sábado, 5 de maio de 2012

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – O PRÉDIO DA PREFEITURA


ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – O PRÉDIO DA PREFEITURA

Enoque Alves Rodrigues

Rua do Mercado do Brejo das Almas
Quando no mês de Janeiro do ano de 1949 o Prefeito Feliciano Oliveira juntamente com seu vice, o Paraibano, visionário e empreendedor, Capitão Enéas Mineiro de Souza inauguraram o prédio onde ainda hoje se encontra instalada a Prefeitura do Município de Francisco Sá, construído pelo Engenheiro Francisco Benfica Veloso, de Montes Claros, era esta a composição da Câmara de Vereadores: Antonio Brito de Oliveira, Antonio Silveira, Gentil Dias de Faria, Oscar Ferreira Porto, Felinto José Pereira, Donato dos Santos Silva, Francelino Dias, Osmani Barbosa, João de Deus Dias, Sebastião Almério Borges e Osvaldo Rodrigues Vasconcelos.

Poderia ocupar-me ainda que com rápidas pinceladas, do resgate de maneira sucinta das biografias ou pelo menos, parte destas, da vida politica e pessoal dos personagens que muito dignificaram mencionada Legislatura. No entanto, mesmo tendo este pequeno e reles genérico de escriba esmiuçado, criteriosamente, registros históricos que dão conta do que foram  e realizaram suas Excelências, poupo-me de quaisquer outras alusões pois não teria como fazê-las sem que me enveredasse pela seara politica que, como todos sabem, por não dispor do domínio do conhecimento, abstenho-me de comentar.

Debrucei-me sobre muitas páginas amareladas pelo tempo, já corroídas por traças, em precário acervo, apenas e tão somente para satisfazer a minha própria curiosidade. Nada, além disso. Esta curiosidade jazia em minha memória desde os meus tempos de infante quando ouvia os mais antigos brejeiros dizerem ter sido até então, aquela Legislatura, a mais perfeita e atuante. Segundo diziam, a que mais projetos de lei apresentou e aprovou para o desenvolvimento da pacata Francisco Sá. Finalizadas todas as “analises profundas,” “cálculos complicadíssimos,“ “noites insones,” “comparações estatísticas em termos de relevância e realizações com outras Legislaturas,” etc., restou-me, como fato consumado, apenas e tão somente a grande decepção. A de que a mui propalada, elogiada e difundida como tendo sido a melhor e mais atuante Legislatura de Francisco Sá, nada teve em seu todo que a tornasse diferente das demais. É possível que o prédio da Prefeitura entregue e inaugurado naquela Legislatura seja um dos principais destinatários de tanto destaque. Quiçá tais conclusões ocorram em minha mente insana por ser eu desprovido do elementar conhecimento do assunto, analfabeto politico e incapaz de saber distinguir o que são os grandes feitos. Já falei para vocês que o “meu forte” está na engenharia. Nada mais.

Assim sendo, prefiro navegar na zona de conforto. Atenho-me, portanto, a assuntos frívolos, menos complexos. Como se falava no Brejo das Almas dos meus tempos: “caititu fora de manada é papo pra onça!”

Na equipe fixa do Engenheiro Benfica, em sua maioria composta por brejeiros locais, havia cinco peões que eram apelidados pelos nativos do brejo de “estrangeiros.” Recebiam esta denominação todos aqueles que não eram nascidos no Lugar. Independente de ser curta ou longa a distância que separava suas localidades de origem de Francisco Sá. Levemos em consideração que as distâncias de antanho eram “muito mais longas” que as de hoje. Os meios de transporte que em dias atuais rompem e tragam em frações de horas as mais longas distâncias, naqueles tempos praticamente inexistiam. Gedeão, pedreiro, preto, alto, magro, era de Quem-Quem. Valdecir, carpinteiro, branco, baixinho e barrigudo, era de Pai Pedro, já Aquiles, servente, moreno, alto e magro, vinha de Caçarema. Manoel, pedreiro, preto, baixo e magro, provinha de Taiobeiras, enquanto que Jurandir, tez e compleição física idênticas, era de Janaúba. Improvisaram um alojamento com caibros cobertos com lona bem no fundo da construção, onde os “estrangeiros” residiam. Ali, todos eles, assim como eu um dia ao chegar aqui em São Paulo, “queimavam a lata” no preparo do rango, cujo ponto culinário exato do tempero, jamais se obtinha. Á noite, beritavam nos bares do velho centro ou iam marcar o ponto na mais famosa ZBM de então. Rezavam para que a construção da obra nunca chegasse ao fim. Tinham o Brejo das Almas como seus portos seguros onde além da liberdade, colhiam o fruto sagrado inerente à remuneração do trabalho com o qual proporcionavam confortos as suas famílias “distantes.”

Mas como tudo nesta vida um dia se acaba, com a construção do prédio da Prefeitura de Francisco Sá, não foi diferente. Após alguns atrasos no cronograma, eis que chega o grande dia da final. Nenhum peão que havia trabalhado naquela obra queria acreditar. Nós obreiros somos assim. Envolvemo-nos de tal forma com as construções, que acabamos criando laços afetivos e quase sempre acabamos por trata-las como se fossem filhos, irmãos, pai, mãe, esposa, etc. Esquecemo-nos de que elas não nos pertencem. E que, na maioria das vezes, sequer podemos voltar a colocar os nossos pés sobre aquilo que um dia, com sangue, suor e muito sacrifício construímos ou ajudamos a construir.  É a vida meu nego. Quantas vezes me vi paradão diante de um arranha-céu qualquer que ajudei a construir em São Paulo? E o pior: quantas vezes guardas impecavelmente fardados saíram de suas guaritas para me perguntar: “o senhor deseja alguma coisa?” Não. Não desejo nada. Apenas observar esta “porra” que eu fiz. “Ah, foi o senhor, parabéns!” 

