domingo, 1 de março de 2015

O BREJO E SUA GENTE III - NECO SURDO



O BREJO E SUA GENTE III – NECO SURDO


*Enoque Alves Rodrigues


Quando no final do ano letivo de 1924 o professor José Maria Fernandes que lecionava na única escola do Brejo das Almas foi substituído pelo professor Manuel José Veloso, vulgo Neco Surdo, codinome este alusivo ao seu estado de surdez, apenas a normalista Maria Luiza Silveira, maestra maior, cuja batuta o velho Neco obedecia, sabia que não se tratava de uma simples e corriqueira transição, não obstante tê-la efetuado sob o argumento mais que justificado que consistia no sério envolvimento do antecessor com o álcool. Discreta e silenciosamente, escrevia-se ali, com letras indeléveis, o prenúncio de uma nova era que revolucionaria, durante muito tempo, o ensino pedagógico no município recentemente emancipado.

Trôpego e alquebrado. Muito mais velho que o professor anterior, Neco Surdo também se diferia deste no tocante a metodologia. Também adepto da palmatória, é verdade, mas bem menos rigoroso e mesmo ranzinza, era, por vezes, alegre, compreensivo, tolerante e brincalhão. Enquanto José Maria se utilizava de uma rigidez arcaica onde qualquer displicência do aluno era punida com a palmatória, o sucessor, de jeitos simples e despojados, apesar de enérgico, distribuía simpatias na mesma proporção em que irradiava didática e cultura para a petizada carente do saber. A sua deficiência auditiva em nada interferia em sua conduta e eficiência pois, sempre que alguma dificuldade em entender ou fazer a leitura labial do aluno lhe surgia que o impossibilitasse de dispensar-lhe a atenção necessária e sanar ás duvidas, ele recorria, imediatamente, à mímica e trejeitos do inspetor escolar Mateus Alves. O único problema, bem, temos então um problema, contrariamente ao que afirmei poucas linhas atrás, era que o inspetor Mateus em matéria de mímica era uma negação. Jamais havia frequentado uma “Universidade de Mímica”. Sabia tanto de mímica quanto este velho engenheiro de medicina. Mas ele dava lá suas pauladinhas. E assim, de gestos em gestos, entre uma careta e outra, inspetor, professor e alunos iam se entendendo e a cultura ali só se expandia. Grandes homens se formaram naquela época pelas mãos do professor Neco Surdo.

Ao mesmo tempo em que se preparava para abolir a palmatória naquela escola, ele trouxe de volta ás mãos dos alunos, o lápis e o caderno que, inusitadamente, haviam sido proibidos pelo professor de antes que dizia serem desnecessários por que os alunos tinham de decorar em dez minutos os textos que ele escrevia no quadro negro assim como as frações aritméticas. Quanto aos intervalos de recreios onde José Maria colocava, sistematicamente, a molecada para carpir mato, o bom Manuel José aproveitava para brincar com as crianças e ao mesmo tempo solucionar questões pontuais que porventura não conseguiram assimilar na formalidade do ambiente escolar. Enquanto os meninos jogavam com bola de meia, ás meninas que se mantinham separadas dos meninos somente nos intervalos, jogavam peteca. Numa época em que sequer se falava em emancipação feminina era impensável imaginar que naquelas bandas pouca distinção havia entre meninos e meninas que compartilhavam dos mesmos anseios de ser alguém, depositando nas mãos de um simples professor ás rédeas de seus destinos que invariavelmente os conduziriam pelos caminhos do bem.

Certa vez ou precisamente no dia 22/12/1925 o padre Augusto Prudêncio da Silva saia de seu Orfanato na Rua da Amargura em direção a Rua das Aroeiras onde se localizava a escola do professor Neco. Vinha ele numa missão muito importante: elegeria os dez melhores alunos que haviam se destacado naquele ano para que passassem o Natal junto aos seus quarenta pequeninos dos quais ele cuidava com o maior carinho. O padre chegou ali na hora do recreio e desejava observar à maneira com que cada criança se comportava no pátio. Neco não sabia daquela visita inesperada. Não havia sido informado. Os padres daqueles tempos eram tidos como fieis representantes de Deus na terra além de serem dignos de todas as honras de um chefe de estado. Qualquer município tinha dois gestores, o padre e o prefeito. Sem contar que àquela época o padre Augusto que havia sido prefeito em Montes Claros (1901/1904) era, também, vereador no Brejo. Apesar de bondoso e compreensivo, ele era demasiado rigoroso. Todos conheciam sua fama de homem enérgico que não tergiversava quando tinha de falar a verdade.

Por uma razão que a própria desconhece, coube ao pobre do inspetor escolar Mateus Alves visualizar primeiro o padre que, aparentemente não o vira. Ato contínuo, disfarçada e sorrateiramente, tratou de correr para avisar o professor Neco Surdo que, entretido, batia uma bolinha com os seus pupilos do outro lado do muro. Apesar da curta distância, inútil seria gritar. Primeiro por que Neco era surdo e não o ouviria e segundo porque poderia chamar a atenção do padre que aguardava.

Criativo ou sem saída, não importa. É a necessidade que faz o sapo pular. Lançou mão de um pano branco o qual pôs sobre a cabeça e galgou a escada no sentido de sinalizar para Neco do outro lado. Por mais que Mateus tentasse, Neco não conseguia ler-lhe os gestos. Quando ele passava á mão sobre o pano branco na cabeça em alusão à túnica e aos cabelos brancos do padre, Neco, irritado, gesticulava de lá o chamando de velha coroca e caduca. Paciente, Mateus, cujo interesse era apenas salvar a pele do mestre, colocou um dos pés sobre o muro com o qual pretendia imitar o padre que mancava de uma das pernas. Escorregou-se caindo de costas aos pés do padre que bem mais alto que ele observava há muito tempo o professor Neco interagindo com os seus alunos em um momento de paz e descontração que o padre ao invés de repreender como pensava Mateus, elogiou, assim se expressando:

- “É muito bonito de se ver um professor, do alto do seu saber, se divertindo com os seus alunos onde por alguns instantes se nivelam como criaturinhas de Deus que são!”.

E virando-se para Mateus, disse-lhe:

- “Levanta-te daí, meu filho... Essa brincadeira sua de subir em muro e ficar pulando igual Saci Pererê com uma perna só não é nada saudável e você pode se machucar... Vá brincar junto aos demais. Por favor, avise ao professor Neco que quando terminar o recreio preciso falar com ele. É sobre o Natal das crianças daqui!”.

Pois é.

A vida é simples de ser vivida. Somos nós que a dificultamos, por vezes, quando queremos nos antecipar ao pensamento dos outros.

E tenho dito.

*Enoque Alves Rodrigues nasceu no Brejo das Almas.

Atenção: Vem ai, Feliciano Oliveira!