sábado, 10 de dezembro de 2011

SOBRE O BREJO DAS ALMAS – SIMPLÍCIO, O MASCATE.

SOBRE O BREJO DAS ALMAS – SIMPLÍCIO, O MASCATE.

Enoque Alves Rodrigues

Longos anos se passaram desde que o Bandeirante Antonio Gonçalves Figueira e toda a sua comitiva se aportaram, em um triste e melancólico dia de finados, nas antigas plagas de São Gonçalo. Ali, naquela ocasião como é de conhecimento de todos, segundo nos relatam historiadores, fincaram-se um velho cruzeiro, confeccionado em madeira tosca, ao redor do qual se iniciou a povoação daquelas terras, que mais tarde se transformariam em freguesia e muitos anos depois, em Cidade, a qual chamaria de Brejo das Almas e depois, Francisco Sá, em justa homenagem ao grande Ministro da Viação e Obras Públicas, nascido na Fazenda Brejo de Santo André, nas imediações.

Transcorridos mais de dois séculos desse evento, o progresso ainda capengava e insistia em não atingir aquelas bandas. Mesmo depois de o grande estadista levar até Montes Claros a ferrovia que revolucionaria todo o Norte Mineiro, o Brejo das Almas, quiçá por não fazer parte daquele promissor circuito férreo, ou por situar-se a considerável distância de Montes Claros, ao qual fora, outrora, vinculado, pouco se desenvolvia. Os transportes de mercadorias eram feitos de maneira precária, sobre burros, carroças e carros de bois. Não entrarei nos detalhes da história devido eu próprio já tê-la contado várias vezes, até por que não é este o objetivo desta crônica. Abro esse parêntese somente para informar aos “jovens mancebos” e lembrar aos “velhos anciãos” que não faz muito tempo, os confortos que hoje usufruímos, simplesmente inexistiam. Mesmo pairando, nos dias atuais, algumas sequelas rudimentares sobre os nossos costumes, nada nos remete aqueles tempos. O grande e inesquecível Geraldo Tito Silveira, a quem tive o privilégio de conhecer, em uma de suas valiosíssimas obras, relata com riqueza de pormenores, o que ocorreu na Cidadezinha do Brejo das Almas quando a ela adentrou o primeiro veiculo a combustão: um velho FORD de bigodes. Foi um Deus nos acuda. Houve mesmo até quem o amaldiçoasse dizendo que aquilo era coisa do diabo. Matronas que se achavam debruçadas nas janelas ao vê-lo faziam o sinal da cruz e fechavam-nas, imediatamente. Crianças que estavam brincando nos terreiros eram empurradas para dentro de casa. Alguns mais afoitos, geralmente os “mais usados”, ou melhor, os mais velhos, organizavam procissões e saiam atrás do veiculo, onde o motorista a caminho de Salinas ou Grão Mogol, quase morria de medo da turba em fúria. Restava ao pobre do chofer contra-atacar com rezas brabas implorando ao São Cristóvão, protetor daquela reduzidíssima espécie, para que o FORDECO não abrisse o bico antes de galgar subidas íngremes ou sem que primeiro se atravessasse a curva da morte. Mas quem foi que disse que os santos estão sempre de plantão e a nossa disposição para nos atender sempre que deles necessitamos? Ledo engano: na maioria das vezes os “bichões que cuspiam fogo” não conseguiam atravessar nem mesmo a mais insignificante lombada natural e antes de atingir as subidas mais importantes, empacavam-se, qual jumento ruim, e ai, não tinha jeito, a turma enfurecida partia pro pau, até que uma providencial intervenção de alguma autoridade local relevante a acalmasse.

