A FÊNIX BREJEIRA II – JESUINO DO QUILOMBO
Enoque Alves Rodrigues
Ele surgiu em pleno centro da
Cidade de Francisco Sá ou Brejo das Almas como se por encanto. Aliás, surgiu
como todos eles surgem. Aparentemente do nada. É muito mais natural do que
possamos imaginar, que a maioria daqueles que muitas vezes encontramos a
trilhar um caminho insólito como se andarilhos fossem, receberam na verdade
alguma missão especial a qual nós, desprovidos de um conhecimento que ainda se
encontra a milhões de anos luz de distância, ignoramos inteiramente. Estávamos
em meio à década de 1950. Caminhava, vagarosamente, manquitolando pelas ruas
empoeiradas do Brejo. Trazia às costas um sujo saco de estopa onde podia se
constatar o volume de algo em seu interior. Silencioso, jamais abriu a boca
para pedir alguma coisa para alguém. Apenas caminhava. Depois de percorrer
todas as poucas ruas do Brejo daqueles tempos, sentava-se em frente à igreja e
lá ficava observando a paisagem. Depois de muito observar, fixava seu olhar em
algum ponto do firmamento e dormia.
O apelido de Jesuíno do Quilombo,
ele recebeu de algum engraçadinho talvez pelo fato de sua aparência física com o
grande Zumbi dos Palmares pela tez preta, cabelos pixaim, alto e magro. A
princípio, muitos acreditavam que o “quilombo” que trazia como sobrenome fosse
por ser ele oriundo de uma respeitável comunidade, àquela época, pequeno reduto
desta nobre raça, cuja comunidade se localiza ainda hoje no Município de
Francisco Sá. No entanto, como se comprovariam depois, ele sequer a conhecia. Não
demorou muito e sua verdadeira procedência foi descoberta, por acaso, pelo
renomado poeta, jornalista e escritor Brejeiro de inquestionável expressão literária
no norte de Minas Gerais, Olyntho da Silveira.
Jesuíno do Quilombo era na
verdade Gotardo Apolinário de Souza e descendia de escravos de senhores de engenhos
na Bahia, ou precisamente nas imediações de Vitória da Conquista. Ele chegou ao
Brejo das Almas trazido por uma coluna de bandoleiros que lhe retiraram do
convívio familiar, passando a explora-lo na condição de cozinheiro. No Brejo,
aquele bando de sanguinários que estava sempre fugindo da Policia, escolhia os
lugares estrategicamente afastados do centro da Cidade para que assim pudesse pinotear
a qualquer momento, caso tivesse que recuar de algum confronto eventual com os
meganhas. É por isso que ninguém no centro do Brejo das Almas conhecia ou
sequer antes houvera tido qualquer contato com Jesuíno do Quilombo.
Quando naquela cálida madrugada de
Setembro o tempo fechou para os lados daquele bando cercado que foi por duas
frentes federais que vinham de Montes Claros e de Monte Azul, surpreendido, não
lhe restou nenhuma alternativa senão a da fuga vergonhosa e humilhante. Na
correria acabou ficando sem seu cozinheiro que por possuir a perna esquerda
mais curta que a direita, razão de seu manquitolar, não foi possível acompanhar
sua turma. Como ele era apenas um cozinheiro, que nenhum mal houvera causado a
qualquer local, não foi difícil a sua acolhida. A cidadezinha pacata de então,
acabou por adota-lo como filho. E que filho amoroso ele era.
Numa época em que os serviços de
limpeza pública no Brejo capengavam, aquela alma, munida de galhos da velha
palmeira que ainda hoje tremula em frente à Igreja Matriz, na Praça Jacinto
Alves da Silveira, varria, graciosamente, todas as ruas por onde passava.
Antes, ele tinha o cuidado de jogar água para apagar a poeira. Era por isso
que, cansado, depois de finalizar suas tarefas de varrições do dia ele se
dirigia para as escadarias da igreja para descansar e dormir.