Bem, sem maiores delongas, o fato é que agora estavam todos ali, vestidos de suas melhores roupas, desnudados de suas botas, calças arranca-toco, camisas surradas e chapéus de palha que foram durante muito tempo suas “fardas,” diante do palanque de Feliciano e Enéas que rodeados da mais alta estirpe Brejeira, faziam os seus respectivos discursos de inauguração. A cada intervalo fonético eram os ilustres oradores ovacionados pela plateia com salvas de palmas sempre iniciadas em pontos estratégicos por puxa sacos previamente designados para aquela função. Em grupo, isolados dos demais participantes, aqueles cinco peões apenas olhavam com tristeza. Não acompanhavam as palmas. Não moviam um músculo. Estavam estáticos. Cumpriam apenas uma formalidade a qual exigia que naquela festa se fizessem presentes o Engenheiro e os colaboradores diretos da obra. Fisicamente seus corpinhos estavam ali. Mas os espíritos vagavam por outras plagas, talvez onde pudessem continuar no sacrossanto dever do trabalho e colher os frutos auferidos. 

Como nada escapava aos olhos de Feliciano e Enéas, não demorou muito para que ambos notassem a aversão daqueles peões em participarem do evento. Notaram também a tristeza que traziam estampada nos olhares.  Foi do vice o Capitão Enéas a iniciativa:

- Benfica! –Gritou ele o nome do Engenheiro da obra em meio à multidão.

- Pois não, seu Capitão. Em que posso atendê-lo?

 - Peça para que aqueles cinco funcionários seus que estão ali agrupados venham até o palanque! 

 - Disse-lhe o Capitão Enéas apontando para o grupo de peões.

Em instantes estavam todos os meus iguais “pés de barro” diante do Capitão Enéas Mineiro de Souza, nordestino porreta, cabra da peste, que em seu tradicional linguajar foi curto e grosso.

- Meus filhos, esperamos tanto por este momento para que hoje, juntos, estivéssemos todos nós aqui cheios de alegrias e entusiasmos comemorando o fim desta tão esperada obra e vejo no “olhar docêis” indisfarçada tristeza. Ao que se deve isto? Que mal os aflige? É festa!

Nós peões, -sim porque na obra, do tapume para dentro, do engenheiro ao servente, somos todos peões- não temos malicia. Assim, uníssonos responderam.

 - É que nós não queríamos que a obra terminasse. Não temos nenhum outro lugar onde possamos trabalhar para continuar sustentando as nossas famílias. Por isso não temos agora nenhum motivo para sorrirmos ou sermos felizes. O término da obra cobre de êxito os vossos propósitos e eliminam os vossos problemas. É exatamente aí que iniciam os nossos. Quem agora vai pagar os nossos salários? Sem salário não há solução!

Raposa velha da politica mineira, Feliciano ignorava a cena ao seu redor enquanto Enéas, também felpudo, mas prático e poderoso, se desvencilhava honrosamente da turba.

- E quem foi que falou aqui que vocês vão ficar sem trabalho? Vocês conhecem o caititu?

- Não, senhor, responderam os peões, “só na panela!”

- E o morro do Sapé, “ocêis conhecem?”

- Não. Não conhecemos!

- Diabos. Ocêis não conhecem nada. Assim fica difícil de ajudar!

- E a Fazenda Burarama. Vocês conhecem?

Responderam todos em uma só voz.

- Conhecemos claro. Esta a gente conhece!

- Diabos. Até que em fim vocês me ajudaram a encontrar uma solução para o problema de vocês. Amanhã, quero que todos amanheçam em minha Fazenda. Tenho lá, por toda a vida,  muito trabalho para vocês e suas famílias. 

Estas famílias cujos sobrenomes preservo por serem influentes na progressista Cidade que  desde o inicio da década de 1960 leva o nome deste grande Brasileiro, foram as primeiras a povoa-la.

É...

Por vezes, ou quase sempre, é na inocência dos nossos propósitos que encontramos as maiores soluções.

E tenho dito!

Enoque Alves Rodrigues, que vive em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção. Atua há 40 anos na área de Engenharia. É Escritor, com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

domingo, 29 de abril de 2012

VOCÊ SABIA? JACINTO LUZ, ZÉ ALVES E MASSEIRA!


“Brejo das Almas ou Francisco Sá, igual a ti outro não há...”

- VOCÊ SABIA? 

Enoque Alves Rodrigues

CAPITULO XXXI – JACINTO E ZÉ ALVES

Que Jacinto Luz era sogro de José Alves da Silveira, grandes fazendeiros no Brejo das Almas de antigamente, sendo este último pai de Jacinto Alves da Silveira, principal responsável pela fundação e emancipação do Brejo das Almas, hoje Francisco Sá?
Que o passatempo predileto de Jacinto Luz, sogro de Zé Alves, era a caça de veados? Que ele, munido de uma velha espingarda daquelas que se carregava pela boca, mas que nunca falhava, passava longas noites à espreita dos passos cautelosos do mateiro, pendurado numa forquilha de aroeira que se denominava “espera?” Que mencionada “espera” ficava na copa da mais alta e frondosa árvore que, possivelmente ainda existe e que se localiza exatamente na antiga Estrada de Cana Brava, na mata conhecida por “Baixa da Migrada?”
Pergunta: você, porventura também conhece ou conheceu a mata da “Baixa da Migrada” na antiga estrada de Cana Brava?

