segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

FELIZ NATAL E UM PRÓSPERO 2013, BREJEIROS!


FELIZ NATAL E UM PRÓSPERO 2013, BREJEIROS!
*Enoque Alves Rodrigues

Alô, Brejeiros. Alô meu povo!

“Ói nóis aqui travêiz!”

Por mais um ano estivemos juntos e separados. Juntos, por que ficamos, através de minhas crônicas, que são postadas neste Blog inteiramente dedicado ao Brejo das Almas ou Francisco Sá e seu povo, meus diletos conterrâneos, que sempre me prestigiaram concedendo-me a honra e privilégio de lerem aquilo que despretensiosamente escrevo. A internet, nesse sentido nos ajunta de maneira inequívoca ao ponto de nos sentirmos uma só pessoa, mesmo estando eu aqui em São Paulo há mais de 1000 quilômetros de distancia e vocês ai em meu Brejo das Almas querido.
Separados porque mesmo sendo o meu desejo, nem sempre consigo escrever-lhes com a frequência e assiduidade que gostaria. Principalmente neste ano de 2012 que se finda, devido eu ter abraçado outras atividades que, confesso-lhes, estão consumindo muito do meu já escasso tempo.

Foi muito bom contar com vocês durante mais este ano. Espero poder continuar sendo digno de suas atenções e credibilidades no próximo ano de 2013. É certo que não tenho a pretensão de agradar a todo mundo. Assim sendo talvez seja possível que os meus escritos mesmo sendo referentes a épocas remotas e extemporâneas aos dias atuais, tenham em algum momento desagradado alguns ou até mesmo frustrado. Mas isso para mim não tem a menor importância. O importante, na verdade, é a consciência tranquila de que o que me motiva está sendo cumprido, ou seja, compartilhar com muitos de vocês que não tiveram oportunidades de tomar conhecimento a respeito de fatos de há muito ocorridos em nosso Brejo, que o tenham agora através destas crônicas, até porque a maioria de minhas narrativas não se encontra ainda registrada nos anais da história. Elas foram passadas pelo boca a boca, de pai para filho e divulga-las, hoje, possibilita que estes fatos não venham morrer um dia ou cair no esquecimento, deixando os nossos pósteros órfãos.

Desejo a todos vocês meus conterrâneos os mais puros e sinceros votos de um Feliz Natal e um ano de 2013 cheios de Paz e muitas realizações, em vossas vidas pessoais ou profissionais.

Lembrando sempre que querer é poder. Desde que você vá á luta e acredite em você, próprio. Mas não se esqueça de que do Céu não cai nada. Aliás, aqui em São Paulo, atualmente, nem chuva está caindo.

Não tirarei férias neste fim de ano. Portanto o nosso próximo encontro ocorrerá somente na primeira semana de Janeiro/2013 em minha primeira crônica de mencionado ano.
Um forte abraço!

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

sábado, 1 de dezembro de 2012

CENAS BREJEIRAS 4 - CLEONICE



CENAS BREJEIRAS 4 – CLEONICE

*Enoque Alves Rodrigues

Ela nasceu no Catuni num tempo em que o ouro branco, algodão e alho imperavam. Ainda criança veio com os pais para o centro do Brejo das Almas, Francisco Sá. Residiam, ela, a mãe, o pai e dois irmãos menores à Rua Lauro Oliveira, próximo ao Grupo Donato dos Santos. Foi matriculada no Mariquinha Silveira onde desde então passou a estudar com todo afinco. Parente distante de dona Daza, senhora influente e bem situada na sociedade Brejalmina de então, não demorou muito para que a pequena Cleonice Rodrigues Pereira, a Cléo, ainda no curso primário, despontasse para a intelectualidade, em cujo campo, surpreendentemente, trafegava com grande desenvoltura que impressionava os mais sábios brejeiros daqueles tempos. Ela discorria com total naturalidade sobre os mais variados temas.

