- Bom dia, irmão Laudelino...
- Deus seja louvado!
- Ontem, à noite, escutei na Rádio Nacional do Rio de Janeiro que o
homem desceu na Lua...
- Mentira... Deus não daria tanto poder e inteligência ao homem!
- Foi a Rádio quem disse...
- A Rádio mentiu!
- Acredito que neste ano faremos uma farta colheita...
- Isso sim, é verdade... Deus seja louvado!
- O senhor precisa se juntar a nós durante ás refeições. Há sempre uma
cadeira para o senhor...
- Não posso. Não sou digno de tanta reverência. Já lhes dou muito
trabalho. Basta as minhas limitações físicas causadas pela velhice que não me
permitem colaborar com vossa pessoa e família nos muitos afazeres da casa...
- Não se preocupe irmão. Deus já nos deu mais que o suficiente que é a
saúde para que possamos trabalhar com fervor. De nossa parte não nos é nenhum
esforço ou favor ampara-lo. Ficaremos agradecidos se pudermos suprir vossas
necessidades. Quero que saiba que tudo que temos também lhe pertence...
Pronto... A sorte estava lançada, por que a simples citação do nome do
Criador por parte de Liberato, meu avô, já era a senha de acesso a todos os
segredos que levavam aqueles dois senhores de barbas brancas a intermináveis
conversas que, via de regra, varavam noites.
Não obstante as elevadas culturas de ambos, amealhadas na grande
universidade da vida, além de professarem a mesma doutrina, raramente seus
pontos de vista se convergiam. Convencionaram entre si, por quais critérios eu
jamais soube, só iriam dormir quando finalmente chegassem a um acordo. Enquanto
isso não ocorria o céu era o limite. Eu, criança ainda, admirador confesso do
meu avô, ficava ali, de plateia, observando tudo aquilo e, na maioria das
vezes, torcendo para que eles jamais se entendessem para que eu pudesse solver
um pouquinho mais do conhecimento de cada um. Ás vezes eu apostava comigo
mesmo... Quem afinal cederia? Quem concordaria com quem? De quem seria a
palavra final? Frustro-me confessar, cinquenta anos depois, que eu dificilmente
acertava. Os caras eram foda mesmo, e quando um já se considerava vencedor ou
detentor da palavra final que encerraria a celeuma, o outro, inesperadamente,
“levantava uma questão de ordem qualquer” e, bíblia em punho, com o indicador
apontando capítulo e versículo que sustentavam suas afirmativas na dita cuja,
começava tudo de novo. Enquanto eu cochilava, dormia e acordava o “embate”
corria solto, principalmente nas noites de sextas-feiras por que, como
adventistas, não trabalhavam aos sábados, ou seja, o meu avô não trabalhava aos
sábados já que Laudelino, como já disse, nunca trabalhava por suas limitações.
Era exatamente assim: cada qual se munia de sua bíblia e toda e qualquer
discussão, dúvidas e acertos eram elucidados mediante as claras letras do livro
sagrado. Fora dele não havia conversa. O diabo é que como acontece ainda em
dias atuais, cada um a interpreta á sua maneira o que seria até aceitável,
porque difícil e complicado se torna quando um quer convencer o outro de que
certa e inquestionável é a sua interpretação. Ai o bicho pega mesmo.
Naquela noite a coisa parecia que ia ferver. Aqueles dois senhores do
bem se miravam, de soslaio, como se fossem fulminar o outro.
O tema era “festa das cabanas.”. Se você não é ou nunca foi adventista
“quatrocentão” não vai saber do que estou falando. Isso vem do Velho
Testamento. É coisa antiga, mas que era costume daquela época já longínqua.
Também não vou te explicar por
entender subjetivo. O mineirismo é proposital.
Pois é, Laudelino tentava convencer Liberato, meu avô a respeito da
origem ou de como, quando e onde começou a primeira festa das cabanas. Dizia
Laudelino que foi Abraão no Egito, “um bilhão” de anos antes de Cristo. Já
Liberato afirmava categoricamente que quem celebrou essa “p” pela primeira vez
foi Moisés, rumo à terra prometida, e que o fez para comemorar as farturas,
etc., que data e local jamais poderiam ser as mencionadas por Laudelino por que
o tal de Moisés nunca antes pisara aquelas terras. Já de inicio se percebia que
aquela noite seria longa. Que o tema seria demasiadamente polêmico e que os
dois debatedores não estariam dispostos a cederem. Que não abririam mão de suas
minucias em beneficio do outro. Quando minha Dindinha (avó) percebia isto,
corria à cozinha e preparava chás, biscoitos, água e leite que deixava sobre a
mesa à disposição do marido Liberato e do irmão Laudelino que, envolvidos nas
acaloradas discussões nunca tomavam conhecimento daqueles mimos.
Cinco horas da manhã. De tanto molharem o dedo para folhear a bíblia
estavam com a boca seca. Mesmo assim não se entregavam. Não se deixavam
convencer. Os argumentos eram inconsistentes no entendimento de ambos.
Esgotado apesar de curioso para assistir aquele final, acabei dormindo.
Ao me despertar ás 10 horas vi que o meu avô repousava sobre um velho catre que
ficava na sala não obstante ser este mobiliário próprio de dormitório, enquanto
que o irmão Laudelino dormia, a sono profundo, sobre duas cadeiras à guisa de
cama. Frustrado e mais que desiludido por ter “perdido o ultimo ato” perguntei
ao meu avô quem havia vencido. E ele, para minha surpresa e felicidade
tranquilizou-me: Não se preocupe Noquinho. A peleja ainda não terminou.
Combinamos apenas uma trégua a fim de descansarmos um pouco para, quem sabe,
liquidarmos esse assunto hoje á noite... O irmão Laudelino é muito sabido, mas
um pouco “cabeça dura!”.
- Perdão, meu Deus!... – Exclamou meu avô, dando três tapinhas na boca.
– Eu não queria dizer isto!
* O autor é Brejeiro de nascimento.