ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – WENCESLAU, O MANDINGUEIRO II
Enoque Alves Rodrigues
Difícil, para não dizer impossível, contar a história de Wenceslau Bispo dos Santos, “O azar” em um só capítulo. Ainda bem que preveni vocês quanto a merecida continuidade, pois seria uma pena resumi-la em uma só parte. Acredito que o pouco que contei em crônica anterior não faria justiça ao muito que significou aquela límpida alma para aquelas setenta e quatro crianças carentes, que foram resgatadas das ruas do Brejo, pelo Padre Augusto Prudêncio da Silva, em situação de miserabilidade extrema.
Apenas para lembrar, “Azar” surgiu naquele pequeno Orfanato que ficava na antiga Rua do Padre ou Rua da Amargura esta última denominação atribuída à tristeza e melancolia da qual era a mesma acometida durante a semana santa, como que por encanto. Jamais se soube ao certo quem foi que o enviou. Aliás, esta era uma preocupação do Padre Augusto, que, no entanto, só perdurou até ele conseguir ler e decifrar, inteiramente, tudo que se passava na cachola de Wenceslau. Finalizados os seus estudos, analises e conclusões, resultaram indiscutivelmente positivas as boas intenções e ações de “Azar”. Foi a partir daquele voto de confiança do Padre, o qual “Azar” jamais burlou que ele foi investido nas funções de colaborador direto do Padre Augusto, dedicando-se, de corpo e alma a cuidar daqueles menores necessitados. Se algo nos surge no caminho para nos fustigar, certo está que removeremos Céus e Terra no sentido de detectarmos o mais rapidamente possível a origem do mal que nos aflige para eliminarmos antes que nos elimine. Já com relação às dádivas ou acontecimentos positivos que de quando em vez nos brotam no caminho, não temos as mesmas preocupações. Elas vêm e vão sem que nós sequer nos demos ao trabalho de dar uma espiadela no que tange ao seu nascedouro e quais foram os percursos que elas tiveram que percorrer para chegarem até nós. Somos falhos, sim senhor, mas devo dizer que esse procedimento é natural a todos nós humanos. Portanto não chega a ser um erro ou desvio de conduta. Talvez a explicação se prenda ao fato de nos subestimarmos, julgando-nos, em função de nossos débitos contraídos com o pretérito, não merecedores de qualquer dádiva. Bestagens. Ninguém recebe do Alto ou de quem quer que seja nada além do que realmente merece. Ou, então, o pior, por nos acharmos excessivamente merecedores acabamos por não darmos a atenção devida a estas dádivas. “os Céus não fizeram mais que sua obrigação!”
Mas o Padre Augusto, como já disse em várias oportunidades, era incomensuravelmente espiritualizado. Se à época estivesse em voga a termologia “católico espirita” o Padre Augusto a ela se enquadraria sem delongas. Ele sabia de tudo. Por isso não tinha porque investigar. Ele possuía o dom da clarividência. Voltemos ao Wenceslau, o “Azar”.
Ao compulsar os anais da história de Brejo das Almas, hoje Francisco Sá, minha “beldade do norte de Minas,” (Nossa, há quanto tempo não a chamo assim), você irá constatar inúmeras invasões da pequena Cidade por tropas de bandoleiros que se intitulavam legalistas que agiam em nome do Governo, sob cuja égide praticavam as piores atrocidades. Eram violentadores, ladrões e arruaceiros mal cheirosos que a ninguém respeitava. Aonde eles chegavam o pânico estava instalado. Invadiam as roças, criações de gados, porcos e galinhas. Entravam em casas residenciais e comerciais, levavam tudo o que queriam e ninguém podia dizer nada. Só de vê-los de longe já dava medo.