Além de dota-la de singular inteligência, a mãe natureza também fora pródiga com Cléo no item formosura. Á maneira que ela crescia, seus dotes femininos acentuavam-se. Adolescente ainda, ela se transformou numa deusa de rara beleza. Em todas as paradas de sete de Setembro, a segurar a flâmula do Mariquinha, durante muitos anos, lá estava Cléo sempre bonita, alegre e vibrante. Mancebo algum se achava à altura da beleza e inteligência daquela beldade. Por isso ninguém se atrevia a dirigir-lhe qualquer gracejo por mais simples e despretensioso que fosse. A beleza dela ao invés de atrair, afugentava. Rapazes de famílias ricas e tradicionais de Francisco Sá se acanhavam. Bem que eles queriam se aproximar. No quesito beleza exterior até que eles se achavam arrumadinhos e não deixavam tanto a desejar, mesmo muito aquém da beleza de Cléo. Mas o problema mesmo estava no conteúdo. Na “beleza das ideias”. Ai sim, eles tremiam nas bases qual varas-verdes. Pulavam miúdos e recuavam de todo e qualquer intento. Cléo era mesmo poderosa e eles, coitados, “não tinham garrafas vazias para quebrar”. Eram quase bonitos, mas xucros. Não tinham chances. Será?

Casa Viena, assim como Casa Branca e Costa Negro, liderou o comércio de Francisco Sá durante décadas.  Ali Cleonice empregou-se na condição de balconista. A notícia correu célere qual rastilho de pólvora. Brejeiros que faziam compras na Viena difundiam a boa nova numa frenética propaganda boca-a-boca, a outros brejeiros de várias localidades, cujos comentários não se referiam a chegada de novidades da Capital, nem a preços e qualidades dos produtos que, diga-se de passagem, eram bons e imbatíveis. O que eles propagandeavam eram as curvas sinuosas da balconista que os atendera. Eles não falavam da inteligência porque no afã de observarem a beleza externa, sequer se atinham a esse tópico, para eles, desprezível.

Em pouco tempo, as vendas que já não eram poucas triplicaram. Brejeiros vinham de todas as partes. Eles chegavam e ao invés de fazerem seus pedidos paravam diante de Cléo e permaneciam estáticos por alguns minutos. Indagados por ela “o que desejam?”, mineiramente, titubeavam, respondendo-a:
-Não sei... Parece que eu vim aqui comprar alguma coisa da qual não me lembro! Depois, disfarçadamente, pediam um produto qualquer e saiam.

Numa manhã quente outonal, a cidadezinha de Brejo das Almas, terra dos meus encantos, amanheceu triste. Não demorou muito para que os falatórios começassem a tomar conta do lugar. A bela da Casa Viena sumira. Muitos acorreram à Rua Lauro Oliveira. Os portões de madeira rústica do velho casarão onde ela morava, jaziam silentes e adormecidos. Os laranjais que outrora, ali existiam cujo perfume das floradas insistia em competir-se, inutilmente, com o perfume natural da diva, apesar do vento que varria as ruas, não tremulavam mais. As maritacas comumente barulhentas em suas algazarras agora mal se entreolhavam. Pintassilgos, sabiás, pássaros-pretos e beija-flores estavam entristecidos. A velha paineira, testemunha ocular e privilegiada daquela beleza agora rangia, chorosa. Pudera a fada, cuja presença radiante lhes alumiava os desejos de seguirem em frente, não mais se encontrava. 

Rua doutor Santos, em frente ao número 127, em Montes Claros. Naquela época neste número ficava uma pequena loja que depois se fez grande. Parece-me que a mesma se denominava Geraldino Boutique. Não tenho certeza, sou brejeiro e apesar de o Brejo das Almas se encontrarem a apenas dez léguas de distância de Montes Claros, posso dizer que pouco ou quase nada conheço da bela MOC.

Eu descia mencionada rua. Por alguns instantes pensei estar sonhando. Não poderia ser verdade. Não era Cleonice... 