Pois é...


- VOCÊ SABIA?

Enoque Alves Rodrigues

CAPITULO XXXII – MORRO DA MESSEIRA

Que o Morro da Masseira é observado em sua total amplitude por uma distância que cobre várias léguas?
Que durante toda a década de 1950/1960 uma grande e resplandecente bola de fogo se levantava do Morro do Mocó, na Fazenda de Antonio Miranda, em altas horas da noite, a qual depois de dar uma volta de 360° sobre a Cidade de Francisco Sá, ou Brejo das Almas, ou vice-versa, durante 60 minutos, ganhava os rumos do Morro da Masseira onde  finalmente depois de estrondoso barulho se desintegrava?
Que todos, assustados, ao vê-la em voo rasante pela Cidade diziam tratar-se do tesouro que o Bandeirante Antonio Figueira havia enterrado no Morro do Mocó e que ela estava se mudando devido ás maldições causadas pela cobiça do povo brejeiro na caça ao tesouro?
Perguntas: você sabe por que o Morro da Masseira tem esse nome? Você acha que é pelo seu formato? Quem foi que primeiro o chamou de “Masseira?”

Com a palavra os “não brejeiros.”

Pois é...

sábado, 14 de abril de 2012

SAUDADE BREJEIRA - FELICIANO E MONTALVÃO - REPRISE

SAUDADE BREJEIRA - REPRISE

Enoque Alves Rodrigues

Bem em frente à Igreja Matriz localizada na Praça Jacinto Alves da Silveira, em pleno centro de Francisco Sá, conversavam Feliciano Oliveira e Montalvão, ambos, candidatos aos pleitos eleitorais de um ano qualquer, bem no inicio dos anos 1960.
O primeiro, meio alto e esguio, tez parda, careca, vestindo terno azul marinho com listras de giz, gravata borboleta - apesar do calor de deserto do Brejo das Almas de então -, e calçado com um par de botas de couro com canos longos que iam até os joelhos.

Já o segundo personagem, baixo, loiro, olhos claros, barriga saliente, calça de brim azul batido, camisa branca amarrotada, igualmente calçando botas de canos longos, num estilo bonachão, ensaiavam o discurso que fariam, logo mais, em um comício qualquer, lá no povoado de São Geraldo.

Eram velhas raposas da política do norte de minas, sendo o primeiro candidato à deputado federal e o outro a deputado estadual.

Dentro da Igreja aonde ambos se encontravam defronte, o Padre Silvestre, naquele momento, já se preparava para mais uma homilia. Fiéis assomavam-se à praça, tocados em seus recônditos pela “fé que remove montanhas”.

O Padre Silvestre, para quem não o conheceu, era um senhor alto, loiro, olhos azuis e, acreditem, muito sistemático. Diziam até que ele neste ultimo quesito conseguia superar, e muito, até mesmo o padre Salu, que todo brejeiro antigo só de ouvir falar o nome, tremia. O Padre Salu, sobre cuja personalidade difícil, já discorri neste espaço, realmente não era uma “boa ovelha”. Ranzinza, chegava muitas vezes ao extremo de expulsar as beatas de frente de seu confessionário a chutes. A molecada fugia dele.
Pois bem, o Padre Silvestre, a quem conheci de perto, não tinha, com toda certeza o temperamento do Padre Salu. Ao contrário, era dócil, tranqüilo, falar manso e um coração bondoso. Tratava a todos com amor e elevado espírito de solidariedade. Mas então, onde é que os dois padres se pareciam tanto? Pois não, os dois se assemelhavam devido ao fato de detestarem política. O Padre Silvestre, que posteriormente tornou-se mais flexível e até se aproximou da política, naqueles tempos era bem radical.

Achavam. Achavam? Não, tinham certeza, assim como a temos nós hoje, que na política brasileira se escondem as maiores mentiras. Que o fator que fomenta a política é a mentira. Claro, guardadas as devidas exceções que, aliás, são muitas. Há muita gente de bem dentro da Política no Brasil. Como Cristãos, e sendo a mentira um dos sete pecados capitais, eles, assim como todo e qualquer cidadão de bem, tinham mais é que abomina-la. Até ai, nenhum problema, não fossem os extremos.

Os dois grandes expoentes da política mineira palestravam descontraída e discretamente, já no meio da pequena multidão que se formava na praça. Ambos tinham o nítido desejo, mineiramente disfarçado, de à maneira que os brejeiros se ajuntassem todos, os dois candidatos, meteriam a mão em um bornal que traziam à mão e... zás... de lá sacariam um santinho com suas fotos e números e entregariam aos pretensos eleitores.
Mas o Padre era mesmo terrível. “Aquellos ojos verdes de mirada serena”, enxergavam mais que pirilampos do Mangal. À distancia e de relance, observava a ação dos dois, também, mineiramente. Fingia não vê-los. Os dois, por incrível que possa parecer, eram também amigos do padre Silvestre. Comungavam, ali. Mas o problema é que estavam fazendo política no lugar errado. No território do Padre. Era local sagrado. E isso ele não tolerava.

