Coisas do Brejo – Garapas Brejeiras I
*Enoque Alves Rodrigues
Herança de nossos antepassados que aqui se aportaram com suas caravelas,
ainda hoje, esporadicamente, aqui e ali, se cultiva no Brasil e principalmente
no norte de Minas Gerais, a tradição milenar dos engenhos artesanais que em sua
maioria são aqueles cuja moagem é feita mediantes tração animal ou
especificamente por algumas cangas de bois quando se quer produzir em grandes
escalas melado, rapadura, mascavo, doce, “puxa”, cachaça, etc.
Em meus tempos de menino quaisquer famílias detentoras de um pequeno
pedaço de terra se destacavam pelo cultivo da cana de açúcar e a sua posição
econômica era medida pelo tamanho do engenho que tinha assim como pela
quantidade de cangas, trelas ou parelhas de bois que utilizavam aos seus
serviços.
No Brejo das Almas ou Francisco Sá e suas adjacências as moagens se
iniciavam lá pelo mês de Julho e se estendiam até o mês de dezembro absorvendo
mão de obra excedente e barata que, via de regra, tornava-se obsoleta
imediatamente após o término das atividades nos engenhos. Durante a colheita e
moagem da cana famílias inteiras se acorriam ás fazendas por que sabiam que em
todas elas havia o fator gerador de seus estipêndios com os quais pelo menos
durante aquele semestre supririam suas necessidades mais elementares. O “ganhâme”
era pouco, mas o trabalho pesado que as mantinham era constante e com isso dava
para ir enganando o estômago. Todas as fazendas iniciavam ao mesmo tempo a
moagem da cana quando o cantar dolente das moendas em sinfonia perfeita, ecoava
pelas quebradas do sertão sem fim. Eu ficava extasiado naquele mundo e me
sentia como se os meus pés tocassem o solo de outro planeta.
Mantendo a tradição, o meu avô que possuía um bom pedaço de terra também
tinha o seu engenho. Portanto, conheço muito bem essa rotina de perto, pois com
ela convivi em infância. Aliás, várias foram as oportunidades em que me referi
aos engenhos do meu avô em minhas crônicas e livros. Por que era uma rotina no
mínimo curiosa até mesmo para quem “é do meio.”.
No caso particular do meu avô e seu engenho, ao contrário do que muitos
possam pensar, os preparativos se iniciavam em Janeiro de cada ano á partir da
seleção e treinamento “workshop” dos bois e composição de seus respectivos
pares com os quais iriam conviver por longos seis meses. Tinha de existir uma
química entre as parelhas e esta química se aferia desde a sintonia dos olhares
passando pela arrancada ao mesmo tempo em obediência á ordem do tocador até a
manutenção do mesmo ritmo de puxamento á nova ordem de parada ou “break” para
um “lanche ou café” dos dignos colaboradores ruminantes, bem como dos humanos
que não ruminam, mas também são filhos de Deus e não são de ferro, pois saco
vazio não para em pé. Soma-se aos preparativos dos bois ás cangas em madeira
leve e macia que o meu avô talhava com toda maestria e carinho para não
machuca-los. Relhos e ferrões ou qualquer efeito coercitivo não existiam ali.
Todos trabalhavam ordeira e prazerosamente sem imposição alguma por que todos
ali tinham conhecimento e consciência plena de suas importâncias e tarefas que
coroariam com êxitos a busca obstinada da excelência no final da jornada.
As atribuições hierárquicas desenvolvidas pelos seres humanos dentro de
um engenho em plena produção é algo hoje impensável e seguramente difícil de
acreditar razão pela qual me poupo de me aprofundar em sua narrativa pela
complexidade que incansavelmente já expliquei ou pelo menos tentei explicar em
crônicas antiguíssimas e mais recentemente em meu livro “O Brejo das Almas em Crônicas”. Para lhe refrescar um pouco as
ideias as atividades interativas (por que em um engenho de verdade não existe
ninguém trabalhando só, isoladamente) lembram, e muito, o trabalho de
formiguinhas em seus habitat.
Enquanto no canavial um caboclo corta a cana o outro a transporta para o
carro de bois onde outro caboclo depois de acomoda-las ordena aos bois para que
puxem o carro até o engenho aonde outros bois esperam para triturar a cana
convertendo-a em bagaço. Chegando ao engenho outro caboclo (o singular que
utilizo é uma mera “licença poética” por que em um grande engenho tudo é
superlativo. Tudo é no plural) limpa a cana e leva até as moendas que após
moê-las subtrai-lhes, à exaustão, determinado “líquido dos deuses” que ainda em
sua fase primitiva recebe o nome nada pomposo de “garapa” o qual, felizmente,
ostenta por pouquíssimo tempo ou somente enquanto percorre dentro do cocho a
distância entre ás moendas e o tacho de bronze fumegante pelo fogo nos
fundilhos. Dali, ela, a garapa, vai passar por várias mutações e metamorfoses
de acordo com a determinação do dono do engenho que fica muito difícil imaginar
que o produto final no qual resultou tudo aquilo foi garapa algum dia.
É uma caminhada escalonada e progressiva a que a garapa empreende desde
que sai da cana e a cada ponto por ela atingido é um produto pronto e acabado.
De posse de uma cuia escumadeira ou espumadeira, com a qual se retira a espuma,
quem determina o ponto certo e a qual produto o mesmo corresponde é uma cabocla
ou caboclo, no meu tempo era cabocla fêmea que recebia o nome de “viradeira de
garapa”, em alusão ao vai-e-vem frenético de sua enxada de madeira que revirava
a garapa transformando-a em estado sólido sem queimar ou endurecer precocemente
o que seria uma perda total da taxada.
O ponto que mais me atraia na taxada e que eu esperava ansiosamente era
o segundo ponto. Você sabe qual é o segundo ponto da garapa? Não?
Pois é exatamente o ponto onde a garapa atingiu o estado semissólido que
é aquele onde se faz a puxa e os doces antes de ela endurecer o coração nas
formas de madeira que a transformam em rapadura que como todos sabem, é doce,
mas não é mole. Poderia discorrer longamente sobre ás mil e uma utilidades da
cana e seus derivados, bem como nominar cada etapa de seus produtos. Mas
fatalmente eu não poderia fazê-lo sem chegar à “mardita” que me reservo o
direito de me abster pelo fato de jamais ter ingerido álcool e não vou aqui
fazer apologia ou propaganda de algo do qual não sei o gosto. Fazer cachaça eu
sei. Beber cachaça, não.
Sinceramente, não sei se em meu Brejo das Almas ainda há engenhos. Se
existem é certo que não são como descrevi. É possível que assim como as
mutações e metamorfoses pelas quais passam a cana na confecção de seus produtos,
os engenhos brejeiros hoje não devem ter o menor resquício do que foram antes. Perderam
status. Suas moendas outrora barulhentas emudeceram. Não cantam mais. Gostaria
muito que em minha próxima ida ao Brejo das Almas algum local me apresentasse a
um engenho para que eu o compare com a imagem do que restou no fundo de minhas
reminiscências.
E tenho dito!
*Enoque Alves Rodrigues é Brejeiro de nascimento.
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