Era Cleonice, sim. Mais bonita impossível. Mais simples bem isso eu não poderia saber. Mesmo menino, eu também fazia parte do rol dos que tinham medo de se aproximarem dela. Não por eu ser feio, pois conforme meu pai me dizia, “eu era muito bonito devido parecer com ele”. Mas eu não estava certo se a minha inteligência a alcançaria. Eu também não era nenhum “garoto papo firme e que eu saiba, o Roberto, jamais falou de mim”. Foi assim que ao avista-la do outro lado, timidamente parei. Atravessei a rua e estendendo lhe a mão em cumprimento, cheio de simpatia, tagarelei:

-Olá, Cléo, como vai? Tudo bem? Você sumiu do Brejo! O que fazes em Montes Claros? Todos nós sentimos sua falta. Você está morando por aqui? E seus pais, como estão?

Ao contrário do que eu imaginava em minha pobre ignorância que envergonharia a mais infeliz e reles das criaturas, aquele divino ser, simplesmente, retribuiu-me o aperto de mão e após abrir-me um largo sorriso, calma e educadamente, como se fossemos velhos amigos, passou a responder o meu sofrível questionário. Falou-me que estava muito bem. Que havia saído do Brejo temporariamente apenas para acompanhar os pais que estavam em Montes Claros a trabalho. Que ela estava fazendo curso de especialização. Que também sentia muitas saudades do Brejo e de sua gente. Que voltaria em definitivo no próximo ano, etc.

Enquanto ela falava, eu pensava: Meu Deus, como Cléo era simples! Mesmo farta em tudo, era de uma singeleza sem tamanho. Quão precipitados fomos por não termos nos aproximado dela antes!  Por quais razões havíamos nos subestimado tanto ao ponto de nos privarmos do convívio de uma pessoa tão sábia e iluminada? Quantas vezes deixamos de avançar alguns degraus na escada dolorosa da vida e do saber apenas por imaginarmos que os nossos sentimentos não seriam correspondidos?
Enquanto conflitava com o meu eu, Cléo, como se estivesse lendo os meus previsíveis pensamentos, se despedia, com esta afirmativa.

-Foi muito bom falar com você. Aliás, pensando bem, a gente jamais se falou. Eu tinha vontade de conversar com você, mas sou muito tímida e aguardava iniciativa sua nesse sentido. Também não entendo porque os jovens do Brejo me evitam tanto. Eles praticamente me isolam.

Diabos, isso já era covardia. Eu não estava ouvindo aquilo!

Informada de que, assim como ela, todos nós éramos igualmente tímidos e o pior, que sua beleza e inteligência nos assustavam, sorriu e acrescentou:

Assim fica difícil. Vocês não se aproximam por acharem que sou mais bonita e inteligente que vocês e eu, de minha parte, não me aproximava por pensar que vocês fosse um bando de metidos. Desse jeito viveríamos cem anos no Brejo sem nos falarmos e depois, morreríamos todos com a certeza plena de que as nossas piores e mutuas impressões eram verdadeiras. Como? Se jamais nos falamos!

É...

Por vezes, diziam os antigos, se você quer conhecer e se fazer conhecido, então, fala Mané.

E tenho dito!

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

Aos meus leitores:

Á partir de outubro/12 postarei somente uma crônica por mês. Entre as inúmeras atividades difíceis de conciliar, também estou colaborando ativamente com uma revista de grande circulação nacional e internacional voltada à divulgação do espiritismo.

Abraços.

Enoque.