Não demorou muito e Feliciano puxou do bornal o primeiro santinho para entregar ao fiel eleitor. Tentou entregar, mas não conseguiu. Ao esticar a mão, pasmem. Assim como num passe de mágica, adivinhem de quem foi a mão que estava estendida para receber o santinho da mão de Feliciano Oliveira?
Sim. Foi ela mesma. Ao vivo e a cores: A mão do Padre Silvestre ali estava a tomar da mão de Feliciano o tal santinho.

Não contente, confiscou-lhe, sob os olhares surpresos dos fieis brejeiros, o bornal, cheio de santinhos.

Sem reagir, Feliciano, polido como sempre, mas também surpreso, apenas sorria...
Enquanto a Montalvão, evaporou-se em meio à multidão.

Pairam-me à mente, até hoje: jamais consegui entender como e de que maneira o Padre conseguiu levar a efeito toda esta ação, sem, sequer, proferir uma única palavra. Eu estava muito próximo e posso afirmar que ele não moveu os lábios.
Foram muito engraçadas e hilariantes as justificativas que os dois candidatos, algum tempo depois ao desembarcarem de uma velha Rural Willys já no povoado de São Geraldo, davam aos seus eleitores:

- “Olha pessoal. Viemos aqui falar com vocês, na condição de vossos leais e prestativos amigos de todas as horas. E todos nós sabemos muito bem que para se lembrar do rosto e da fisionomia de um amigo de verdade, aquele velho amigo que só nos faz bem, não se precisa de fotos. As nossas fotos, com toda certeza, já estão lá dentro da memória de todos vocês, nossos amigos. Mas para que não corram o risco de nos esquecerem, uma vez que a pinguinha do brejo que nós lhes oferecemos já está fazendo lá em vossas ideias, os seus efeitos, lhes informamos que o meu nome é FELICIANO OLIVEIRA. Eu sou o mais altinho e careca. Enquanto este aqui que está ao meu lado, baixinho e barrigudo, é o MONTALVÃO. Obrigado meus queridos amigos e correligionários e até a vitória nas urnas, se Deus assim o permitir!”

É...

Por vezes, quando não se tem a certeza necessária, é melhor abrir o jogo, sem delongas.

Enoque Alves Rodrigues, que vive em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção. Atua há 40 anos na área de Engenharia. É Escritor, com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

sábado, 31 de março de 2012

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ - TONICO LOPES

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – TONICO LOPES

Enoque Alves Rodrigues

Durante muitos anos o único acesso que qualquer ser vivente teria que utilizar para atravessar o Rio Verde Grande, na estrada que liga Montes Claros ao Brejo das Almas, ou Francisco Sá, era pela Fazenda de Tonico Lopes. Havia ali um ponto onde as águas eram baixas propiciando a passagem sem quaisquer dificuldades, de manadas de gado, além de servir de pouso de curta temporada para muitos vaqueiros e, nos tempos das colunas, de bandoleiros a caminho do Sertão.

Grande fazendeiro, Tonico Lopes era muito influente naquela localidade em tempos hoje já muito distantes. O Rio Verde atravessava ao meio toda a extensão de suas vastas e férteis terras, onde ele além de cultivar várias culturas como arroz, milho, feijão, algodão, cana de açúcar, alho e outras, ainda se dedicava a criação de gado de engorda com a qual abastecia os frigoríficos de toda a região. 

Casado com Lindalva com quem tinha quatro filhos labutava aquele grande brasileiro de sol a sol no sentido de prosperar a cada dia. Dotado de índole impecável e coração bondoso, colaborava com todos os transeuntes em passagem por suas terras. Nos períodos de chuva as cheias invadiam grande parte da Fazenda cuja Sede ficava no alto de um pequeno morro. O casarão da Sede funcionava naquelas ocasiões como a uma verdadeira “arca de Noé” porque todos os viajores surpreendidos pela elevação das águas não conseguiam seguir viagem e lá permaneciam até que as águas baixassem. Tonico Lopes a todos socorria sem pedir nada em troca.

Premido pelas circunstâncias, contemporâneo das maiores e mais importantes forças politicas regionais, não demorou muito e aquele sinuoso e íngreme caminho passou a receber as benfeitorias necessárias a sua adequação em prol dos transeuntes para que pudessem utiliza-lo sem riscos ou traumas.

Agora aquele mísero genérico de ponte estava finalmente de cara  nova. A coisa ficou muito bonita. Empedraram grande parte da estradinha que levava à Sede e tudo agora estava às mil maravilhas. Tudo dentro dos conformes. Tudo na paz do Senhor.
Será?

As coisas e as pessoas estão em constantes modificações. O que não está melhorando, está piorando. A vida não é estática, é dinâmica. E ela gira em torno de si própria numa velocidade assustadora que é impossível ao nosso cérebro e raciocínio acompanhar. Aí, como não conseguimos acompanhar, surgem a nossa frente, inicialmente pequenos hiatos que, à medida que não os ocupamos inteiramente, vão se avolumando e, de repente, em fração de segundos nos vimos diante dos mais difíceis e intransponíveis obstáculos já que estamos falando aqui de “estradas,” “pontes,” “acessos,” “passagem”, etc.

