mesmo. Quando encasqueta com uma coisa não há nada que o faça recuar. Acerquei-me muito dela ao ponto de lhe sentir o calor da respiração. Levemente lhe afaguei o rosto com uma mão em cada lado. Suavemente puxei de sua cabeça que se aproximou ainda mais de meu rosto. Agora eu tinha que finalizar o trabalho. Era agora ou nunca. Como em meu dicionário não existe a palavra “nunca”, então, era agora.

-Germana!

-Eu! Outra vez você? Mais o que é que você quer de mim, homem de Deus?

-Diabos, Germana. Como pode você não se recordar de mim? Você foi tão importante em minha vida. A minha avó a tinha como sua irmã. Deixava-me com você que cantava para eu dormir, balançando a rede que ficava pendurada entre aqueles dois pés de frutos do conde, lembra-se?

-Não!

Tencionava não utilizar a última cartada. Não mencionaria o apelido de infância. Não queimaria o último cartucho. Mas, brejeiros, acreditem, não teve jeito. 

Como Germana permanecia indiferente a minha “insignificante figura” e por não estar nem ai para o Bonifácio, tive que apelar.

Esbugalhei os olhos, enchi e murchei as bochechas, repetidamente, assim como faz aquele vertebrado da classe dos anfíbios que habitam os brejos. Fixei mais o meu olhar ao dela e me esforçando o máximo para parecer-me, cada vez mais com o danadinho, emiti o coaxar característico do mesmo, seguido da fulminante e infalível apresentação.

-Germana, sua diaba. Eu sou o “sapo”!

Nem bem fechei a boca e já pude escutar sua estridente e gostosa gargalhada.

-Sapo?

-Eu já sabia tolinho. Só estava fingindo para força-lo a falar o seu apelido com o qual nós nos divertíamos muito quando você era menino. Por alguns instantes cheguei a pensar que devido você ter “virado engenheiro” lá em Sun Paulo, que você não fosse se lembrar de seu apelido que ainda é para nós, seu segundo nome. Aliás, para mim é o seu primeiro nome, por que “eu nem sabia que seu nome era Noquinho”.

Corrigida, de que “Noquinho” não era o meu nome, mas o diminutivo de Enoque, meu nome verdadeiro, reagiu, sarcasticamente.

-Piorou. Este sim que eu não conheço mesmo. Jamais escutei dizer que seu nome era “Enoque”. Quem diabos lhe colocou esse trem? É feio demais da conta, sô! Sempre lhe conheci por “sapo” e é como “sapo” que vamos sentar ali e conversar. Eu quero que você me fale como andam “seu Liberato” e a “dona Justina” seus avós.

Informada que os meus avós já não se encontravam mais conosco no plano visível, ponderou:

-É isso mesmo, “sapo”, as pessoas boas morrem tudo. E o pior é que quem devia morrer, de tão ruim que é não morre. Sabe quem também morreu? Dito isto me passou um longo relato dos que haviam partido do Brejo. Dava os nomes, datas, doença ou motivos da morte com uma facilidade e precisão tão impressionantes como se referisse a uma trivialidade qualquer de momento.

E eu que cheguei a pensar que Germana estivesse meio lelé da cuca!

Após uma hora de prosa, despedimo-nos.

-Fique com Deus, Germana! – Disse-lhe eu.

-Vá com Deus, “sapo”. Que Jesus te acompanhe menino, respondeu-me.

-Amém!

  É...

Por vezes, que importância tem nosso nome de batismo aos que nos embalaram os sonhos? 

E tenho dito!

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.