sábado, 10 de novembro de 2012

CENAS BREJEIRAS 3 - DONA LURDES



CENAS BREJEIRAS 3 – DONA LURDES

*Enoque Alves Rodrigues

Aquela década transcorria celeremente. Estranho, por aquelas bandas, naqueles tempos, se utilizar de qualquer palavra relacionada à pressa ou agitação. Mas em meu caso particular, não. Realmente o tempo que antes não passava, agora voava. Estava preocupado com o serviço militar e com a possibilidade de alçar voos mais altos. E o pior: com medo de estar vivendo um sonho de Ícaro, com asas de cera. Aproximava-se a cada dia, o temido momento em que eu teria que despedir dos familiares, do meu povo e da minha terra. O cordão umbilical tinha que ser cortado. As perspectivas, naquela ocasião, não eram favoráveis a um jovem com a cabeça cheia de sonhos a serem realizados, custe o que custasse. Desde muito cedo aprendi que do Céu só cai chuva e de quando em vez algum canivete. Nada mais. Aliás, pensando melhor, a chuva nem cai do Céu, mas de uma nuvem qualquer que na verdade se forma na terra. Quanto ao canivete. Bem, essa já é outra história. Entenda-o como “elemento decorativo” ou “licença poética”. Sendo assim, estamos entendidos que do Céu não cai nada. Por isso eu tinha que ir à luta. 

Ela vivia nos arrabaldes do Brejo das Almas, ou Francisco Sá, em companhia de seu digno esposo Eduardo, ou “Duia”. Particularmente, jamais o chamei pelo apelido. Talvez pelo fato de o “Duia” compor-se a um adjetivo que fazia alusão a cor da pele, ou quiçá à diferença etária não me facultasse tal liberdade. 

Esclarecida, inteligente, sensível e altruísta acima da média. Prendada, dedicada, cordial, amor ao próximo e devotamento religioso que a aproximava dos espíritos mais elevados, dona Lurdes ainda possuía o dom da premonição. Muitas pessoas se consultavam com ela. A todos tinha uma palavra de conforto e de coragem para seguir adiante. Dedicava-se também a expulsar quebrantos e mau-olhado ou olho gordo.

-Pois é Dona Lurdes, a Naninha está com um fastio terrível e não tá comendo nada!

-Se preocupa não, Carmem, respondia. –Dê a ela um chá de sabugueiro que é tiro e queda.

Outra, desesperada, recorria àquela alminha bondosa:

-O meu problema, Dona Lurdes, é que o meu marido Dedé sumiu faz três dias. Já o procurei por toda parte e não o encontrei. Eu acho que alguma coisa de muito ruim aconteceu com ele.

-Ih, minha filha, seu marido está muito bem demais da conta, sô. Quem não vai ficar bem vai ser você depois de saber aonde é que ele está. Dizia isso e apontava o dedinho para os rumos de uma famosa casa noturna que existia no Brejo das Almas de antigamente, cujo denominativo fazia alusão ao único satélite natural da terra. Ali, a “casta” boemia brejeira em surdina e solapa “marcava o ponto”. 

Outras vezes tinha ela o recesso sacrossanto do lar interrompido por moçoilas desesperadas por se acharem balzaquianas devido ainda não ter surgido em suas vidas o príncipe brejeiro encantado. Elas chegavam e já iam intimando Dona Lurdes, como se fosse, aquele divino ser, responsável pelos seus respectivos insucessos no amor.

-E então, dona Lurdes... Como é que eu fico? –Já passou o dia de Santo Antonio, já fiz todas as rezas, mandingas e simpatias e até agora “não caiu nenhum bem-querer nos meus braços”. O que mais eu devo fazer? A solidão está me consumindo toda. Assim não pode... Assim não dá!

Diante de situações extremas como esta aquela boa senhora, com a simplicidade que lhe era peculiar, fitava a amiguinha consulente, de alto a baixo e no final disparava:

-Você já ouviu falar em maquiagem? Batom, pó de arroz, esmalte, por exemplo... Já experimentou usar uns paninhos melhores? E este pisantinho de dedos, já pensou trocar? Você alguma vez saiu para dançar? Conhecer pessoas, ou é daquelas que ficam enfurnadas em casa!

Como naqueles tempos muitas dessas novidades não faziam parte do cotidiano de beldades brejeiras, minhas conterrâneas, recatadas por natureza, a resposta negativa era mais que previsível. Ai dona Lurdes arrematava:

-Então, você tem que acabar com essa mania de jogar tudo nas costas do santo. Ele tem outros afazeres. O santo só ajuda quem se ajuda. Se você não fizer a sua parte, vai morrer seca. Você tem que ir à luta. Correr atrás. Cobra que não anda não engole sapo, menina!