É oportuno e de salutar importância ressaltar que segundo estimativas  confiáveis feitas por quem entende realmente do riscado, aproximadamente 95% dos nossos dissabores são atribuídos a nós mesmos, principalmente por nossas incertezas. Quando na maioria das vezes pensamos termos certeza de alguma coisa, partimos para a ação precipitada, exatamente no momento mais inoportuno possível, quando o cavalo selado da vida de há muito já passou, ou sequer se aproximou ainda de nós, e assim, ao nos jogarmos, caímos, inevitavelmente, com os fundilhos no chão. Essas reações adversas acontecem, exatamente porque quase sempre, as nossas ações e atitudes são tomadas em cima dos nossos próprios egoísmos e de interesses mesquinhos. Não conseguimos pensar por muito tempo no coletivo. Já que deitamos, dormimos e acordamos com o nosso “eu” interior, claro está que é mais fácil pensarmos em nós mesmos. Quanto aos outros? Bem... Isto já é uma “outra história.” Não é comigo... Assovie... Olhe para os lados. Disfarça que lá vem gente. Os outros não são da nossa conta. Eles que se virem. Farinha pouca, meu pirão primeiro. Não é assim?

Ele começou a crescer os olhos. A mente dele, antes bem articulada, agora se achava em pandarecos. Pudera, deitava e não dormia. Qualquer coisa dava-lhe nos nervos. Agora a movimentação por suas terras era muito mais intensa. Ele precisava fazer alguma coisa. Tinha que tirar proveito daquela situação. Aquela agitação por suas terras poderia lhe render muitos dividendos. Mas como começar? Até ali jamais houvera lucrado um centavo sequer com isso. Puxa vida ele não havia pensado naquilo! Como foi capaz de ser tão tonto durante todo aquele tempo? Quanto dinheiro ele teria arrecadado se tivesse cobrado antes? Não, não cobraria nada. Teria que ficar como estava. Não lhe parecia justo cobrar de alguém que estava apenas em transito por sua fazenda até porque não havia outro acesso. Não se prevaleceria disso agora. Bem... Pelo menos, por enquanto. Talvez um dia, quem sabe. Estas indefinições por si só já são mais que suficientes para indicar que o caboclo está “balançando.” Que os dois “diabinhos” um do bem e o outro do mal (uai, existe diabo bom?) estão pelejando entre si lá dentro do coité do peão. Quando é assim basta um pequeno empurrãozinho que o sujeito capota. Pois foi o que aconteceu.

José Maquinista. Esse brejeiro foi o primeiro a dirigir um veiculo por aquela região. Era um FORD de bigodes. Ele não era o dono, era chofer e ás vezes conduzia também o Ministro Francisco Sá. Chegou ao anoitecer no casarão da sede da fazenda de Tonico Lopes naquela tarde chuvosa depois de haver atravessado o rio verde. Ele trazia em sua companhia um cunhado seu de nome Raimundo que vinha da Capital. Pernoitaram por lá. Na manhã seguinte o acesso que permitia a passagem para o outro lado do rio verde aonde o viajante podia continuar sua jornada rumo ao Brejo das Almas e região, se encontrava com uma cancela e, ao lado da dita cuja uma placa com letras de forma e erros gramaticais sofríveis  onde se lia: “PERDAGI DE UM CRUZERO PUR CABEÇA TANTO BOI CUMA GENTE. CARRO E CARROÇA UM E MEIO CRUZERO.” Dois capatazes completavam o cenário bucólico de bornal nas mãos, cobrando ou pelo menos tentando cobrar, daquela gente, pelo simples acesso para o outro lado. Utilizavam uma termologia estranha que até então ninguém por aquelas bandas ouvira dizer: “Pedágio”. Dessa forma conclui-se que a mesma tenha vindo da Capital trazida que fora por Raimundo, cunhado de Zé Maquinista.

Mas como é a necessidade que faz o sapo pular, não demorou muito e os transeuntes conseguiram encontrar alternativa mais trabalhosa porque tinham que dar uma grande volta para atravessar para o outro lado, mas menos onerosa, pois não tinham que pagar nada. Precavidos, colocaram outra placa “desvio a 500 metros”. Agora todos passavam por ali. Enquanto no pedágio, ninguém ia. Maior fiasco. A coisa miou. O tiro saiu pela culatra. A esperteza, como dizia Tancredo Neves, acabou engolindo o esperto. Pouco  tempo depois a cobrança foi extinta. Tardiamente, alguém de bom censo veio lhe alertar que aquilo não valia a pena. Que era muito mais fácil para ele continuar sendo bom. Que cobrar dos outros para que transitassem por alguns metros sobre suas terras não era a melhor prática a ser adotada. Que era infinitamente muito mais valioso continuar ouvindo dos passantes o “Deus lhe pague.” “Deus lhe ajude.” “Deus te abençoe,” ou na pior das hipóteses, um “muito obrigado”. Dinheiro nenhum no mundo conseguiria substituir estas simples e fluídicas palavrinhas mágicas que brotavam do coração eternamente agradecido daqueles andantes. 

É...

Por vezes, é preferível deixar como está para ver como é que fica. Se você não tiver certeza sobre que passo dar, que caminho seguir, plantar-se ao chão é o melhor negócio. E reze para que os ventos não o balancem.

E tenho dito!