A mais temida “coluna” de bandoleiros que adentrou Brejo das Almas teve como chefe Rotilio de Souza Manduca que se autodenominava Coronel e “Patriota Supremo.” Isso aconteceu precisamente no dia 18 de Fevereiro de 1926. Aquele sujeito juntamente com sua tropa, formada por mil tranqueiras da pior espécie, permaneceram na Cidade por exatos 52 dias. Semearam o terror. Quando finalmente levantaram acampamento, rastros de destruição eram evidentes por se assemelharem às devastações vulcânicas. Mas antes de irem embora tiveram que passar pelo constrangimento de serem “peitados” pelo negro “Azar” que os humilhou publicamente. “Azar” era um tipo de “guardião” do Padre Augusto, apesar deste jamais necessitar disso, pois o Padre também não era de mandar recados e sabia “se virar sozinho.”
Ao lado da casa do Padre havia um grande mangueiro onde ele mantinha seus animais de montaria pastando, além de algumas vaquinhas que abasteciam com o leite, o bucho de seus pequenos internos e uns porquinhos de engorda para a extração de banha, carne e torresmos, porque ninguém é de ferro. Manduca, já no final de sua “estada” no Brejo, não tendo mais a quem acharcar, cismou de mexer com as coisas do Padre. Primeiro mandou que um de seus homens amarrasse um cavalo no cruzeiro que ficava em frente à Igreja. O Padre que naquele momento rezava missa interrompeu a homilia e, aos berros ordenou que o capanga tirasse imediatamente o cavalo do cruzeiro. Este retrucou dizendo que só recebia ordens de seu superior Manduca. O Padre que tinha uma força “estranha” no olhar observou-o com “ternura.” Alguns segundos depois o pobre jagunço começou a tremer e a se borrar. Rabo entre as pernas desatou o nó do cabresto no cruzeiro e deu no pé com sua animália. Chegando ao acampamento que ficava em frente ao mercado velho, inteirou Manduca do ocorrido. Este, de propósito foi pessoalmente até o mangueiro do Padre e, lá chegando, juntou duas vaquinhas, quatro leitões e a mula de estimação do Padre. Quando já estava de saída com os produtos do roubo, antes de ganhar a porteira, deu de cara com o negro Wenceslau, o “Azar.”
- Deixe estes animais ai, disse-lhe “Azar”, porque eles não lhe pertencem. Eles são propriedade do Padre e ninguém vai levar na mão grande.
- Sou Coronel, respondeu-lhe, Manduca, trabalho para o Governo em beneficio do Cidadão. Tudo que estiver a minha frente eu posso utilizar. Eu vou levar, sim, e não será um negro como você que me irá impedir!
- Bem, retrucou Wenceslau, você pode ser Coronel lá pra suas negras. Aqui neste solo sagrado você não passa de um pé rapado. Vá embora enquanto há tempo.
- Quem você pensa ser, disse-lhe Manduca, para me falar desse jeito?
- Vá simbora, voltou a dizer “Azar”, que é o melhor que você tem a fazer!
- Você não vai? Bem, eu lhe avisei.
- Mas você me avisou do que seu negro safaaa...
Não conseguiu finalizar a frase. Um quase inaudível assovio de “Azar” foi mais que suficiente para que nuvens de maribondos ávidos por picarem sangue ruim, caíssem sobre Manduca, que quanto mais tentava se proteger mais era atacado. Não lhe restou alternativa senão implorar ao bom “Azar” para que fizesse que os maribondos parassem de ferra-lo. “Azar” após obter de Manduca a palavra de que jamais voltaria a incomoda-los ordenou, com outro assovio, que os maribondos o deixassem. Humilhado, mas covarde, Manduca retirou-se ameaçando retornar para finalizar seu intento em outra oportunidade.
“Azar” ouviu-o atentamente e no final foi claro: “Não haverá outra oportunidade seu bandoleiro besta. Você não entendeu o que eu lhe disse que isso aqui é solo sagrado por ser terra do Padre? Seus pés sujos não podem pisar mais aqui.”