Certa feita o “quem-quem” transbordou. Ao baixarem as águas, as vazantes ficaram cobertas de peixes. Informada, por quem nunca se soube, pois este rio fica distante da cidade, ao norte de Francisco Sá, e antes que alguém empreendesse a “colheita” dos curimbas que se debatiam no lodo, dona Lurdes, taxativa, foi logo adiantando: 

-Negativo. Ninguém vai comer isso. Eles estão envenenados e impróprios para o consumo humano. Vivalma alguma, diante daquele assertivo aviso se atreveu a por a mão naquelas “bocas protráteis”.

Eduardo “Duia” andava de um lado para outro. Algo de sério o preocupava. Ele não era dado a crendices. Muito inteligente preferia resolver as coisas à sua maneira, privilegiando sempre o lado material.

-Duia! –Ela assim o chamava.

-Fala Lurdes, respondeu-lhe Eduardo.

-Enquanto você não aprender a rezar direito, isso ai que você está querendo fazer não vai dar certo!

-E o que é que eu estou querendo fazer, mulher? 

-Você sabe! 

Passada uma semana, Eduardo “Duia” puxava de uma perna. A bela montaria, brava e arredia, pela qual trocara seu manso cavalinho sem que dona Lurdes soubesse, o atirara ao chão na primeira pernada.

Movido pela curiosidade, quando eu estava para sair do Brejo fui ter com ela. Naquele dia falei com ambos. Nas poucas vezes que lá estive sempre fui recebido com carinho. Ao me despedir ouvi de dona Lurdes esse comentário, dirigindo-se a Eduardo.

-Esse menino dificilmente vem aqui. Aliás, se bem me lembro, vi-o umas duas ou três vezes. Dessa vez ele veio aqui para me perguntar alguma coisa, mas se acanhou. Mais eu sei o que ele ia me perguntar.  E olhando para mim acenava e dizia:

-Vá com Deus, menino. Vai dar tudo certo na sua vida. Siga em frente. Basta você acreditar.

É o que tenho feito até hoje. E não tenho do que reclamar. Claro, depois de ter ralado muito na vida.

É...

Por vezes, ou quase sempre, assim como o navegar, acreditar também é preciso.

E tenho dito!

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

Aos meus leitores:
Á partir de outubro/12 postarei somente uma crônica por mês.
Abraços.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

CENAS BREJEIRAS 2 - ASPÁSIA



CENAS BREJEIRAS 2 – ASPÁSIA

*Enoque Alves Rodrigues

Outrora, divertia-me observando o transitar de pessoas pelas ruas do Brejo das Almas ou Francisco Sá. O principal ponto de aglomeração, para onde todos se convergiam, ainda hoje existe em forma de Alameda com seus calçadões.

As jardineiras, carroças, charretes e carros de bois que vinham de Salinas, Grão Mogol, Taiobeiras e outras cidades da região tinham como ponto final a Alameda, ou precisamente, em frente à Pensão da Dona Quinó. Durante as minhas férias escolares era para lá que eu também ia com o objetivo de apreciar aquela movimentação toda. Sentava-me na soleira da porta da Pensão da dona Quinó, uma senhora forte, de meia idade, cujas instalações ficavam em um antigo casarão. Dali, daquele “point”, nada, absolutamente nada, me escapava às vistas. 

Foi assim, quase do nada, que numa manhã de sol de rachar mamona, sem querer, observei que do outro lado da Alameda acabava de “apear”, era assim que falávamos na época, de uma empoeirada Jardineira, uma jovem muito bem vestida. Trazia numa das mãos uma mala de fibra enquanto com a outra, agarrava-se a uma frasqueira de couro cru. Entre os dedos tinha um diminuto pedaço de papel. Após atravessar o pequeno trajeto parou á minha frente, indagando-me:

-Menino, você sabe onde é que fica a Pensão da Dona Quinó?