Enoque Alves Rodrigues, que vive em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção. Atua há 40 anos na área de Engenharia. É Escritor, com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

sábado, 24 de março de 2012

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ - LUCAS DOS INFERNOS


ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – LUCAS DOS INFERNOS

Enoque Alves Rodrigues

Criado no seio das tradicionais famílias Prates e Sá, de onde provem o Deputado Camilo Prates e os irmãos Francisco e Alfredo Sá, respectivamente, Lucas dos Infernos, escravo que fora lá na Fazenda Brejo de Santo André, Município de Brejo das Almas, hoje Francisco Sá, depois de ter servido ambas as famílias por mais de 40 anos, vivia, finalmente, seus dias de glória. Passava a maior parte do tempo em companhia de “seu Camilinho” como era chamado carinhosamente o Deputado Camilo Prates, que como recompensa pelo muito que o velho escravo Lucas fizera por sua família, como prova de gratidão, não permitia que ele trabalhasse mais. Aonde o Dr. Camilo ia, levava seu fiel escudeiro Lucas, um preto alto, magro, de olhos esbugalhados e faces largas. O que mais o destacava dos outros serviçais era a sua presença de espirito e seu astral sempre elevado até as nuvens. Exímio contador de “causos”, brincalhão, prestimoso, a todos conquistava com seu largo sorriso. Não havia quem não gostasse de Lucas dos Infernos. Sua alegria em qualquer parte onde ele estivesse contagiava a todos. No entanto, cortava uma cana dos diabos e, nem mesmo os efeitos etílicos conseguia mudar sua personalidade. Alias foi num desses porres homéricos que ele recebeu o aditivo “dos infernos” no nome. Dizia ele em mais uma de suas histórias, essa segundo afirmava, verídica, que após se embriagar teve sonhos assustadores onde de repente se achou em meio ao inferno junto com vários asseclas de Lúcifer. Depois de ele ter passado por “poucas e boas lá nas profundas” quando os capetas iam, finalmente, fechar os portões para mantê-lo encarcerado lá para todo o sempre, ele, assim como num passe de mágica, se despertou daquele tenebroso pesadelo. Foi a partir deste dia que ele teve o seu sobrenome “dos Santos,” substituído por “dos infernos.”

Lucas nasceu na Fazenda dos pais de Francisco e Alfredo Sá em uma época em que a escravidão se achava em plena evidência no Brasil. Ricos e poderosos, porém, os pais de Francisco e Alfredo jamais foram de dispensar quaisquer maus tratos aos escravos sob suas responsabilidades. Foi por isso que mesmo depois de abolida a escravidão no Brasil, a 13 de Maio do ano de 1888, por Sua Alteza, a Princesa Isabel Cristina Micaela e mais um milhão de nomes, quase todos os escravos que serviam os pais de Francisco e Alfredo preferiram continuar com eles. Assim sendo é certo que Lucas dos Infernos embalou, em infância, os sonhos destes dois irmãos, grandes estadistas, orgulho maior do norte das Alterosas.

Servidão e lealdade. Era este o binômio sobre o qual durante toda a vida repousava as relações de Lucas dos Infernos para com seus patrões ou senhores. Tanto em Brejo de Santo André, em casa dos pais de Francisco e Alfredo, como em Montes Claros em casa do Deputado Camilo Prates ou no Brejo das Almas, em companhia deste em casa do Padre Augusto, pois muitas vezes “Seu Camilinho” o cedia para ficar uma temporada com o Padre Augusto no Brejo das Almas, várias foram ás oportunidades que o preto Lucas teve de provar aos seus senhores o quanto lhes era fiel. O orgulho que tinha em servi-los era indescritível. Por isso que ele agora em idade avançada colhia os louros que amealhou durante muitos anos de dedicação e esmero. 

Ele se levantava todos os dias lá pelas 8 horas da manhã. Depois de dar umas voltas pelo Centro do Brejo onde, entre um “causo” e outro, manguaçava  nos muitos botecos, retornava ao meio dia para almoçar. Puxava uma palha até ás 14 horas e voltava ao Centro para continuar bebericando. Ás 19 horas após passar pela velha Matriz onde se ajoelhava e rezava aos pés do cruzeiro, regressava para casa. O Padre Augusto não se incomodava por este hábito. Isso era irrelevante ou sem muita importância. Lucas não incomodava ninguém. Bastava abrir a boca para contar suas histórias e piadas para que todos caíssem na gargalhada. Isto sim, era o que mais importava. O resto não tinha peso algum. 

Naqueles tempos longínquos era prática comum ao dono da casa quando recebia visitas importantes, convidar algum de seus serviçais para contar-lhes algumas histórias ou piadas desde que desprovidas de duplo sentido ou qualquer grau pejorativo. Tais procedimentos, acreditem, retratavam o alto nível intelectual e financeiro com os quais o dono da casa era aquinhoado. 

Certa vez se encontravam na casa do Padre Augusto, no Brejo das Almas, o Dr. Honorato Alves, Camilo Prates, Alfredo Sá,  Jacinto Silveira, Antonio Ferreira, Francelino Dias,  o próprio Padre Augusto e o famoso Jornalista Mário Cassassanta que à época escrevia uma matéria para um Jornal do Rio de Janeiro sobre o Brejo das Almas. Na grande sala de estar, sentados confortavelmente em bancos de couro depois de terem se esbaldado com o angu de fubá com molho de quiabo e brotinhos de feijão de corda, que Wenceslau sabia preparar como ninguém, lá pelas tantas chamaram o negro, velho escravo “aposentado” para contar suas anedotas. Entrou todo faceiro e gracioso. Sentou-se em meio à roda de visitantes e pôs se a olhar nos olhos do Dr. Camilo e do Dr. Alfredo. Estava à espera de um sinal de ambos para que pudesse iniciar. O sinal não vinha. Por certo que nem o Dr. Camilo tampouco o Dr. Alfredo foram avisados por Lucas dos Infernos dessa sua nova mania. Depois de algum tempo de trocas de olhares sem que o sinal fosse enviado, o Dr. Camilo vendo que a plateia já se achava inquieta, perguntou-lhe: 

- E então, Lucas. Não vai começar? Até quando você vai nos deixar aqui sedentos por ouvir suas belas histórias, menino? 

