CENAS BREJEIRAS 5 – NEIDE DO
ANGICO
*Enoque Alves Rodrigues
Neide Francisca vivia na digna
comunidade do Angico, localizada nas imediações do Brejo das Almas, ou
Francisco Sá, quando a seca e a fome castigavam o norte de Minas Gerais. Ali
ela cresceu, casou-se e constituiu sua numerosa família ao lado do marido
Antonio Donato ou Toni Donato.
Vida dura e Severina. Trabalhavam
no campo. Quando as crianças nasciam á parteira ia logo dizendo: “Hehém, tão lisinho
e parrudinho. Daqui a pouco vai crescer engrossar o cangote e calejar a mão no
cabo da enxada. Vai tirar muita roça do mato!”.
O pai, todo entusiasmado, ouvia
aquilo e ficava feliz. Claro, não existiria, ainda que o filho vivesse cem
anos, alternativa que não fosse o cabo da enxada. Invariavelmente era este o
destino do mal nascido. Aliás, minto. Havia outras opções sim: o cabo da foice,
do machado, da picareta e dos cambões. Você escolhia onde queria se
especializar. Eu, por exemplo, “um gênio para a época” apesar da idade tenra,
doutorei-me na arte de bater cambões. Os caras traziam montanhas de feijão,
claro, quando havia boa safra, e eu detonava. Fui mestre nessa arte assim como
também fui um exímio retratista. Só que nessa honrosa profissão não prosperei
muito, ou melhor, nada, pois apesar de eu ser o “degas”, em quase todas as
fotos degolava o distinto e ilustre fotografado, deixando-o sem cabeça. Eu não
conseguia enquadrar o sujeito como fazem os fotógrafos de verdade. Até hoje sou
um fracasso. Dificilmente consigo tirar uma foto de alguém de corpo inteiro.
Sempre falta alguma parte.
Neide do Angico e Toni tiveram
nove filhos, mas três morreram de tétano umbilical ou mal de sete dias. Em
todos os partos que foram feitos pela mesma parteira, esta profetizava o
destino do recém-nascido com a mesma e surrada cantilena. Quando foi para
nascer o ultimo, a quem deram em pia batismal o nome de Levi, ao escutar a voz
da velha parteira em mais um agouro, Neide do Angico interrompeu-a e vaticinou
categórica: “Negativo, o meu ultimo filho não vai provar do cabo da enxada,
não... Ele vai ser doutor, vai curar muita gente e vai ser muito rico. Ele vai
salvar muitas vidas. Ele vai nos ajudar!”.
Aquilo era um verdadeiro delírio
numa época em que por mais que você ralasse, o máximo que você conseguia era
não morrer de fome. Imaginem, então, quantos triunfariam na arte de Hipócrates?
Quase zero. Apenas filhos de fazendeiros chegavam lá. Assim mesmo, a maioria,
quando conseguia, se especializava em medicina veterinária que era para cuidar
dos bois do paizão.
Quando a tirinha de folha de
bananeira com a qual a parteira amarrou o cordão umbilical de Levi começou a secar,
Toni Donato, o pai, já queria leva-lo para a roça. A mãe, a guerreira, Neide,
atropelou-o:
-Negativo, já falei que esse
menino vai ser Médico.
-Uai, sô, mas Médico de que?
Desde quando pobre tem filho Médico? Eu preciso do menino na lavoura para
aumentar a produção e vancê sabe disso, resmungou Toni!
-Medicina... Medicina...
Medicina. Levi vai ser Médico e não se fala mais nisso!
Neide estava determinada que o
filho caçula ao contrário dos demais irmãos que eram analfabetos, estudaria
Medicina. Ela só não sabia de que jeito. Com quais recursos, por exemplo.
Com oito anos o nosso amiguinho ainda
“estava” analfabeto. Foi aos nove anos que Neide, finalmente, se tocou.
-Diabos, essa criança além de não
estar estudando, também não trabalha. Desse jeito não vai dar certo. Toni está
com a razão. Tenho que fazer alguma coisa.
