Enoque Alves Rodrigues
Não. Definitivamente as coisas não andavam bem para o lado dele. Nada, absolutamente nada daquilo que tentava lhe saia bem. Se ele plantava, não chovia. Se não chovia, não vingava. Se não vingava, não colhia. Se não colhia, não comia. Se não comia, certamente que morreria. Aparentemente não haveria para ele uma honrosa e digna saída. Naquela pobre e oca cabeça de cabaça brejeira, restava apenas e tão somente, como liquido e certo, o final melancólico de um agonizante moribundo. Desculpem-me pela redundância, mas foi, deveras, necessário para deixar claro e patente o superlativo de desencontros e desatinos pelo qual passava aquela pobre e, para ele, insignificante vida.
Realmente, os “mares de Minas não estavam mesmo para peixes.” Bem, se os “mares de Minas” não estavam para peixes, os brejos de todas as almas bondosas, de minha querida e bem amada Francisco Sá, não estavam nem para sapos. Várias foram as vezes em que este genérico de escriba se referiu aqui neste mesmo espaço, sobre as muitas crises que se abatiam sobre o norte do estado de Minas Gerais, mais precisamente em Francisco Sá ou Brejo das Almas, terra que me serviu de entranha, onde permaneci até os 18 anos.
Parece fácil dissertar sobre crises ou dificuldades, preferencialmente depois de superadas. Vive-las, no entanto, não é nada fácil. Aliás, há que se ter muita esperança, força de vontade, determinação e paciência, para poder atravessar quaisquer crises com otimismo e dignidade incólumes e imaculados. Quando, então, elas afetam diretamente o estômago ai a coisa torna-se mais difícil. É mais ou menos como dizia o senhor Madruga do seriado “Chaves: “Quando a fome aperta, a vergonha afrouxa.” Recordo-me, de algumas delas, onde, ainda tenro, tive que interromper os estudos primários para me embrenhar nas fazendas em busca de trabalho, enquanto a deusa de nossa casa, a santa de cabelos brancos por quem tive a graça de ser concebido, orgulho maior de meu existir, que hoje, queira o Divino Mestre, por muitíssimo tempo ainda, vive em Burarama, se desdobrava dia e noite, na bela e gloriosa arte do ensinar. Já o meu pai, que Deus o tenha no santo lugar que lhe é merecido por direito, labutava com uma vendinha de secos & molhados. Quando não conseguia tirar mais nada dali, corria de picareta em punhos, a prestar trabalho duro na Estrada de Ferro para suprir as carências da casa. Tempos duros, mas saudosos aqueles. Entendo, ainda hoje, que as dificuldades são as únicas maneiras de se fazer com que as pessoas provem quem realmente elas são e que fora do trabalho não há realização.
Quem não se lembra, por exemplo, dos tempos da “caça” as gabirobas? O que são gabirobas? Pois é, tratava-se de um pequenino fruto de coloração verde e amarelo que mais se parecia a uma pequena goiaba e que, surgiu ou foi, inesperadamente, descoberta, no serrado Mineiro em plena crise. Famílias inteiras embrenhavam-se nas matas ralas em busca daquela verdadeira dádiva da Natureza. Quantas boquinhas nervosas aquela abençoada frutinha acalmou. Voltemos ao Valdo.
Valdomiro Ferreira dos Santos. Era este o pomposo nome pelo qual respondia. Caboclo, brejeiro, queimado pelo sol escaldante do Sertão de Cana Brava, era casado com Sebastiana, com quem tinha quatro filhos.
Morava no centro do Brejo, próximo ao velho Mercado, ou precisamente na Rua Padre Augusto. Quando não estava trabalhando em suas “improdutivas” roças, era facilmente encontrado dando banhos em minhocas no rio São Domingos. Muitas vezes, quando a aflição mais lhe atormentava, punha-se a sonhar com o rico tesouro do Bandeirante Jerônimo Xavier de Souza, que segundo antiga lenda, se achava enterrado há séculos no morro do mocó, sob uma grande pedra onde ficava a fazenda de Antonio Miranda. Pronto: “cabeça vazia, oficina do diabo.” Falamos, nós, os antigos, ou melhor, os gastos. Pois é. Não demorou muito e Valdo que não tinha mais no que pensar, julgando-se desprovido de qualquer alternativa que o levasse a sair daquela pindaíba com luta e denodo, passou, destarte, a divagar sobre futilidades.