- Não posso senhor, respondeu Lucas levando as duas mãos à cabeça. Só poderei começar quando o senhor e o doutor Alfredo me autorizarem. Para tanto basta que cada um pisque seu olho esquerdo, ao mesmo tempo, simultaneamente. Dito isto, estufou o peitoral pra frente, esticou o longo pescoço e arregalou os dois olhões sobre ambos em busca do impossível que não veio, pois por mais que os Doutores Camilo Prates e Alfredo Sá tentassem, não conseguiam sintonizar suas piscadelas. Quando um fechava o olho para piscar, o outro abria, e vice-versa. Depois de longos minutos neste diapasão coube a Jacinto intervir.

- Compadres, por favor, parem com isso! Os senhores ainda não perceberam que este Lucas dos Infernos está tirando sarro de todos nós? O que ele lhes manda fazer, jamais  conseguirão. Ninguém é capaz de fazer isso. Foi bem mais fácil para mim, apesar de sabermos o quanto me foi difícil, (o Coronel Jacinto, como bom Mineiro, de quando em vez também se dava ao luxo de colocar em prática o seu Mineirismo), emancipar o Brejo das Almas. Este negro não quer contar história coisíssima nenhuma!

Sábias palavras. Não fosse isso e ambos estariam até hoje piscando um para o outro. Claro, se não tivessem, há muito tempo, partido para o Andar de Cima. Antes que Jacinto fechasse a boca encerrando seu comentário, Lucas dos Infernos já soltava sua diabólica e sarcástica gargalhada seguida da frase que ele sempre utilizava nestas ocasiões: “Peguei vocês, outra vez, seus espertos!”

Em um inesperado efeito dominó, todos os presentes, ao mesmo tempo, no mesmo minuto, no mesmo segundo, na mesma fração de milésimo, em tempo real, simultaneamente, sei lá mais o que, caíram no riso.

- Uai, sô, dirão alguns, porque razão todos eles conseguiram rir ao mesmo tempo, fazendo com facilidade o que certamente seria o mais difícil?

- A resposta veio do próprio sábio Lucas dos Infernos ainda no meio da roda de visitantes ilustres. 

- Todos e não somente dois conseguiram fazer o mais difícil por que ninguém lhes disse o que teria que ser feito. É necessário dar ao homem liberdade para pensar e agir, acertar e errar, sem que outros lhes digam o que se deve ou não fazer. É para isso que cada um tem a sua cabeça!

É...

Por vezes, revelar o segredo poderá não ser uma boa atitude. Oculta-lo talvez seja o melhor atalho para se chegar ao êxito. Urge ensinar o ser humano a acertar.

E tenho dito!

Enoque Alves Rodrigues, que vive em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção. Atua há 40 anos na área de Engenharia. É Escritor, com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

sábado, 17 de março de 2012

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – WENCESLAU, O MANDINGUEIRO II

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – WENCESLAU, O MANDINGUEIRO II

Enoque Alves Rodrigues

Difícil, para não dizer impossível, contar a história de Wenceslau Bispo dos Santos, “O azar” em um só capítulo. Ainda bem que preveni vocês quanto a merecida continuidade, pois seria uma pena resumi-la em uma só parte. Acredito que o pouco que contei em crônica anterior não faria justiça ao muito que significou aquela límpida alma para aquelas setenta e quatro crianças carentes, que foram resgatadas das ruas do Brejo, pelo Padre Augusto Prudêncio da Silva, em situação de miserabilidade extrema.

Apenas para lembrar, “Azar” surgiu naquele pequeno Orfanato que ficava na antiga Rua do Padre ou Rua da Amargura esta última denominação atribuída à tristeza e melancolia da qual era a mesma acometida durante a semana santa, como que por encanto. Jamais se soube ao certo quem foi que o enviou. Aliás, esta era uma preocupação do Padre Augusto, que, no entanto, só perdurou até ele conseguir ler e decifrar, inteiramente, tudo que se passava na cachola de Wenceslau. Finalizados os seus estudos, analises e conclusões, resultaram indiscutivelmente positivas as boas intenções e ações de “Azar”. Foi a partir daquele voto de confiança do Padre, o qual “Azar” jamais burlou que ele foi investido nas funções de colaborador direto do Padre Augusto, dedicando-se, de corpo e alma a cuidar daqueles menores necessitados. Se algo nos surge no caminho para nos fustigar, certo está que removeremos Céus e Terra no sentido de detectarmos o mais rapidamente possível a origem do mal que nos aflige para eliminarmos antes que nos elimine. Já com relação às dádivas ou acontecimentos positivos que de quando em vez nos brotam no caminho, não temos as mesmas preocupações. Elas vêm e vão sem que nós sequer nos demos ao trabalho de dar uma espiadela no que tange ao seu nascedouro e quais foram os percursos que elas tiveram que percorrer para chegarem até nós. Somos falhos, sim senhor, mas devo dizer que esse procedimento é natural a todos nós humanos. Portanto não chega a ser um erro ou desvio de conduta. Talvez a explicação se prenda ao fato de nos subestimarmos, julgando-nos, em função de nossos débitos contraídos com o pretérito, não merecedores de qualquer dádiva. Bestagens. Ninguém recebe do Alto ou de quem quer que seja nada além do que realmente merece. Ou, então, o pior, por nos acharmos excessivamente merecedores acabamos por não darmos a atenção devida a estas dádivas. “os Céus não fizeram mais que sua obrigação!”