Dois dias depois Manduca, em companhia de trinta de seus melhores jagunços, retornou ao mangueiro do Padre em calada sorrateira. Vinham pisando em algodão para não levantarem suspeitas. Pretendiam levar todos os animais do Padre. Já estava acessa uma grande fogueira no acampamento para assarem os porquinhos. Não tiveram tempo. Outra vergonhosa derrota agora os esperava. Entraram todos no mangueiro. De onde surgiu tanto lamaçal jamais se soube. O que se via e até soava engraçado, era aquele bando de marmanjos tentando se equilibrar sobre as pernas, que se achavam enterradas no barro até a altura dos joelhos.
Sobre a porteira, confundindo-se com um preto mourão, Wenceslau ou “Azar” observava. E à maneira que a turba tentava sair do barro mais se afundava. Quando isso acontecia, “Azar” soltava grandes gargalhadas a guisa de gozação. O negro era perverso quando queria. Não contente em somente ele apreciar aquela cena deprimente para quem, como Manduca, se dizia autoridade, foi até o Largo da Matriz onde convidou os presentes a irem assistir aquele dantesco espetáculo. Todos viram. Mas ninguém acreditou. Aquilo não era possível. Amedrontados tentaram segurar o riso. Mais “Azar” foi implacável: “Suas pulgas, não trouxe vocês aqui para chorar, mas para sorrir. A menos que estejam com pena deles.” Pronto: era tudo que faltava. Sarcásticas gargalhadas foram ouvidas durante toda a madrugada. Não satisfeitos, subiram sobre a cerca e de lá, qual plateia no Coliseu Romano, dos tempos de Nero, atiçavam: “Vamos, seus bocós. Queremos ver quem de vocês vai sair primeiro desta merda!” Outros, diziam, “cuidado, não vão se misturar!”
De manhã, ao se levantar, o Padre Augusto, já velho e meio surdo, custou a entender de onde partia aquela algazarra. Levantou-se e se dirigiu até o mangueiro. Lá estavam todos, cansados e esbaforidos. Enterrados agora até a cintura. Ao avistarem o Padre foram logo dizendo: Tire-nos daqui, tire-nos daqui. Sua Reverendíssima, “piedosamente” apenas observava. Depois de algum tempo, mineiramente, lhes indagou: Por favor, meus “filhos”, quem foi que os colocou em meio a tanto barro e bosta de vaca? Como é que vocês foram parar ai? Porventura, disse-lhes o Padre, entre sorrisos, estavam vocês praticando alguma estripulia? Eu não acreditaria devido serem vocês bastante crescidinhos.
Todos, desesperadamente, responderam a uma só voz, apontando para “Azar”: Foi ele. Foi este preto dos demônios que nos colocou aqui neste inferno!
- Então, disse-lhes o Padre, se foi ele que os colocou ai, ele que os tire. Eu também, assim como um de vocês me disse outro dia, não sou empregado dele e de ninguém. Eu só trabalho para Deus!
Dito isto juntou a batina e se retirou.
Agora, por favor, amantíssimos conterrâneos, brejeiros do meu coração, povo meu, não perguntem a este quase sexagenário, cabeça branca, o que Manduca teve que prometer desta vez a Wenceslau, para que os liberasse. O que posso lhes informar é que na manhã daquele mesmo dia todo aquele “exército de sujos” era visto a caminho da Bahia. Derrotados, apontavam suas armas para o alto e disparavam. Vitoriosos, agora felizes e aliviados, os Brejeiros, lá atrás, respondiam com sonoras gargalhadas e fogos de artifícios.
É...
Por vezes, ou quase sempre, a prudência nos recomenda que não ha fracos nem fortes diante das estratégias do sobrenatural. O importante é saber achar o “ponto G” do equilíbrio.
E tenho dito!
Enoque Alves Rodrigues, que vive em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção. Atua há 40 anos na área de Engenharia. É Escritor, com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.
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