Numa dessas divagações, deitou-se e não conseguiu conciliar o sono. É próprio do espírito não repousar enquanto não encontrar a paz necessária para fazê-lo. Cochilou, o cachimbo não caiu. Pelo menos não fumava. Mas foi o suficiente para em sua visão ver-se frente a frente com o Sargento Mor, ou o Bandeirante Jerônimo Xavier de Souza. Cobria-lhe o lombo vestimenta característica dos que provem de “Além mar”, “da costa”, ou, como queiram “de Portugal”. Valdo, surpreso com aquela inesperada aparição, não teve sequer forças para abrir os olhos. Falar ou balbuciar alguma coisa, então, nem pensar. Mas o “bondoso” Bandeirante, na condição de espírito, lia-lhe os pensamentos e assim poupou-lhe de maiores sacrifícios. Determinado e assertivo como qualquer bom Europeu foi direto ao ponto:
- Meu caro Valdo, há tempos que venho lhe observando. Não consigo mais descansar de tão aturdido que vivo com os seus queixumes e atribulações. Traz-me aqui a vontade imensa de lhe ajudar. Por favor, meu amigo, pense ai, em três desejos e fixe-se em um, e, se possível me fale, que eu o realizarei, imediatamente. Não quero vê-lo sofrendo desse jeito.
Bem, qualquer brejeiro normal, habituado com a dureza da vida, amante incondicional do velho batente, ou como falamos aqui em São Paulo nos canteiros de obras, “do trampo”, cônscio de que sem árdua luta não há vitória, pediria chuva para que continuasse no trabalho sagrado de plantar e colher para se alimentar. Mais Valdo. Bem... Valdo, não. Ele queria muito mais. Ele não queria trabalhar. Ele não perderia de forma alguma aquela única chance de ficar rico sem fazer força. Assim sendo, num sacrifício dos diabos, movido pela usura, buscou lá no fundo do recôndito, forças até então, inimagináveis com as quais balbuciou seu mesquinho desejo:
- “Uai, Coroné. Os meu desejos o sinhô bem o sabe. Eu queria que mecê me dissesse adonde o sinhô enterrô o seu tisoro. Se pussive qui o sinhô me trouxesse ele aqui apusquê eu tenho medo de artura e principarmente qui a preda adonde ele está escondido se role sobre mim. Num é mesmo lá no morro do mocó qui ele está enterrado?” Antes mesmo que Valdo fechasse a boca, já se ouvia o fantasma do Bandeirante Jerônimo esbravejando num dialeto Lusitano de quem veio da Ilha da Madeira, nos tempos das Caravelas:
- “Ora, pois, pois. É isso que vucê me pedes, seu curalho? Eu psei que vucê fosse me pedirr chuva para cuntinuarr laburando em suas roças e com o suor de seu rousto, sustentar sua fumília e vucê me vens pedirr ouro? Vá trabalhar vagabuundo... Vucê acha que eu sai daquele curalho de inferrno para vir aqui lhe dar muleza? Nós somos de uma raça trabalhadora, curalho e não aceitamos nada fácil. Eu quueria lhe ofrecer trabalho, curalho. Mas vucê só queres bua vida. Se queres muleza, seu gajo do curalho, filho de uma mãe feia, vais sentarse no pudim, ou empurrar bêbado das escadas, curalho. Ora, pois, pois.” Dito isto, virou fumaça. Pó de traque. Evaporou-se.
Boca porca a do Portuga. Mas foi a forma ideal que aquela boa alma encontrou para chacoalhar Valdomiro e tira-lo do marasmo da ociosidade. Da preguiça. Da inércia.
É...
Por vezes, dizia Confúcio, imprescindível se faz jamais negligenciarmos com os nossos pensamentos. Eles são o espelho de nós.
E tenho dito!
Enoque Alves Rodrigues, brejeiro de nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia, é Escritor com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.
As referências Lusitanas atribuídas aqui ao Sargento Mor Jerônimo Xavier de Souza, correspondem apenas e tão somente a sua vestimenta espiritual com a qual se apresentava e a sua descendência ancestral. Jerônimo Xavier de Souza, parente de Joaquim José, o Tiradentes, nascera em Vila Rica ou Ouro Preto, MG.
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