A FÊNIX BREJEIRA IV – PASCOMIRO
Enoque Alves Rodrigues
Ele caminhava pelas empoeiradas
ruas do pequeno povoado de Brejo das Almas, HOJE Francisco Sá, quando não havia
ainda nenhuma rua asfaltada. Subia no sentido de quem vai para Montes Claros.
Mas atenção, só no sentido, ou melhor, na direção da bela MOC, porque na
verdade, ele andava sem destino. Se não tinha ele um paradeiro pré-definido,
porque razão teria um destino?
Primeiro acho importante informar
que o amigo que está sendo retratado hoje neste limitado pedaço de papel
eletrônico, nada tinha de especial que o colocasse na condição de “diferente”
de todos e quaisquer locais. Tampouco fruía de alguma outra posição que o
destacasse de seus iguais. Assim sendo, Pascomiro, era como qualquer um,
resguardadas as devidas proporções que, aliás, eram muitas. Senão vejamos:
Não tinha ele nenhuma profissão
que pudesse lhe auferir alguns trocados no sentido de suprir-lhe as
necessidades mais precárias ou amenizar um pouco a fome que o atormentava. Não
gostava de trabalhar. Pascomiro fugia do trabalho como o diabo da cruz. Mas ele
gostava de se vestir bem e, porque não dizer, de comer do bom e do melhor.
Bebia da “melhor cana” segundo os paus d’agua de plantão, dignos e implacáveis
conhecedores do verdadeiro néctar dos deuses dos alambiques. Por minha vez,
jamais bebi algo que não fosse água, suco, caldo de cana, café ou leite.
Portanto, não sei que gosto tem uma cachaça. Nem duas. Mas respeito nossos amigos beberrões. Eles, assim como eu,
não são ou jamais seremos perfeitos.
Pascomiro andava naqueles tempos
lá no Brejo de todas as Almas em companhia de um andarilho de nome Elias, que a
maioria acreditava ser o profeta. Eles eram, muitas vezes, amparados por
Christiano Carlos Xavier de Souza, parente muito próximo do mais importante
vulto da Inconfidência Mineira, o Mártir do Lago da Lampadoza, no Rio de
Janeiro, de nome Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.
Pascomiro tinha uma maneira muito
peculiar de conseguir que as pessoas lhe dessem algo para comer sem que fosse
necessário sequer que ele abrisse a boca: fingia-se de mudo. Quando, raramente,
algum coração renitente não muito adepto do “repartir o pão,” endurecia, ele
fingia-se de manco. E assim ia levando a vida. Na crise econômica que o Brasil
atravessava, o meu, o teu, o nosso Brejo das Almas foi atingido em cheio. A
fome grassava aquela pobre localidade, na verdade, um pequeno torrão existente
nas extremidades do Estado das Alterosas em meio ao caminho para a velha Bahia
de todos os Santos, ou simplesmente, Bahia para os íntimos de onde provém minha
santa mãe.
O tempo fechou para muita gente
boa. Para gente ruim, também. De fome, cachorro só conseguia latir encostado na
parede. O rei do terreiro, sua majestade, o galo, não cantava. Chorava. Ele
estava, deveras, preocupado com a subsistência de sua prole numerosa de
pintinhos, desprotegidos. As formigas já não tinham folhas, sequer secas, para
transportarem para suas moradas escuras. As cigarras, que são, por costume e
compleição física, constituídas da mais pura alegria, sequer davam algum ar de
graça. Sorrir do que? Cantar pra que? Se tudo ao redor era destruição, miséria
e dor? O João de Barro agora não tinha casa. Construi-la com o que? Se não
tinha água não havia barro, principal matéria prima indispensável ao grande e
inigualável arquiteto da floresta, agora esturricada.
Bem, se toda esta fauna que foi
concebida pela mãe natureza com a mais pura blindagem a quase toda e qualquer
adversidade estava penando, imaginem os simples humanos. Pascomiro, coitado,
não poderia fugir à regra. E ele estava padecendo sem dó e piedade. Fingir-se
de mudo e de manco agora não era nada. Nenhuma sensibilidade causava aos vazios
bolsos Brejeiros, agora, preocupados também com a própria barriga. A crise é o
cão, endurece tudo. Na crise, o que todos querem mesmo é sobreviver já que
viver é impossível. Quanto aos outros, bem, os outros que se virem eles não são
quadrados. Pascomiro também era filho de Deus. Ele também tinha que sobreviver.
Para isso tinha que comer. Após tentar várias artimanhas. Utilizar-se de
inúmeros expedientes, infrutiferamente, agora daria a cartada final. Fingiria
de morto. Bem, isso seria infalível. Puxa vida, porque ele não pensou nisso
antes? Diabo!
Na barriga do mocó, morro onde
hoje se encontra o Cristo, quase todo repaginado, próximo a fazenda de Miranda,
conseguiu uma rede. Mais adiante, algumas velas. Dirigiu-se com aquilo até o
antigo largo da Matriz. Lá chegando acendeu as velas. Cobriu-se com a rede. Um
dos poucos transeuntes que se atrevia sair de casa naquela hora o viu naquele
estado de batráquio morto. Assustado bateu em outras portas e de repente
pequena multidão se formou ao redor de Pascomiro. Penalizados, decidiam, ali,
naquele momento, que fim daria ao “morto.” Uns diziam: coitado, morreu de fome.
Ao passo que outros respondiam. Pois é, este é o mendigo Pascomiro. Quantas
vezes me pediu algo para comer e eu, perverso, não lhe dei? Alguns mais
católicos falavam: agora não adianta se lamentar. Tudo que antes existia para
ele já não existe mais. Defunto não precisa comer. Necessita de cova. Vamos,
imediatamente, leva-lo para o cemitério antes que seja demasiado tarde. Dito
isto, juntaram a rede. Quatro marmanjos, com as caras cheias de pinga (vocês ai
já notaram que por mais difícil que seja a situação nunca falta pinga? E que
sempre tem alguém para pagar uma dose de pinga para outro alguém ao invés de
lhe oferecer um pedaço de pão?), cataram, cada qual uma ponta da rede e, à
guisa de forquilhas, iam levando aquela draga velha para dispensar no antigo
campo santo. Mas como santo Onofre, o protetor dos bêbados não estava de
plantão para os quatro que carregavam, mas para Pascomiro, estes tropeçaram nas
próprias pernas e caíram, levando ao chão aquela tralha que rolou por pequena
ribanceira e por fim caiu numa das muitas lagoas que existiam em Francisco Sá, onde
segundo a Lenda, eram desovados os corpos de garimpeiros após terem sido
acharcados de seus patuás cheios de ouro. Não deu outra. O “morto” Pascomiro
que de morto mesmo não tinha nada além da
preguiça, bateu com as fuças exatamente num destes estufados patuás. Daquele
dia em diante acabou-se a pobreza. Mandou a miséria para as cucúias e foi viver
da maneira que mais gostava. Sem fazer nada.
É...
Por vezes, diziam os mais
antigos, a sorte só existe para aqueles que não acreditam nela.
E tenho dito!
Enoque Alves Rodrigues, que vive
em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção. Atua há mais de 41 anos na
área de Engenharia. É autor do livro “Liderança Conquistada” que já se encontra
nas melhores Livrarias do Brasil e pode ser pedido diretamente pelo e-mail: enoque.rodrigues@ibest.com.br ou pelo telefone da Livraria SN Station, (11)
2221-0703. É Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá,
Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.