ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – FREDÃO DE TONHA
Enoque Alves Rodrigues
CENTRO DO BREJO DAS ALMAS |
Ele residia num antigo casarão construido com adobe com fachada em cor verde musgo que ficava a três casas depois
da casa da Dona Quino, na alameda central, em Francisco Sá, ou Brejo das Almas,
em cujo frontispício se lia “pensão.” Ali ele vivia em companhia de Antônia
Claudina Ferreira, a Tonha, e seis bacuris todos eles fora da Escola, apesar de
se acharem em idade escolar.
Alfredo Dias Severino, 40 anos,
agricultor, nascido no Ceará, mas radicado desde criancinha no Brejo, tinha que
dar um duro dos diabos para poder sustentar sua grande família. Tonha cuidava
das crianças, da casa e da horta, enquanto Fredão trabalhava nas fazendas da
região na condição de camarada. A alcunha de Fredão era alusiva ao seu tamanhão
de 2,05 metros, uma aberração para a época quando o raquitismo corria solto
impedindo que até mesmo os ricos e bem nutridos ultrapassassem a altura de 1
metro e 60 centímetros. Naqueles
cafundós de meu Deus onde orgulhosamente nasci, quando, ao traçarem o
perfil de alguém, se mencionasse “estatura mediana,” entender-se-ia que o
individuo em referência possuía menos de 1 metro e 60 centímetros de altura.
Era esta a nossa média. Um pouco mais que isso já era considerado alto. Hoje a
estatura mediana para homens é de 1 metro e 70 centímetros.
Alfredo, além de alto, era muito
forte. Era como vamos ver mais adiante, um “costa larga.” Tremendo “pé de boi”
na arte de trabalhar e produzir consumia, com a mesma voracidade em que
detonava os eitos de roçados, duas imensas gamelas de comida no almoço e uma no
jantar, esta regada a cachaça. A merenda que era servida ás duas da tarde tinha
que ser composta de uma rapadura e duas cuias de farinha só para ele. A sua
produção diária era superior á produção de dois homens juntos. Mas para
contrata-lo o Fazendeiro ou meeiro tinha que ter “bala na agulha”, ou melhor,
tinha que ter rango na panela, senão “a máquina” não girava.
Foi durante uma colheita de
algodão na fazenda de Rosalino que ficava próximo a fazenda de meu avô, Liberato,
que tive a oportunidade de conhecer, pessoalmente, aquela figura. Sua fama eu
já conhecia de longa data. Por isso, quando o capataz de Rosalino, de nome Juca,
nos informou que Fredão ia trabalhar com eles na colheita daquela safra de
algodão, minha curiosidade ficou mais aguçada.
Manhã de Segunda Feira. O ano era
1961. Atravessei a pinguela do afluente do quem-quem e, de longe, já pude
visualizar do outro lado, o algodoal de Rosalino. Aproximei-me. Era verdade. Lá
estava ele, o “gigante,” em meio a uma roda de outros camaradas tomando café e
palestrando antes de iniciar o batente. Parei-me meio surpreso e pus-me a
observa-lo. Mãos longas, mas proporcionais ao corpanzil. Aguardei o inicio das
atividades do grandalhão. Desejava ver também como os outros “pequenos mortais”
se comportariam. Queria também, se possível, no final do dia, assistir as
pesagens das colheitas. Fazer as comparações apesar de nada daquilo me dizer
respeito, etc.
Sete horas. Após o tilintar de
uma velha enxada a guisa de sirene, assim como são dadas as largadas para as
corridas, eis que todos saem cada qual em seu eito de algodão, com sacos amarrados
à cintura enquanto os dedos ágeis, em frenéticos movimentos, estraçalham os
capuchos, lançando-os aos sacos. Depois de sumirem de vista entre os eitos ou
ruas, eis que, num passe de mágica, lá estão todos eles, exceto alguns
retardatários, assim como o são nas retas de chegada das corridas, quando nem
todos chegam ao mesmo tempo, fazendo a curva de volta, ganhando minha direção. Fredão,
para minha decepção, se achava entre os retardatários. Pensei comigo: esse cara
não é de nada. É literalmente um bundão. Só tem tamanho e fama. Foi tudo
propaganda enganosa.
Ledo engano. Aquele mestiço, brutamontes
só estava mesmo “esquentando os motores.” Quando o relógio assinalou oito
horas, o pau quebrou. Como se estivesse enlouquecido, o cara, entre um assovio
e outro, deu uma chacoalhada nos quadris, endireitou o espinhaço e começou a
cantar. Á maneira que ia cantando avançava sobre os eitos como se a melodia
ditasse seu ritmo. Com uma só “mãozada” colhia vários capuchos de algodão e
socava-os no saco. Enquanto os outros enchiam um saco ele já havia enchido dois.
De longe, com um assovio seguido de um olhar estranho, entre, engraçado e
diabólico, gritou para o balanceiro:
- “Tadeu, seu cabrunco da mulésta,
ampria ai o meu espácio próchimo da balância pra mim colocá os saco, apusquê
hoje eu tô cum cão e cum a gota serena e
vô tirá seis arroba!”
Caramba. Aquilo não era possível.
Principalmente se partirmos do pressuposto de que dificilmente alguém consegue
colher mais que 45 quilos ou três arrobas de algodão por dia.
Retornei para a Sede da Fazenda
de meu avô e à tarde quando iam iniciar as pesagens, regressei. Subi sobre um
mourão que ficava próximo da balança, em meio á montanha de sacos de algodão,
e, mais uma vez, pus-me a observar.
O balanceiro Tadeu, ao lado do capataz
Juca, com uma velha caderneta onde fazia a contabilidade, sentado na sela de
seu cavalo sobre o qual se viam duas grandes bruacas de couro abarrotadas de
notas de cruzeiros, numa época abençoada em que ninguém roubava ninguém não só
por medo dos efeitos coercitivos da lei dos homens, mas principalmente por
temerem a Lei de Deus e o tridente do diabo, não transgredindo um dos
mandamentos onde está escrito, não
furtarás, ia chamando os peões um por um, por seus respectivos nomes
seguidos do total da “apanha” e do valor correspondente ao pagamento da diária.
- Jazão do Brejo, duas arrobas,
20 cruzeiros. Felisbino de Vaca Brava, duas arrobas e meia, 25 cruzeiros.
Elpídio do Mangal, uma arroba e meia, 15 cruzeiros. Jacó de Salinas, três
arrobas, 30 cruzeiros. Manoel de Taiobeiras, duas arrobas, 20 cruzeiros.
Gervásio de Cana Brava, duas arrobas e meia, 25 cruzeiros. Daniel do Catuni, três
arrobas, 30 cruzeiros. Geninho de Orion, uma arroba, 10 cruzeiros, etc.
Ao chegar á vez da pesagem da
colheita do “gigantão,” o capataz pigarreou, estufou o peitoral, empostou a
voz, e, como se fosse proferir um longo discurso, mandou:
- “Alfredo, de Tonha, pai de seis
filhos, Cearense cabra da peste, que mora no Brejo, dois metros e cinco de
altura, costas largas, que come duas gamelas de comida no almoço, uma rapadura
com duas cuias de farinha na merenda e uma gamela de angu com um litro de
cachaça na janta, grande pé de boi para trabalhar, seis arrobas, 60 cruzeiros.”
Com apresentação tão rica em
pormenores como esta não me restaram mais dúvidas, mas somente a certeza de que Fredão era
realmente imbatível.
É...
As pessoas, por vezes, pecam pelo
excesso de detalhes que nem sempre nos interessam.
E tenho dito!
Nenhum comentário:
Postar um comentário