O
BREJO E SUA GENTE III – NECO SURDO
*Enoque Alves Rodrigues
Quando no final do ano letivo de 1924 o professor José Maria Fernandes
que lecionava na única escola do Brejo das Almas foi substituído pelo professor
Manuel José Veloso, vulgo Neco Surdo,
codinome este alusivo ao seu estado de surdez, apenas a normalista Maria Luiza
Silveira, maestra maior, cuja batuta o velho Neco obedecia, sabia que não se
tratava de uma simples e corriqueira transição, não obstante tê-la efetuado sob
o argumento mais que justificado que consistia no sério envolvimento do
antecessor com o álcool. Discreta e silenciosamente, escrevia-se ali, com
letras indeléveis, o prenúncio de uma nova era que revolucionaria, durante
muito tempo, o ensino pedagógico no município recentemente emancipado.
Trôpego e alquebrado. Muito mais velho que o professor anterior, Neco Surdo também se diferia deste no
tocante a metodologia. Também adepto da palmatória, é verdade, mas bem menos
rigoroso e mesmo ranzinza, era, por vezes, alegre, compreensivo, tolerante e
brincalhão. Enquanto José Maria se utilizava de uma rigidez arcaica onde
qualquer displicência do aluno era punida com a palmatória, o sucessor, de jeitos
simples e despojados, apesar de enérgico, distribuía simpatias na mesma proporção
em que irradiava didática e cultura para a petizada carente do saber. A sua
deficiência auditiva em nada interferia em sua conduta e eficiência pois,
sempre que alguma dificuldade em entender ou fazer a leitura labial do aluno lhe
surgia que o impossibilitasse de dispensar-lhe a atenção necessária e sanar ás
duvidas, ele recorria, imediatamente, à mímica e trejeitos do inspetor escolar
Mateus Alves. O único problema, bem, temos então um problema, contrariamente ao
que afirmei poucas linhas atrás, era que o inspetor Mateus em matéria de mímica
era uma negação. Jamais havia frequentado uma “Universidade de Mímica”. Sabia tanto de mímica quanto este velho
engenheiro de medicina. Mas ele dava lá suas pauladinhas. E assim, de gestos em
gestos, entre uma careta e outra, inspetor, professor e alunos iam se
entendendo e a cultura ali só se expandia. Grandes homens se formaram naquela
época pelas mãos do professor Neco Surdo.
Ao mesmo tempo em que se preparava para abolir a palmatória naquela
escola, ele trouxe de volta ás mãos dos alunos, o lápis e o caderno que,
inusitadamente, haviam sido proibidos pelo professor de antes que dizia serem desnecessários
por que os alunos tinham de decorar em dez minutos os textos que ele escrevia
no quadro negro assim como as frações aritméticas. Quanto aos intervalos de
recreios onde José Maria colocava, sistematicamente, a molecada para carpir
mato, o bom Manuel José aproveitava para brincar com as crianças e ao mesmo
tempo solucionar questões pontuais que porventura não conseguiram assimilar na
formalidade do ambiente escolar. Enquanto os meninos jogavam com bola de meia,
ás meninas que se mantinham separadas dos meninos somente nos intervalos, jogavam
peteca. Numa época em que sequer se falava em emancipação feminina era
impensável imaginar que naquelas bandas pouca distinção havia entre meninos e
meninas que compartilhavam dos mesmos anseios de ser alguém, depositando nas
mãos de um simples professor ás rédeas de seus destinos que invariavelmente os
conduziriam pelos caminhos do bem.
Certa vez ou precisamente no dia 22/12/1925 o padre Augusto Prudêncio da
Silva saia de seu Orfanato na Rua da Amargura em direção a Rua das Aroeiras
onde se localizava a escola do professor Neco. Vinha ele numa missão muito
importante: elegeria os dez melhores alunos que haviam se destacado naquele ano
para que passassem o Natal junto aos seus quarenta pequeninos dos quais ele
cuidava com o maior carinho. O padre chegou ali na hora do recreio e desejava
observar à maneira com que cada criança se comportava no pátio. Neco não sabia
daquela visita inesperada. Não havia sido informado. Os padres daqueles tempos
eram tidos como fieis representantes de Deus na terra além de serem dignos de
todas as honras de um chefe de estado. Qualquer município tinha dois gestores,
o padre e o prefeito. Sem contar que àquela época o padre Augusto que havia
sido prefeito em Montes Claros (1901/1904) era, também, vereador no Brejo. Apesar
de bondoso e compreensivo, ele era demasiado rigoroso. Todos conheciam sua fama
de homem enérgico que não tergiversava quando tinha de falar a verdade.
Por uma razão que a própria desconhece, coube ao pobre do inspetor
escolar Mateus Alves visualizar primeiro o padre que, aparentemente não o vira.
Ato contínuo, disfarçada e sorrateiramente, tratou de correr para avisar o
professor Neco Surdo que, entretido,
batia uma bolinha com os seus pupilos do outro lado do muro. Apesar da curta
distância, inútil seria gritar. Primeiro por que Neco era surdo e não o ouviria
e segundo porque poderia chamar a atenção do padre que aguardava.
Criativo ou sem saída, não importa. É a necessidade que faz o sapo
pular. Lançou mão de um pano branco o qual pôs sobre a cabeça e galgou a escada
no sentido de sinalizar para Neco do outro lado. Por mais que Mateus tentasse,
Neco não conseguia ler-lhe os gestos. Quando ele passava á mão sobre o pano
branco na cabeça em alusão à túnica e aos cabelos brancos do padre, Neco,
irritado, gesticulava de lá o chamando de velha coroca e caduca. Paciente,
Mateus, cujo interesse era apenas salvar a pele do mestre, colocou um dos pés
sobre o muro com o qual pretendia imitar o padre que mancava de uma das pernas.
Escorregou-se caindo de costas aos pés do padre que bem mais alto que ele
observava há muito tempo o professor Neco interagindo com os seus alunos em um
momento de paz e descontração que o padre ao invés de repreender como pensava
Mateus, elogiou, assim se expressando:
- “É muito bonito de se ver um professor, do alto do seu saber, se
divertindo com os seus alunos onde por alguns instantes se nivelam como
criaturinhas de Deus que são!”.
E virando-se para Mateus, disse-lhe:
- “Levanta-te daí, meu filho... Essa brincadeira sua de subir em muro e
ficar pulando igual Saci Pererê com uma perna só não é nada saudável e você
pode se machucar... Vá brincar junto aos demais. Por favor, avise ao professor
Neco que quando terminar o recreio preciso falar com ele. É sobre o Natal das
crianças daqui!”.
Pois é.
A vida é simples de ser vivida. Somos nós que a dificultamos, por vezes,
quando queremos nos antecipar ao pensamento dos outros.
E tenho dito.
*Enoque Alves Rodrigues nasceu no Brejo das Almas.
Atenção: Vem ai, Feliciano Oliveira!
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