domingo, 10 de agosto de 2014

EXEMPLOS DE BONS BREJEIROS - PARTE III


 

*Enoque Alves Rodrigues

- Bom dia, irmão Laudelino...

- Deus seja louvado!

- Ontem, à noite, escutei na Rádio Nacional do Rio de Janeiro que o homem desceu na Lua...

- Mentira... Deus não daria tanto poder e inteligência ao homem!

- Foi a Rádio quem disse...

- A Rádio mentiu!

- Acredito que neste ano faremos uma farta colheita...

- Isso sim, é verdade... Deus seja louvado!

- O senhor precisa se juntar a nós durante ás refeições. Há sempre uma cadeira para o senhor...

- Não posso. Não sou digno de tanta reverência. Já lhes dou muito trabalho. Basta as minhas limitações físicas causadas pela velhice que não me permitem colaborar com vossa pessoa e família nos muitos afazeres da casa...

- Não se preocupe irmão. Deus já nos deu mais que o suficiente que é a saúde para que possamos trabalhar com fervor. De nossa parte não nos é nenhum esforço ou favor ampara-lo. Ficaremos agradecidos se pudermos suprir vossas necessidades. Quero que saiba que tudo que temos também lhe pertence...

Pronto... A sorte estava lançada, por que a simples citação do nome do Criador por parte de Liberato, meu avô, já era a senha de acesso a todos os segredos que levavam aqueles dois senhores de barbas brancas a intermináveis conversas que, via de regra, varavam noites.  Não obstante as elevadas culturas de ambos, amealhadas na grande universidade da vida, além de professarem a mesma doutrina, raramente seus pontos de vista se convergiam. Convencionaram entre si, por quais critérios eu jamais soube, só iriam dormir quando finalmente chegassem a um acordo. Enquanto isso não ocorria o céu era o limite. Eu, criança ainda, admirador confesso do meu avô, ficava ali, de plateia, observando tudo aquilo e, na maioria das vezes, torcendo para que eles jamais se entendessem para que eu pudesse solver um pouquinho mais do conhecimento de cada um. Ás vezes eu apostava comigo mesmo... Quem afinal cederia? Quem concordaria com quem? De quem seria a palavra final? Frustro-me confessar, cinquenta anos depois, que eu dificilmente acertava. Os caras eram foda mesmo, e quando um já se considerava vencedor ou detentor da palavra final que encerraria a celeuma, o outro, inesperadamente, “levantava uma questão de ordem qualquer” e, bíblia em punho, com o indicador apontando capítulo e versículo que sustentavam suas afirmativas na dita cuja, começava tudo de novo. Enquanto eu cochilava, dormia e acordava o “embate” corria solto, principalmente nas noites de sextas-feiras por que, como adventistas, não trabalhavam aos sábados, ou seja, o meu avô não trabalhava aos sábados já que Laudelino, como já disse, nunca trabalhava por suas limitações. Era exatamente assim: cada qual se munia de sua bíblia e toda e qualquer discussão, dúvidas e acertos eram elucidados mediante as claras letras do livro sagrado. Fora dele não havia conversa. O diabo é que como acontece ainda em dias atuais, cada um a interpreta á sua maneira o que seria até aceitável, porque difícil e complicado se torna quando um quer convencer o outro de que certa e inquestionável é a sua interpretação. Ai o bicho pega mesmo.

Naquela noite a coisa parecia que ia ferver. Aqueles dois senhores do bem se miravam, de soslaio, como se fossem fulminar o outro.

O tema era “festa das cabanas.”. Se você não é ou nunca foi adventista “quatrocentão” não vai saber do que estou falando. Isso vem do Velho Testamento. É coisa antiga, mas que era costume daquela época já longínqua. Também não vou te explicar por entender subjetivo. O mineirismo é proposital.

Pois é, Laudelino tentava convencer Liberato, meu avô a respeito da origem ou de como, quando e onde começou a primeira festa das cabanas. Dizia Laudelino que foi Abraão no Egito, “um bilhão” de anos antes de Cristo. Já Liberato afirmava categoricamente que quem celebrou essa “p” pela primeira vez foi Moisés, rumo à terra prometida, e que o fez para comemorar as farturas, etc., que data e local jamais poderiam ser as mencionadas por Laudelino por que o tal de Moisés nunca antes pisara aquelas terras. Já de inicio se percebia que aquela noite seria longa. Que o tema seria demasiadamente polêmico e que os dois debatedores não estariam dispostos a cederem. Que não abririam mão de suas minucias em beneficio do outro. Quando minha Dindinha (avó) percebia isto, corria à cozinha e preparava chás, biscoitos, água e leite que deixava sobre a mesa à disposição do marido Liberato e do irmão Laudelino que, envolvidos nas acaloradas discussões nunca tomavam conhecimento daqueles mimos.

Cinco horas da manhã. De tanto molharem o dedo para folhear a bíblia estavam com a boca seca. Mesmo assim não se entregavam. Não se deixavam convencer. Os argumentos eram inconsistentes no entendimento de ambos.

Esgotado apesar de curioso para assistir aquele final, acabei dormindo. Ao me despertar ás 10 horas vi que o meu avô repousava sobre um velho catre que ficava na sala não obstante ser este mobiliário próprio de dormitório, enquanto que o irmão Laudelino dormia, a sono profundo, sobre duas cadeiras à guisa de cama. Frustrado e mais que desiludido por ter “perdido o ultimo ato” perguntei ao meu avô quem havia vencido. E ele, para minha surpresa e felicidade tranquilizou-me: Não se preocupe Noquinho. A peleja ainda não terminou. Combinamos apenas uma trégua a fim de descansarmos um pouco para, quem sabe, liquidarmos esse assunto hoje á noite... O irmão Laudelino é muito sabido, mas um pouco “cabeça dura!”.

- Perdão, meu Deus!... – Exclamou meu avô, dando três tapinhas na boca. – Eu não queria dizer isto!

* O autor é Brejeiro de nascimento.
 

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