CENAS BREJEIRAS 8 – CARMINA DE
POÇÕES & HILÁRIO FERRADOR.
*Enoque Alves Rodrigues
Carmina Abadia Ferreira nasceu na
comunidade Quilombola de Poções, no distrito de Cana Brava, município de
Francisco Sá, ao norte de Minas Gerais, distante a pouco mais de trinta
quilômetros do centro de Francisco Sá ou Brejo das Almas, numa época muito
difícil onde a fome campeava solta por aquelas bandas. Sua estirpe descendia de
escravos da família Sá, pois seus pais haviam servido os pais de Francisco e
Alfredo, grandes estadistas locais, tendo o primeiro sido Ministro de Viação e
Obras Públicas além de emprestar seu nome a minha cidade.
Lá, aquele divino ser, trabalhava
duro na roça ou especificamente na antiga fazenda Poço João de Deus, no quase infrutífero
cultivo de abóbora, andu, fava, milho e feijão. Criança ainda mourejava debaixo
de sol escaldante de rachar mamonas, mediante pífia remuneração. Ela ajudava os
pais Juraci e Quitéria no sustento dos oito irmãos menores. A vida ali era foda
mesmo e o temido bicho da fome que faz o “estambo”
roncar já não assustava a mais ninguém. De tão presente no cotidiano daquelas
criaturas, já não lhes causava nenhum espanto. A fome quando é amiúde, perde o temor
do faminto que por não ver outra solução acaba por familiarizar-se com ela.
Jovem ainda contraiu núpcias com Hilário Jú, também descendente de escravos, só
que vindos da Bahia.
Naquela comunidade não havia
nenhuma diversão a não ser o trabalho e as festas anual do Senhor Bom Jesus, de
Nossa Senhora Aparecida e Nossa Senhora do Desterro que ocorriam nos meses de
Julho, Maio e Dezembro, respectivamente. A fé que remove montanhas tinha que
existir. E existia mesmo em toda a sua plenitude. Sem ela não tinha como se viver
ali. A Religião que predominava naquele meu torrão era a Católica Romana da
qual faziam parte grandes núcleos inclusive Carmina e todos os seus familiares.
Depois de enfrentarem grandes
dificuldades eis que decidiram mudar para o centro de Francisco Sá, ou Brejo
das Almas. Fundamentaram esta decisão ao fato de que os dois filhos que estavam
crescendo deveriam ter a oportunidade que eles, os pais, não tiveram, de
estudarem para que assim pudessem ser alguém na vida. Conseguiram alugar um
casebre na Rua Sete de Setembro no centro do Brejo. Matricularam os dois infantes
em escola também no centro. Enquanto Carmina cuidava das crianças e passava
roupas em casas de senhoras da sociedade brejeira, Hilário que desejava a todo
custo fugir da roça, agora se dedicava ao oficio de ferrar cavalos tornando-se
exímio especialista. Ninguém dominava melhor que Hilário esta nobre arte que ao
contrário do que muitos pensam, não é nada fácil. Ele trabalhava com os
melhores cravos e ferraduras que, segundo diziam, eram os fabricados em Salinas
de onde também vinha à cachaça que ele mantinha em um corote de carvalho com a
qual brindava sua cativa freguesia com uma “cuiada”,
pois a “mardita” era ofertada em
uma cuia a guisa de copo. Sua banca, na verdade, um caixote de madeira, ao lado
de um tronco onde amarrava os bichões, ficava defronte a antiga Viena. Isto era
sagrado. Sempre que ele finalizava a tarefa de ferrar as animálias estendia,
graciosamente, uma pequena cuia de cachaça ao cliente em forma de agradecimento.
Depois disso, com uma bucha vegetal, dava um brilho nos cascos do rinchão que saia de lá com os “pisantes” nos trinques, além de levar
uma tosada na crina. Hilário era deveras caprichoso e tinha mesmo que
progredir. Em pouco tempo sua fama correu os mais longínquos rincões de onde
fazendeiros mandavam através de seus capatazes, suas belas montarias para que
Hilário as ferrasse. Havia até ferraduras douradas que de longe reluziam. Enquanto
ambos, Hilário e a batalhadora Carmina progrediam, criavam e educavam os dois
filhos no caminho do bem.