Não é de hoje que as relações humanas entre iguais e coisas são de amor e ódio. Ama-se na mesma proporção em que se odeia e vice-versa. Assim, enquanto o Brejeiro não se familiarizava com aquela novidade, até mesmo pela falta de informação, esconjurava o dia em que o alemão Karl Benz, criou o primeiro automóvel em uma tarde de outono de 1885 que foi patenteado neste mesmo ano e no ano seguinte 1886, fundou a Mercedes. Quando, finalmente, os pesadões conseguiram romper aquele impacto inicial do medo, quando os brejeiros passaram a conviver com alguma assiduidade com aquelas geringonças, apaixonaram-se, perdidamente. Cada um, mesmo não sabendo com quais meios e recursos, queria, a todo o custo, comprar uma daquelas máquinas. Os pais de Alfredo e Francisco não foram os primeiros, como alguns afirmam, a ter um carro em suas garagens no Brejo; até porque, naquele tempo, a fazenda onde eles viviam em criança, não pertencia ao Município do Brejo das Almas. Darcy, fazendeiro e político regional influente, foi quem teve esta primazia. Há, no entanto, controvérsias, as quais respeito e não discuto, até porque me levariam do nada a lugar algum.

Chega de carros e vamos voltar para a realidade do inicio destas mal traçadas linhas. Simplício, era esse o seu nome, vivia de mascatear. Morava na Vila Vieira, próximo a Lagoa, onde deixava seus animais pastando. No lombo do burro varava dias e noites, dando um duro dos demônios, para no final do mês levar alguma merreca pra casa. A vida de caixeiro viajante ou mascate naquele tempo não era fácil. Com seus dois burros, sendo um para montaria e o outro para cargas, comprava em armarinhos de Montes Claros, botões, agulhas, linhas, dedal, elásticos, anáguas, combinações, véus, batons, esmaltes, lixas, espelhos, perfumes e cosméticos baratos, pentes e quando o dinheiro dava, algumas peças de tecidos como morim e tergal. Embrenhava-se nos sertões de Minas e, quando menos esperava, involuntariamente, estava em Monte Azul, lá no extremo, prestes a atravessar a ponte para o Estado da Bahia. É chão, meu nego. Ele tinha uma forma natural e muito peculiar de cultivar a clientela e fazer negócios. Ao chegar às paragens, procurava uma sombra onde amarrava os burros, geralmente em frente à Igreja. Com uma enorme cabaça aberta ao fundo, com pequena fenda à frente onde punha a boca, gritava aos quatro ventos, num português sofrível que faria Camões mover-se no túmulo: “Alô povo de Sun Gerardo, Simprisso Mascatero chegô trazeno procêis as nuvidade deretamente da cedade princesa do norte... Nóis tem de tudo um poco. Nóis tem butão pra muié butuá ropa, pano pra muié fazê vistido pra cubri as vregonha. Nóis tem burracha pra sigurá cirôla de home e de muié... Cumbinação pra muié potregê os peito. Véio pra cubri cabeça de muié crente. Batom pra dexá  muié cuns beiço vremeio quinêm carmim. Pente pra muié pintiá cabelo. Lixa pra muié lixá unha. Pó de arroiz, água de chero, tarco e prefumo pra muié ficá bunita e cheroza e num levá chifro. Nóis tem tamém ismarte pra muié pintá unha das mão e dos pé... Agúia, e retroze pra muié custurá ropa e dedár pra muié num furá os dedim.” Simplício era uma figura. Ele falava assim mesmo e todos o entendiam, porque, era esse o “dialeto” do lugar. Lá em São Geraldo, naquele tempo um pequenino povoado, Simplício quando chegava, amarrava seus burros debaixo de um grande pé de umbu que ficava exatamente aonde? Dou-lhe uma. Dou-lhe duas e dou-lhe três: quase dentro do Cemitério! E porque eu sei disso? Por que a nossa casa, assim como a pequena Escola onde minha mãe lecionava, distavam apenas alguns passos do dito cujo. Simplício amarrava os burros lá, que ficavam sozinhos pastando e ia vender suas mercadorias em frente a pequenina Igreja. Aí, nós, moleques aproveitávamos para fazer a festa. Só pra sacanear, enquanto Simplício anunciava suas bugigangas, nós, “capetas em forma de guri como dizia a música”, desamarrávamos os animais e depois de caminharmos com eles por centenas de metros dentro da mata, finalmente os amarrávamos em outra árvore, bem longe, onde jamais as vistas de Simplício alcançariam. Retornávamos para as proximidades do pé de umbu e escondíamos atrás das moitas, afim de que pudéssemos nos esbaldar, bem de perto, com o desespero e xingamentos de Simplício. Após esperarmos, pacientemente, por várias longas horas, lá vinha o pobre do infeliz. Simplício, ainda distante, notou que os burros não estavam mais lá: “Oh, Meu sinhô Jisuis, onde está meus burro? Será que eles se asortaram da pranta? Mais diabo, num é impussive, apusquê eu amarrei eles cun força. Isso num tem cabimento apusquê sinão eles tamém se asortava das otras arve nos otro lugá. Capeta, apusquê isso só acuntece aqui em Sun Gerardo? Será qui é arguma mardição desse sumutéro? Ô dó, agora qui tô vêno qui isso acunteceu a muincho tempo apusquê os bichim nem tivéro tempo de cagá aqui. Sêno anssim eles vai tá longe. Oh meu bum jisuis, ocê qui tamém andô num jumentim cum seus pai me ajuda a encontrá os meu!” Antes que maiores aflições se apoderassem de Simplício, surgíamos como se tivéssemos brotado do nada e, de maneira natural e dissimulada, nos apresentávamos para ajudar: “Seu Simplício, o senhor está procurando pelos seus burros?” “Tô, sim, miséra, apusquê, ocêis viu?” “Sim, nós vimos. Estávamos caçando preá e deparamos com eles debaixo de uma árvore há um quilômetro daqui!” “Antonce vamo fazê o siguinte, ocêis me leva lá pra iêu trazê eles de vorta!” “Sabe, seu Simplício, respondíamos todos, procurando valorizar o próprio passe, bem que nós gostaríamos muito de ajudar, mas temos que nos preparar para irmos à Escola!” “Diabo docêis cum esse nigóço de iscola. Quanto mais istudia mais burro fica. Vamo cumigo lá nos burro qui quando nóis vortá cum eles eu vô dá uma grujeta procêis e ai o ganhame é de todos nóis, apusquê amanhã eu tenho qui amanhecê, niguciá e drumi em Caçarema!”

