CENAS BREJEIRAS 1 – GERMANA
*Enoque Alves Rodrigues
Pernas curtas
e arqueadas. Andar lento e trôpego. Olhar disperso como se nenhum interesse
demonstrasse a sua volta. Sol quente e escaldante não obstante estar ela, como sempre,
munida de seu inseparável guarda-chuva. Andava, assim, displicente, pelas
calçadas da Praça Rogério da Costa Negro, em Francisco Sá, Brejo das Almas.
-Germana!
-Oi, pode
falar!
-Lembra-se de
mim?
-Não,
respondeu-me, secamente. – como poderia eu me lembrar de você se jamais te vi?
-Uai, sô, como
não? Sou o Noquinho, neto do “seu Liberato”, aquele velhinho de barbas brancas
que se parece a um papai Noel. Você não se lembra de meu avô?
-Não. Não me
lembro. Porque haveria de me lembrar?
Aquele diálogo
se parecia mais a uma conversa de bêbados. Germana, não sei por quais razões
insistia em não querer se lembrar de nada. Teria, por acaso caído e batido com
a cabeça? Estaria, porventura, acometida de alguma súbita amnésia? Bebeu? Sei
lá!
Bem, cabia a
mim, já que fui eu quem começou a conversa, procurar as melhores formas de
fazê-la recordar dos meus tempos de menino, quando ela, já beirando os cinquenta,
frequentava a fazenda Terra Branca, de meu avô, próximo de Cana Brava e Vaca
Morta. Assim sendo, com a finalidade de tornar-me mais visível, por imaginar
que talvez tivesse com algum problema de visão próprio da idade, acerquei-me um
pouco mais dela. Olhei-a nos olhos, já meio turvos pelos muitos janeiros e,
insistentemente, voltei a me apresentar:
-E então,
Germana. Sou o neto do senhor Liberato e dona Justina a quem você visitava na
época das moagens de cana no mês de Julho. Você se lembra da tia Cota?
-Cota, o que? De
que diabos você está falando, homem?
Caramba. Que
coisa chata. Aquela alminha que me fora tão importante em infância, quando ela me
embalava com suas lindas e antigas histórias de um Brejo das Almas envolto em
épocas perdidas séculos afora, agora estava ali, diante de mim, com sua mente
relutante em reconhecer-me. Bem, sendo assim não tomaria mais o seu tempo.
Despedi-me com
brejeiras reverências naturais que dispensamos aqueles que tiveram o privilégio
de avançarem na idade longeva. Quando eu ia me afastando lembrei-me de um velho
apelido de infância. A maneira que caminhava olhava para trás. Como Germana
continuava parada, no mesmo lugar, me observando, pensei: porque não voltar e
me apresentar melhor? Porque não me dar uma segunda chance? E se ela me desse
um esculacho? Sim, porque antigamente ela era boazinha, tranquila, mas de vez
em quando embravecia. Depois quem me garantiria que ela não mudou de
temperamento depois de tanto tempo?
Voltar ou não
voltar? Retornar ou seguir em frente?
Retornei!
Germana
continuava estática me olhando. Ao ver que eu volvia em sua direção, fitou-me
mais atentamente.
Não lhe dei
nenhuma outra chance. Ela tinha que se lembrar de mim. Não se surpreendam:
chato é assim mesmo. Quando encasqueta com uma coisa não há nada que o faça recuar.
Acerquei-me muito dela ao ponto de lhe sentir o calor da respiração. Levemente lhe
afaguei o rosto com uma mão em cada lado. Suavemente puxei de sua cabeça que se
aproximou ainda mais de meu rosto. Agora eu tinha que finalizar o trabalho. Era
agora ou nunca. Como em meu dicionário não existe a palavra “nunca”, então, era
agora.
-Germana!
-Eu! Outra vez
você? Mais o que é que você quer de mim, homem de Deus?
-Diabos,
Germana. Como pode você não se recordar de mim? Você foi tão importante em
minha vida. A minha avó a tinha como sua irmã. Deixava-me com você que cantava
para eu dormir, balançando a rede que ficava pendurada entre aqueles dois pés
de frutos do conde, lembra-se?
-Não!
Tencionava não
utilizar a última cartada. Não mencionaria o apelido de infância. Não queimaria
o último cartucho. Mas, brejeiros, acreditem, não teve jeito.
Como Germana
permanecia indiferente a minha “insignificante figura” e por não estar nem ai
para o Bonifácio, tive que apelar.
Esbugalhei os
olhos, enchi e murchei as bochechas, repetidamente, assim como faz aquele vertebrado
da classe dos anfíbios que habitam os brejos. Fixei mais o meu olhar ao dela e
me esforçando o máximo para parecer-me, cada vez mais com o danadinho, emiti o coaxar
característico do mesmo, seguido da fulminante e infalível apresentação.
-Germana, sua
diaba. Eu sou o “sapo”!
Nem bem fechei
a boca e já pude escutar sua estridente e gostosa gargalhada.
-Sapo?
-Eu já sabia tolinho.
Só estava fingindo para força-lo a falar o seu apelido com o qual nós nos
divertíamos muito quando você era menino. Por alguns instantes cheguei a pensar
que devido você ter “virado engenheiro” lá em Sun Paulo, que você não fosse se
lembrar de seu apelido que ainda é para nós, seu segundo nome. Aliás, para mim
é o seu primeiro nome, por que “eu nem sabia que seu nome era Noquinho”.
Corrigida, de
que “Noquinho” não era o meu nome, mas o diminutivo de Enoque, meu nome
verdadeiro, reagiu, sarcasticamente.
-Piorou. Este
sim que eu não conheço mesmo. Jamais escutei dizer que seu nome era “Enoque”.
Quem diabos lhe colocou esse trem? É feio demais da conta, sô! Sempre lhe
conheci por “sapo” e é como “sapo” que vamos sentar ali e
conversar. Eu quero que você me fale como andam “seu Liberato” e a “dona
Justina” seus avós.
Informada que
os meus avós já não se encontravam mais conosco no plano visível, ponderou:
-É isso mesmo,
“sapo”, as pessoas boas morrem tudo.
E o pior é que quem devia morrer, de tão ruim que é não morre. Sabe quem também
morreu? Dito isto me passou um longo relato dos que haviam partido do Brejo. Dava
os nomes, datas, doença ou motivos da morte com uma facilidade e precisão tão
impressionantes como se referisse a uma trivialidade qualquer de momento.
E eu que
cheguei a pensar que Germana estivesse meio lelé da cuca!
Após uma hora
de prosa, despedimo-nos.
-Fique com
Deus, Germana! – Disse-lhe eu.
-Vá com Deus, “sapo”. Que Jesus te acompanhe menino, respondeu-me.
-Amém!
É...
Por vezes, que
importância tem nosso nome de batismo aos que nos embalaram os sonhos?
E tenho dito!
*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo
das Almas, Minas Gerais, Brasil.
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