Quando o Brejo ficou pequeno para
os meninos Carmina e Hilário não pensaram duas vezes. Mandaram-nos estudar em
Montes Claros que naquela época não tinha a pujança de hoje e, por isso, dentro
de algum tempo, também ficou pequena para os dois carinhas que, motivados até a
medula pelos pais, filhos de escravos, não pararam mais de estudar enquanto
trabalhavam. O Céu era o limite para eles. Nada os deteria. Será?
Não. Você que há muito tempo me
lê já está, assim como eu, literalmente, careca de saber, que quando eu insiro
uma interrogação no verbo conjugado “será”,
alguma surpresa está por vir. Geralmente com este verbo interrogativo eu
prenuncio o epilogo de alguma crônica. Mas desta vez você não acertou. Pela
primeira vez consegui não ser previsível.
Ano de 1980. Rua Florêncio de
Abreu em São Paulo. Aos que não conhecem esta rua informo que a mesma, naquele
tempo, era inteiramente ocupada por casas comerciais onde só se vendiam
ferramentas. Eu trabalhava numa grande Construtora aqui em SAMPA e cabia a mim
o setor de suprimentos da empresa. Foi por isso que naquele dia lá estava eu
com uma prancheta à mão a percorrer a Florêncio realizando comparativas de
preços para uma grande aquisição ferramental. Como sempre fazia, desci
mencionada rua analisando preços do lado ímpar até próximo à Rua 25 de Março.
Ao subir a Florêncio cheguei até uma loja onde a denominação grafada em sua
placa remeteu-me há um passado muitíssimo distante. Lá estava escrito “Casa de Ferramentas Ferreira &
Ferrador.”. Até ai, nada mais
natural. Tratar-se-ia seguramente de alguma das muitas coincidências que
acontecem vida afora. Nenhuma curiosidade tinha eu a despertar neste
particular. Mas eu estava ali fazendo o meu trabalho que era pesquisar preços,
por isso tinha que entrar. E entrei...
Predominantemente habitada por
brancos, em sua maioria, descendentes de Europeus, os dois senhores que a
primeira vista percebi tratar-se dos gestores daquele grande estabelecimento,
destoavam-se, e muito, destes estereótipos. Eles eram pretos. Um muito alto
enquanto o outro era de estatura mediana. Ao me verem designaram um de seus
balconistas para me atender. Enquanto eu era atendido, o senhor alto,
passou-me, singelamente, uma xícara de café muito doce e ralo. Não tinha mais
dúvidas.
- O “Ferreira & Ferrador” que
dão nome a vossa loja, porventura, são de Minas?
- Não. Não são de Minas.
Respondeu-me o senhor alto, entre sorrisos. “São do Brejo das Almas!”
- O senhor é o Hilário Ferrador, marido
da dona Carmina?
- Não. Somos seus filhos. Nossos
pais já não trabalham mais. Eles já trabalharam muito para nos sustentar. Eles
vivem conosco aqui em São Paulo para onde viemos concluir os nossos estudos.
Aqui nos formamos. Eu sou o Hilário Filho e me formei em direito enquanto que o
meu irmão, o Carmino, é Contador. Foram os nossos pais os fundadores desta
loja. O “Ferreira” é homenagem a
minha mãe enquanto que o “Ferrador”
homenageia o meu pai, que venceu na vida e nos educou ferrando cavalos.
Foi por isto que utilizei um “&” comercial ao invés da vogal “E” no
titulo desta minha verídica crônica de Abril.
Eita mundinho pequeno demais da
conta, sô!
É...
Por vezes, ou quase sempre, não
há limites para os que perseveram no trabalho digno.
E tenho dito.
*O autor nasceu em Francisco Sá,
Brejo das Almas, MG.