Era tudo que queríamos ouvir. Pegávamos na mão de Simplício e, como se estivéssemos praticando a primeira boa ação do dia, o levávamos até seus burros. Ele, agora feliz e reconfortado, abria aquele sorrisão. Depois de nos dar alguns trocados, para comprarmos bolinhas de gude, ainda nos elogiava: “Cuntinue anssim meus fio, cum esse curação bundoso e sem niúma mardáde. Num é sem mutivo qui Jisuis, o fio do hôme falô:  Dichae qui vindi a mim os piquinino apusquê deles é os reino do Céu!”

É!

Por certo, a máxima, exaltação grandiosa da pureza dos inocentes, proferida pelos Lábios Santos, Imaculados e Misericordiosos do Divino Mestre do Madeiro, O Filho de Maria e José, que por todos nós derramou Seu Precioso Sangue no Gólgota, não se referia aqueles pobres diabinhos de São Geraldo. Não fazíamos jus a ela. Se Ele ali estivesse, certamente que dessa forma a proferiria: “Pelo amor de Deus, afastai de Mim esses tenebrosos capetinhas, porque não são deles o Reino dos Céus!”

Enoque Alves Rodrigues, brejeiro de nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia, é Escritor com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil. Visitem meu blog: Pra variar, é sobre Francisco Sá: http://enoquerodrigues-earodrigues.blogspot.com/  http://www.facebook.com/profile.php?v=info&edit_info=all&ref=nur

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