Educado, Digno e nobre, quando algum
brejeiro inadvertido lhe estendia uma moeda ele que na maior parte do tempo
ficava silente, falava: “por favor, meu
senhor, guarde-a. Eu nada fiz por merecê-la. Mas eu poderei até aceita-la. Desde
que o senhor me ofereça algum trabalho de limpeza ou cozinha para fazer. Os
meus superiores não me permitem receber nada sem o devido esforço.” Sem entender, o interlocutor, bom samaritano,
lhe perguntava: mas a quais senhores você se refere? Sempre o vejo ai, sozinho?
Ele assim respondia apontando para o Alto: “Eles estão Lá em Cima. Acham-se
fora do alcance de nossas vistas mais muito próximo do nosso coração!”
Na gangorra da politica brejeira,
Enéas, o Capitão, agora era Prefeito. Feliciano era seu vice. Poucos anos antes
o jogo era inverso. O primeiro era vice do segundo. Entendeu? Não? Nem eu. Desvira
tudo que você entende. Dá no mesmo!
O que importa é que o Prefeito
Enéas, cujo coração de tão grande não cabia no peito, naquele dia ao sair da
Prefeitura em direção a Fazenda Burarama, ao passar em frente ás escadarias da
Matriz viu, de soslaio, Jesuíno do Quilombo, que voltava com seu galho de
palmeira em punho, de mais um périplo de varrição pelas ruas do Brejo. Enéas, a
quem nada passava despercebido, apeou. Aproximou-se de Jesuíno e passou-lhe a
mão em cumprimento.
- Como vai, meu amigo!
- Bem. E o senhor?
- Bem, também! Você é Brejeiro?
- Não senhor. Sou Baiano!
- O que fazes com este ramo de
palmeira na mão? Quis saber o Prefeitão Enéas Mineiro.
- É o meu instrumento de
trabalho. Com ele eu faço a limpeza das ruas desta Cidade, que estão, diga-se
de passagem, um verdadeiro lixo. Aliás, toda esta Cidade está uma porqueira só
que dá gosto. Até parece que não tem Prefeito!
O Capitão, não perdia o rebolado
jamais. Com simpatia e ternura, fitou Jesuíno de alto a baixo. Mesmo não sendo
Mineiro além do sobrenome, sabia matutar e medir as palavras antes de
proferi-las, próprio daqueles, que assim como eu, nasceram nas Alterosas. Foi aí
que após pensar bastante, abriu os braços e um grande sorriso, e se apresentou:
- Pois é, meu amigo. Muito
prazer! Talvez você ainda não saiba, mas sou eu o Prefeito desta Cidade que se
chama Francisco Sá. Quero lhe informar que estou me empenhando o máximo para
torna-la a mais limpa possível e com a sua ajuda, vamos conseguir!
- “E por que é que o senhor acha
que eu estou lhe falando assim? Vossa Mercê pensa que eu que sempre me mantive
calado falaria isso para qualquer um? Eu sou pobre e sujinho de roupa mais
limpinho de coração. É por isso que eu só falo com o dono dos porcos. O senhor
tem que convocar todo mundo para me ajudar a fazer a limpeza senão daqui a
pouco as cobras vão sair dos brejos e vão invadir as casas. É muito trabalho
para uma pessoa só... O senhor não acha?”
A partir daquele dia instituiu-se
em definitivo o serviço de limpeza pública na Cidade.
É...
Por vezes, a chacoalhada vem de
onde menos se espera. De pessoas que seriam inimagináveis, não tivessem boca.
Enoque
Alves Rodrigues, que vive em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção.
Atua há 41 anos na área de Engenharia. É autor do livro “Liderança Conquistada”
que já se encontra nas melhores Livrarias de São Paulo e poderá ser pedido
diretamente pelo e-mail: enoque.rodrigues@ibest.com.br . É Colunista, Historiador e divulgador voluntário de
Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.