CENAS BREJEIRAS 2 – ASPÁSIA
*Enoque Alves Rodrigues
Outrora, divertia-me observando o
transitar de pessoas pelas ruas do Brejo das Almas ou Francisco Sá. O principal
ponto de aglomeração, para onde todos se convergiam, ainda hoje existe em forma
de Alameda com seus calçadões.
As jardineiras, carroças,
charretes e carros de bois que vinham de Salinas, Grão Mogol, Taiobeiras e
outras cidades da região tinham como ponto final a Alameda, ou precisamente, em
frente à Pensão da Dona Quinó. Durante as minhas férias escolares era para lá
que eu também ia com o objetivo de apreciar aquela movimentação toda.
Sentava-me na soleira da porta da Pensão da dona Quinó, uma senhora forte, de
meia idade, cujas instalações ficavam em um antigo casarão. Dali, daquele
“point”, nada, absolutamente nada, me escapava às vistas.
Foi assim, quase do nada, que
numa manhã de sol de rachar mamona, sem querer, observei que do outro lado da
Alameda acabava de “apear”, era assim que falávamos na época, de uma empoeirada
Jardineira, uma jovem muito bem vestida. Trazia numa das mãos uma mala de fibra
enquanto com a outra, agarrava-se a uma frasqueira de couro cru. Entre os dedos
tinha um diminuto pedaço de papel. Após atravessar o pequeno trajeto parou á minha
frente, indagando-me:
-Menino, você sabe onde é que
fica a Pensão da Dona Quinó?
-Sei, sim, dona. É aqui!
Respondi, levantando-me da soleira a fim de facilitar-lhe a passagem.
-Uai, disse-me surpresa, quanta
coincidência! Como é que eu vim perguntar exatamente no endereço onde vou
ficar?
-Fácil, dona, respondi-lhe, como
o ponto final das Jardineiras é aqui, seria mais difícil não encontrar.
Olhou-me, fixamente, e, esboçando
um sorriso, depois de pensar um pouco, apresentou-se.
-Meu nome é Aspásia. Sou
Normalista e venho de Taiobeiras para participar de um estágio no Eliseu. Eu
vou me hospedar aqui na Pensão da dona Quinó. Você trabalha aqui? Você conhece
o Eliseu? Você é do Brejo?
Meu Deus, quantas perguntas eu
tinha que responder. Bem, do alto da timidez que sempre me foi peculiar, principalmente
no trato com estranhos, passei a responder.
-Não. Eu não trabalho aqui. Venho
nesse local para ver a chegada das Jardineiras. Conheço o Eliseu Laborne. Ele
fica na Mariquinha Silveira. Sim, sou Brejeiro.
Daquele dia em diante Aspásia
passou a fazer parte integrante da vida brejeira. Aliás, como se revelaria
posteriormente, se adaptou a tal ponto que parecia ter nascido no Brejo.
Concluiu o estágio em trinta dias, fim dos quais escreveu à família informando sua
desistência do magistério e que optaria por algo ligado à saúde, que ficaria em
definitivo no Brejo, etc.
Tempos depois podia ser vista
dando expediente no São Dimas. Continuava, no entanto, hospedada na Pensão da
dona Quinó.
Alegre, sorriso fácil, brincalhona
e responsável. Exercia, com dedicação e zelo, o novo e digno oficio que agora
abraçava. Ela se destacava em tudo. Como simples auxiliar de enfermagem prestou
vestibular no qual foi aprovada para Medicina. Agora o Brejo encolhera para
ela. Era demasiado pequeno para lhe proporcionar tão grandes sonhos. Sonhos
estes que naqueles tempos nem mesmo a bela MOC seria capaz de realizar. Ela
queria muito mais. Tinha que ganhar o mundo.
Em prantos convulsivos, abraçada
a dona Quinó, vemos agora, aquele divino ser, com um dos pezinhos delicados
apoiado sobre a soleira, se debulhando em lágrimas e palavras de gratidão,
àquela benfeitora que apesar do pouco tempo de convívio, dizia considerar como
se fosse sua mãe. Iria estudar Medicina na Capital das Alterosas.
-Adeus, dona Quinó, muito
obrigado por tudo!
-Adeus, Aspásia, vê se aparece um
dia por aqui, menina! Respondeu-lhe, dona Quinó.
Em instantes surgia a Jardineira
que a levaria até Montes Claros de onde tomaria o trem de ferro com destino a
Belo Horizonte. Lembro-me que havia uma fila tão grande de Jardineiras que a
obrigou a embarcar alguns metros antes do ponto, exatamente em frente onde hoje
é a “Moda Brasil”.
Quis o destino, assim como o fez
em sua chegada, que também em sua saída, marcas indeléveis fossem gravadas em
nossos recônditos. Pois, ao passar por mim, pequeno pirralho, sem mais nem
menos, assim pensávamos, depois de acalantar-me, com respeitoso abraço,
disse-me: “Para você, menino, eu digo um até breve. É certo que nos veremos bem
antes do que imaginamos”.
Naquele momento não me ative aos significados
daquelas palavras. Teriam algum sentido?
Será?
Treze anos depois era chegada a
hora do “sapinho” aqui ganhar o Mundo. O Brejo, quem diria, também ficou
pequeno para mim.
Usina hidrelétrica de Volta
Grande. Divisa de Minas com São Paulo. Era aquele o maior empreendimento da
Construtora Mendes Junior naquele ano. No dia 31 de Maio a Mendes recrutaria mais
200 peões de obra. Eu era um deles. Depois de termos passado uma semana
aguardando a vez de fazermos os testes admissionais, eis que somos encaminhados
para os exames médicos. Por se tratar de muita gente, o Setor de Recursos
Humanos optou por dividir aquela multidão em vários grupos. Como era impossível
examinar a todos ali, mandaram dois grupos de dez pessoas para Uberaba, no
Triangulo Mineiro. Em um deles estava eu.
Quando o caminhão da Mendes
estacionou defronte ao número 342 da Rua São Benedito onde faríamos os exames, demorei
a aceitar o que os meus olhos castanhos insistiam em me dizer. Por alguns
instantes cheguei a pensar tratar-se de uma visão. Mas não era: o pomposo nome
que aquela bem elaborada placa ostentava não me deixava dúvida alguma. Ali estava
escrito:
“Doutora Aspásia Modesto de Medeiros Fonseca – Clínica Geral e Cirúrgica”.
Era ela, com o sorrisão aberto e
espontâneo de sempre, que fazia tremer os deuses, e com a mesma simplicidade
dos velhos tempos brejeiros.
Maktub!
Aliás, em Uberaba, vários outros fenômenos
se revelariam para mim que não cabem aqui comentar.
É...
Por vezes, ou quase sempre, é na
singeleza das entrelinhas que se encontram as mais importantes revelações.
E tenho dito!
*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas,
Minas Gerais, Brasil.
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