-Sei, sim, dona. É aqui! Respondi, levantando-me da soleira a fim de facilitar-lhe a passagem.

-Uai, disse-me surpresa, quanta coincidência! Como é que eu vim perguntar exatamente no endereço onde vou ficar?

-Fácil, dona, respondi-lhe, como o ponto final das Jardineiras é aqui, seria mais difícil não encontrar.
Olhou-me, fixamente, e, esboçando um sorriso, depois de pensar um pouco, apresentou-se.

-Meu nome é Aspásia. Sou Normalista e venho de Taiobeiras para participar de um estágio no Eliseu. Eu vou me hospedar aqui na Pensão da dona Quinó. Você trabalha aqui? Você conhece o Eliseu? Você é do Brejo?

Meu Deus, quantas perguntas eu tinha que responder. Bem, do alto da timidez que sempre me foi peculiar, principalmente no trato com estranhos, passei a responder.

-Não. Eu não trabalho aqui. Venho nesse local para ver a chegada das Jardineiras. Conheço o Eliseu Laborne. Ele fica na Mariquinha Silveira. Sim, sou Brejeiro.

Daquele dia em diante Aspásia passou a fazer parte integrante da vida brejeira. Aliás, como se revelaria posteriormente, se adaptou a tal ponto que parecia ter nascido no Brejo. Concluiu o estágio em trinta dias, fim dos quais escreveu à família informando sua desistência do magistério e que optaria por algo ligado à saúde, que ficaria em definitivo no Brejo, etc.

Tempos depois podia ser vista dando expediente no São Dimas. Continuava, no entanto, hospedada na Pensão da dona Quinó. 

Alegre, sorriso fácil, brincalhona e responsável. Exercia, com dedicação e zelo, o novo e digno oficio que agora abraçava. Ela se destacava em tudo. Como simples auxiliar de enfermagem prestou vestibular no qual foi aprovada para Medicina. Agora o Brejo encolhera para ela. Era demasiado pequeno para lhe proporcionar tão grandes sonhos. Sonhos estes que naqueles tempos nem mesmo a bela MOC seria capaz de realizar. Ela queria muito mais. Tinha que ganhar o mundo.

Em prantos convulsivos, abraçada a dona Quinó, vemos agora, aquele divino ser, com um dos pezinhos delicados apoiado sobre a soleira, se debulhando em lágrimas e palavras de gratidão, àquela benfeitora que apesar do pouco tempo de convívio, dizia considerar como se fosse sua mãe. Iria estudar Medicina na Capital das Alterosas.

-Adeus, dona Quinó, muito obrigado por tudo! 

-Adeus, Aspásia, vê se aparece um dia por aqui, menina! Respondeu-lhe, dona Quinó.

Em instantes surgia a Jardineira que a levaria até Montes Claros de onde tomaria o trem de ferro com destino a Belo Horizonte. Lembro-me que havia uma fila tão grande de Jardineiras que a obrigou a embarcar alguns metros antes do ponto, exatamente em frente onde hoje é a “Moda Brasil”.

Quis o destino, assim como o fez em sua chegada, que também em sua saída, marcas indeléveis fossem gravadas em nossos recônditos. Pois, ao passar por mim, pequeno pirralho, sem mais nem menos, assim pensávamos, depois de acalantar-me, com respeitoso abraço, disse-me: “Para você, menino, eu digo um até breve. É certo que nos veremos bem antes do que imaginamos”. 

Naquele momento não me ative aos significados daquelas palavras. Teriam algum sentido? 

Será?

Treze anos depois era chegada a hora do “sapinho” aqui ganhar o Mundo. O Brejo, quem diria, também ficou pequeno para mim. 

Usina hidrelétrica de Volta Grande. Divisa de Minas com São Paulo. Era aquele o maior empreendimento da Construtora Mendes Junior naquele ano. No dia 31 de Maio a Mendes recrutaria mais 200 peões de obra. Eu era um deles. Depois de termos passado uma semana aguardando a vez de fazermos os testes admissionais, eis que somos encaminhados para os exames médicos. Por se tratar de muita gente, o Setor de Recursos Humanos optou por dividir aquela multidão em vários grupos. Como era impossível examinar a todos ali, mandaram dois grupos de dez pessoas para Uberaba, no Triangulo Mineiro. Em um deles estava eu. 

