A FÊNIX BREJEIRA – MANEZIN VAQUEIRO
Enoque Alves Rodrigues
Na década de 1960, mesmo com a
crise, as visitas aos principais pontos turísticos mais importantes do Velho
Brejo das Almas, ou Francisco Sá, “beldade do norte de Minas”, fervilhavam-se.
Uma das atrações turísticas mais visitadas era a antiga e histórica Lagoa das
Pedras. Para lá, convergiam-se multidões, vindas de quase todas as localidades
e se aportavam às suas margens, onde passavam dias e noites se divertindo com a
gama infinita de lazer que ali existia.
Águas claras e cristalinas onde
se via, nitidamente, várias espécies de peixes, hoje inexistentes, nadando ao
fundo. Ovinos, bovinos, caprinos, suínos e outras criaturas do mundo animal
domesticado, misturavam-se a outros animais, do mundo racional civilizado, cada
qual consumindo, engolindo inteiro, mastigando e ruminando, de acordo com o que
determinam suas respectivas cadeias alimentares.
Canoas a remo, barquinhos com e
sem motores, transportavam os homens “de coragem” até o meio da lagoa, cuja
profundidade, diziam não ter fim. As mulheres com suas crianças de colo
palestravam sentadas à beira da Lagoa com seus pezinhos delicados levemente
mergulhados na água rasa, enquanto que seus pimpolhos, mais crescidinhos,
cavalgavam sobre pôneis nativos ou brincavam de tourear algum bezerrinho
recentemente desmamado. Os mais traquinas brincavam de caçar com bodoque,
juritis, pombas amargosas, codornas, rolinhas e outras avezinhas silvestres.
Famílias abastadas de Montes
Claros, Grão Mogol, Salinas e até mesmo de “Belzonte”, Capital das Alterosas,
faziam dali seu habitat natural. Muitas chegavam ao ponto de fixarem suas
residências naquelas imediações e de lá não arredavam pé de forma alguma.
Usufruíam dos confortos que a grana lhes proporcionava naquele Rincão Paraiso,
enquanto que muitos de nós, Brejeiros autênticos, nascidos nos arrabaldes ou com
os dois pés cravados num brejo qualquer de lá, apenas nos conformávamos em vê-los se divertirem. Era tudo que nos
restava. Naqueles tempos assim como é hoje, amanhã e para todo o sempre, amém,
a nata do leite jamais se deixou misturar com o soro. O máximo que nós, soros,
conseguíamos, era como já disse, observar, discretamente, a nata em sua
diversão.
- Uai, e a quem pertencia a Lagoa
das Pedras?
- A nós, Brejeiros, uai!
Também íamos lá, claro. Mas
somente quando não se achavam os ricos. Sim, porque eles nos olhavam com
desdém. Agiam em relação a nós que não fruíamos de seus “status quo” como se
fossemos Cidadãos de segunda classe. Desprezavam-nos em nosso próprio
território. Nada podíamos fazer. Eles aportavam riquezas ao erário de Francisco
Sá. Eles faziam a máquina pesada da Administração Municipal girar, ao passo que
nós, povinhos simples, apenas produzíamos algumas migalhas que em nada
impactavam de relevante.
É possível que muitos dos meus
conterrâneos que neste momento se encontram lendo as bestagens que escreve esse
reles genérico de escritor, se lembrem, com saudades daquelas tardes e manhãs
domingueiras à beira da Lagoa das Pedras.
Manezin Vaqueiro era um desses
pobres brejeiros, sem eira nem beira, que se contentava apenas em ver a nata
bem sucedida se divertir. Timidez própria dos que “não souberam nascer”, vivia
embrenhado nas matas adjacentes a Lagoa das Pedras, observando, sorrateiro, a
pompa de seus desiguais. Os homens remavam enquanto sorriam deixando à mostra o
ouro que cobria seus dentes bem tratados, que reluziam sob os reflexos
lampejantes do Astro Rei naquela manhã primaveril.