Neide, coitada, esperava que a
tão prometida Escola fosse inaugurada em seu Angico para que o menino começasse
a estudar. Mas estava difícil. Politico entrava e saia e nada de se construir a
Escola. Foi assim que ela procurou dona Idazinha, senhora culta e muito bem
instruída na arte do bê-á-bá e tabuada. Pronto. Era só o que faltava. Em
pouquíssimo tempo Levi já dominava o alfabeto assim como as quatro operações
aritméticas. No angico não tinha mais espaço para o garoto. Neide, a mãe, pela primeira
vez dava sinais de cansaço. Já não sabia mais o que fazer. Toni estava
irredutível. Queria o menino na roça. Continuariam no Angico. Não sairiam de lá
para nenhum outro lugar. Afinal, dizia ele, ninguém precisa estudar.
João estava em campanha eleitoral.
Ele tinha suas bases em Montes Claros que naqueles tempos era “dono” do Brejo. Tudo
se decidia lá. João já havia sido Prefeito de Montes Claros, mas ele queria
mais, por isso tinha que engolir poeira. Assim sendo inesperadamente acabou
baixando no Angico, em casa de Neide e Toni. Bebeu água do pote, comeu biju e
pediu voto. Neide sequer sabia quem ele era. Mas ela estava desesperada e já
quase incrédula quanto ao cumprimento da própria profecia. Quando alguém está
se afogando qualquer raizinha pode ser a salvação. E era: Ela interpretou a
visita daquele forasteiro a sua humilde casa como um aviso dos Céus. Um enviado
de Deus. Sem saber com quem estava falando, mas de saco cheio com tantas
promessas não cumpridas por velhas e felpudas raposas para a construção da
Escola que nunca saia, Neide, aquele divino ser, foi curta e grossa.
Apontando para o raquítico
pirralho, cujo nariz escorria, disse ao desconhecido Politico:
-O senhor está vendo aquele
magrelinho ali? Pois é, ele é meu filho! Tem dez anos e nunca foi à Escola. O
nome dele é Levi. Vira e mexe vem gente aqui igual ao senhor pedir voto
prometendo escola pra todo mundo. Eles ganham e somem e nós continuamos sem Escola.
Quando o Levi nasceu eu falei que ele ia ser Médico. Mas como, se até agora não
iniciou nem o curso primário? Por isso só voto em quem o transformar em Médico.
Se o senhor fizer dele um Médico terá o meu voto.
Aquele cidadão, paciente, observou
aquela senhora com piedade. Apesar de ele próprio se originar de família
simples, não conseguia entender de onde vinham tanta simplicidade e convicção.
-A senhora não precisa votar em
mim. Mas eu tenho a obrigação e aqui lhe dou a minha palavra, de transformar o
Levi, seu filho, em Médico. Basta que a senhora me autorize leva-lo para Montes
Claros. Estou autorizado?
-Está. Pode levar!
Muitos anos depois Levi era
Médico. Seu consultório ficava ao lado do consultório de seu benfeitor e agora
padrinho. Trouxe todos os familiares do Angico para Montes Claros.
O sujeito que estava no Angico
pedindo votos. Que ouviu as súplicas daquela rude senhora. Que chamou a si a
responsabilidade de tornar aquela pobre criança um grande e respeitado Médico,
era ninguém menos que o Doutor João José Alves, um dos mais importantes Médicos
que o norte de Minas Gerais já produziu e que, portanto, dispensa aqui
quaisquer outras apresentações. Aliás, muito já escrevi sobre ele. O cara era tão
fudido que mesmo em vida, tinha uma praça em sua justa homenagem que ainda
existe no centro de Montes Claros, onde se localizavam sua casa e consultório.
Pode?
Em tempo: ele se elegeu naquela
campanha. Foi prefeito da bela MOC pela segunda vez.
É...
Por vezes, dizia Albert Einstein,
é no meio da dificuldade que se encontra a oportunidade.
E tenho dito!
Ótimo 2013 pranóis.
Postado ás 11 horas do dia 01 de Janeiro de 2013
Postado ás 11 horas do dia 01 de Janeiro de 2013
*O autor
nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.