Quando o caminhão da Mendes estacionou defronte ao número 342 da Rua São Benedito onde faríamos os exames, demorei a aceitar o que os meus olhos castanhos insistiam em me dizer. Por alguns instantes cheguei a pensar tratar-se de uma visão. Mas não era: o pomposo nome que aquela bem elaborada placa ostentava não me deixava dúvida alguma. Ali estava escrito:

“Doutora Aspásia Modesto de Medeiros Fonseca – Clínica Geral e Cirúrgica”.

Era ela, com o sorrisão aberto e espontâneo de sempre, que fazia tremer os deuses, e com a mesma simplicidade dos velhos tempos brejeiros.

Maktub!

Aliás, em Uberaba, vários outros fenômenos se revelariam para mim que não cabem aqui comentar.

É...

Por vezes, ou quase sempre, é na singeleza das entrelinhas que se encontram as mais importantes revelações.

E tenho dito!

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

CENAS BREJEIRAS 1 – GERMANA


CENAS BREJEIRAS 1 – GERMANA

*Enoque Alves Rodrigues

Pernas curtas e arqueadas. Andar lento e trôpego. Olhar disperso como se nenhum interesse demonstrasse a sua volta. Sol quente e escaldante não obstante estar ela, como sempre, munida de seu inseparável guarda-chuva. Andava, assim, displicente, pelas calçadas da Praça Rogério da Costa Negro, em Francisco Sá, Brejo das Almas.

-Germana!

-Oi, pode falar!

-Lembra-se de mim?

-Não, respondeu-me, secamente. – como poderia eu me lembrar de você se jamais te vi? 

-Uai, sô, como não? Sou o Noquinho, neto do “seu Liberato”, aquele velhinho de barbas brancas que se parece a um papai Noel. Você não se lembra de meu avô? 

-Não. Não me lembro. Porque haveria de me lembrar?

Aquele diálogo se parecia mais a uma conversa de bêbados. Germana, não sei por quais razões insistia em não querer se lembrar de nada. Teria, por acaso caído e batido com a cabeça? Estaria, porventura, acometida de alguma súbita amnésia? Bebeu? Sei lá!

Bem, cabia a mim, já que fui eu quem começou a conversa, procurar as melhores formas de fazê-la recordar dos meus tempos de menino, quando ela, já beirando os cinquenta, frequentava a fazenda Terra Branca, de meu avô, próximo de Cana Brava e Vaca Morta. Assim sendo, com a finalidade de tornar-me mais visível, por imaginar que talvez tivesse com algum problema de visão próprio da idade, acerquei-me um pouco mais dela. Olhei-a nos olhos, já meio turvos pelos muitos janeiros e, insistentemente, voltei a me apresentar:

-E então, Germana. Sou o neto do senhor Liberato e dona Justina a quem você visitava na época das moagens de cana no mês de Julho. Você se lembra da tia Cota?

-Cota, o que? De que diabos você está falando, homem? 

Caramba. Que coisa chata. Aquela alminha que me fora tão importante em infância, quando ela me embalava com suas lindas e antigas histórias de um Brejo das Almas envolto em épocas perdidas séculos afora, agora estava ali, diante de mim, com sua mente relutante em reconhecer-me. Bem, sendo assim não tomaria mais o seu tempo.

Despedi-me com brejeiras reverências naturais que dispensamos aqueles que tiveram o privilégio de avançarem na idade longeva. Quando eu ia me afastando lembrei-me de um velho apelido de infância. A maneira que caminhava olhava para trás. Como Germana continuava parada, no mesmo lugar, me observando, pensei: porque não voltar e me apresentar melhor? Porque não me dar uma segunda chance? E se ela me desse um esculacho? Sim, porque antigamente ela era boazinha, tranquila, mas de vez em quando embravecia. Depois quem me garantiria que ela não mudou de temperamento depois de tanto tempo?