De repente, grita uma voz de
mulher:
- “Socorro. O Marquinho está se
afogando... Tirem-no da água, pelo amor de Deus!” Á maneira que a mulher não
obtinha resposta ao seu pedido de socorro, a criança se afundava e eram mais
fortes e desesperadores os seus gritos de aflição.
Ao notar que nenhum daqueles “bem
nascidos, bundas moles” se manifestavam, Manezin Vaqueiro perdeu a timidez. Num gesto de bravura,
coragem e destemor, imbuído do mais puro e elevado sentimento de amor ao
próximo e solidariedade, independente de condição social, com habilidade e
destreza peculiares a todos nós que nascemos na barranca do rio, jogou-se, de
corpo e alma, nesta altura mais alma que corpo, nas águas profundas da Lagoa,
só saindo de lá, minutos depois, com a criança quase desfalecida em seus
frágeis braços. Foi aplaudido por todos que ali estavam pela sua coragem. Mas,
matuto que é matuto, principalmente o brejeiro, não se deixa influenciar por
endeusamentos fúteis.
Será?
À sua maneira, frente ao
mulherio, carimbou, ali mesmo, a sua lição de moral, passando um tremendo sabão
nos “bundas moles” que não tiveram coragem de lançarem-se ao rio.
- “Ocêis é uns riquin de merda
qui num tem corage, porra niúma e qui borra as bota a cada peido... É muito
fáci ficá ai si divertindo inquanto o minino afoga... De nada adianta ter esses
barrigão cheio de cumida boa si nu curação de preda num tem nada. Ni um poquin
de amô siqué... Eu divia era de cutucá ocêis cumia vara de tocagado prá vê se
ocês se acorda... A cabeça docêis é cuma a cabeça de bagre, só tem b...”
Antes que Manezin completasse a
frase, os “ricos bundas moles” corados de vergonha, no afã de sufocarem aquela
descompostura matuta, na maior cara de pau, alçaram-no do chão e enquanto
caminhavam com ele nos braços, gritavam, em uma só voz, a plenos pulmões, este
refrão, aliás, próprio dos habitantes do Sudeste quando em aniversário.
- “E prá Manezin, nada?” Ao passo
que outros gaiatos respondiam.
- “Tudo!”
- “E, então, como é que é?”
- “É!”
- É pique... É pique... É
pique... É pique... É pique. É hora... É hora... É hora... É hora... É
hora. Ra... Tim... Bum... Manezin...
Manezin... Manezin... Manezin.
Num misto de frustração pelo
“abafo” de suas palavras agora inaudíveis aos ouvidos humanos, mas sentindo-se
como se fosse a Fênix Brejeira que renascia das cinzas nos braços daqueles
marmanjos vestidos do mais puro tergal, Manezim, agora, apenas sorria. Um
sorriso amarelo e desdentado, é verdade, mas era um sorriso.
Não demorou muito para que os
“riquin bundas moles” encontrassem o primeiro “infernin” mais próximo aonde
“dispensaram aquela tralha”. Antes, no entanto, tiveram o cuidado de efetuar o
pagamento antecipado de várias garrafas de “Chora Rita”. Ao saírem dali,
deixaram ordens expressas e implacáveis à Margot, dona daquele fétido boteco de
beira de estrada: “Segure esse tonto ai, Margot. Faça-o beber quantas garrafas
de pinga forem necessárias. Não deixe que esse encosto vá à Lagoa encher o
nosso saco. Não queremos que esse estorvo perturbe o nosso merecido sossego.
Estamos cansados de não fazer nada. Nós precisamos nos divertir”.
Por vezes, não é sem motivo que o
velho adágio popular nos diz que quando a esmola é muito grande o santo deve
desconfiar.
Enoque Alves Rodrigues, brejeiro de
nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia, é Escritor com dois
livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas),
Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das
Almas, Minas Gerais, Brasil. Visitem meu blog: Pra variar, é
sobre Francisco Sá: http://enoquerodrigues-earodrigues.blogspot.com/ http://www.facebook.com/profile.php?v=info&edit_info=all&ref=nur