Voltar ou não voltar? Retornar ou seguir em frente?

Retornei!

Germana continuava estática me olhando. Ao ver que eu volvia em sua direção, fitou-me mais atentamente.

Não lhe dei nenhuma outra chance. Ela tinha que se lembrar de mim. Não se surpreendam: chato é assim mesmo. Quando encasqueta com uma coisa não há nada que o faça recuar. Acerquei-me muito dela ao ponto de lhe sentir o calor da respiração. Levemente lhe afaguei o rosto com uma mão em cada lado. Suavemente puxei de sua cabeça que se aproximou ainda mais de meu rosto. Agora eu tinha que finalizar o trabalho. Era agora ou nunca. Como em meu dicionário não existe a palavra “nunca”, então, era agora.

-Germana!

-Eu! Outra vez você? Mais o que é que você quer de mim, homem de Deus?

-Diabos, Germana. Como pode você não se recordar de mim? Você foi tão importante em minha vida. A minha avó a tinha como sua irmã. Deixava-me com você que cantava para eu dormir, balançando a rede que ficava pendurada entre aqueles dois pés de frutos do conde, lembra-se?

-Não!

Tencionava não utilizar a última cartada. Não mencionaria o apelido de infância. Não queimaria o último cartucho. Mas, brejeiros, acreditem, não teve jeito. 

Como Germana permanecia indiferente a minha “insignificante figura” e por não estar nem ai para o Bonifácio, tive que apelar.

Esbugalhei os olhos, enchi e murchei as bochechas, repetidamente, assim como faz aquele vertebrado da classe dos anfíbios que habitam os brejos. Fixei mais o meu olhar ao dela e me esforçando o máximo para parecer-me, cada vez mais com o danadinho, emiti o coaxar característico do mesmo, seguido da fulminante e infalível apresentação.

-Germana, sua diaba. Eu sou o “sapo”!

Nem bem fechei a boca e já pude escutar sua estridente e gostosa gargalhada.

-Sapo?

-Eu já sabia tolinho. Só estava fingindo para força-lo a falar o seu apelido com o qual nós nos divertíamos muito quando você era menino. Por alguns instantes cheguei a pensar que devido você ter “virado engenheiro” lá em Sun Paulo, que você não fosse se lembrar de seu apelido que ainda é para nós, seu segundo nome. Aliás, para mim é o seu primeiro nome, por que “eu nem sabia que seu nome era Noquinho”.

Corrigida, de que “Noquinho” não era o meu nome, mas o diminutivo de Enoque, meu nome verdadeiro, reagiu, sarcasticamente.

-Piorou. Este sim que eu não conheço mesmo. Jamais escutei dizer que seu nome era “Enoque”. Quem diabos lhe colocou esse trem? É feio demais da conta, sô! Sempre lhe conheci por “sapo” e é como “sapo” que vamos sentar ali e conversar. Eu quero que você me fale como andam “seu Liberato” e a “dona Justina” seus avós.

Informada que os meus avós já não se encontravam mais conosco no plano visível, ponderou:

-É isso mesmo, “sapo”, as pessoas boas morrem tudo. E o pior é que quem devia morrer, de tão ruim que é não morre. Sabe quem também morreu? Dito isto me passou um longo relato dos que haviam partido do Brejo. Dava os nomes, datas, doença ou motivos da morte com uma facilidade e precisão tão impressionantes como se referisse a uma trivialidade qualquer de momento.

E eu que cheguei a pensar que Germana estivesse meio lelé da cuca!

Após uma hora de prosa, despedimo-nos.

-Fique com Deus, Germana! – Disse-lhe eu.

-Vá com Deus, “sapo”. Que Jesus te acompanhe menino, respondeu-me.

-Amém!

  É...

Por vezes, que importância tem nosso nome de batismo aos que nos embalaram os sonhos? 

E tenho dito!

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.