Mas o Padre Augusto, como já disse em várias oportunidades, era incomensuravelmente espiritualizado. Se à época estivesse em voga a termologia “católico espirita” o Padre Augusto a ela se enquadraria sem delongas. Ele sabia de tudo. Por isso não tinha porque investigar. Ele possuía o dom da clarividência. Voltemos ao Wenceslau, o “Azar”.

Ao compulsar os anais da história de Brejo das Almas, hoje Francisco Sá, minha “beldade do norte de Minas,” (Nossa, há quanto tempo não a chamo assim), você irá constatar inúmeras invasões da pequena Cidade por tropas de bandoleiros que se intitulavam legalistas que agiam em nome do Governo, sob cuja égide praticavam  as piores atrocidades. Eram violentadores, ladrões e arruaceiros mal cheirosos que a ninguém respeitava. Aonde eles chegavam o pânico estava instalado. Invadiam as roças, criações de gados, porcos e galinhas. Entravam em  casas residenciais e comerciais, levavam tudo o que queriam e ninguém podia dizer nada. Só de vê-los de longe já dava medo.

A mais temida “coluna” de bandoleiros que adentrou Brejo das Almas teve como chefe Rotilio de Souza Manduca que se autodenominava Coronel e “Patriota Supremo.” Isso aconteceu precisamente no dia 18 de Fevereiro de 1926. Aquele sujeito juntamente com sua tropa, formada por mil tranqueiras da pior espécie, permaneceram na Cidade por exatos 52 dias. Semearam o terror. Quando finalmente levantaram acampamento, rastros de destruição eram evidentes por se assemelharem às devastações vulcânicas. Mas antes de irem embora tiveram que passar pelo constrangimento de serem “peitados” pelo negro “Azar” que os humilhou publicamente. “Azar” era um tipo de “guardião” do Padre Augusto, apesar deste jamais necessitar disso, pois o Padre também não era de mandar recados e sabia “se virar sozinho.”

Ao lado da casa do Padre havia um grande mangueiro onde ele mantinha seus animais de montaria pastando, além de algumas vaquinhas que abasteciam com o leite, o bucho de seus pequenos internos e uns porquinhos de engorda para a extração de banha, carne e torresmos, porque ninguém é de ferro. Manduca, já no final de sua “estada” no Brejo, não tendo mais a quem acharcar, cismou de mexer com as coisas do Padre. Primeiro mandou que um de seus homens amarrasse um cavalo no cruzeiro que ficava em frente à Igreja. O Padre que naquele momento rezava missa interrompeu a homilia e, aos berros ordenou que o capanga tirasse imediatamente o cavalo do cruzeiro. Este retrucou dizendo que só recebia ordens de seu superior Manduca. O Padre que tinha uma força “estranha” no olhar observou-o com “ternura.” Alguns segundos depois o pobre jagunço começou a tremer e a se borrar. Rabo entre as pernas desatou o nó do cabresto no cruzeiro e deu no pé com sua animália. Chegando ao acampamento que ficava em frente ao mercado velho, inteirou Manduca do ocorrido. Este, de propósito foi pessoalmente até o mangueiro do Padre e, lá chegando, juntou duas vaquinhas, quatro leitões e a mula de estimação do Padre. Quando já estava de saída com os produtos do roubo, antes de ganhar a porteira, deu de cara com o negro Wenceslau, o “Azar.” 

- Deixe estes animais ai, disse-lhe “Azar”, porque eles não lhe pertencem. Eles são propriedade do Padre e ninguém vai levar na mão grande.

- Sou Coronel, respondeu-lhe, Manduca, trabalho para o Governo em beneficio do Cidadão. Tudo que estiver a minha frente eu posso utilizar. Eu vou levar, sim, e não será um negro como você que me irá impedir!

- Bem, retrucou Wenceslau, você pode ser Coronel lá pra suas negras. Aqui neste solo sagrado você não passa de um pé rapado. Vá embora enquanto há tempo. 

- Quem você pensa ser, disse-lhe Manduca, para me falar desse jeito?

- Vá simbora, voltou a dizer “Azar”, que é o melhor que você tem a fazer!

- Você não vai? Bem, eu lhe avisei.

- Mas você me avisou do que seu negro safaaa...

Não conseguiu finalizar a frase. Um quase inaudível assovio de “Azar” foi mais que suficiente para que nuvens de maribondos ávidos por picarem sangue ruim, caíssem sobre Manduca, que quanto mais tentava se proteger mais era atacado. Não lhe restou alternativa senão implorar ao bom “Azar” para que fizesse que os maribondos parassem de ferra-lo. “Azar” após obter de Manduca a palavra de que jamais voltaria a incomoda-los ordenou, com outro assovio, que os maribondos o deixassem. Humilhado, mas covarde, Manduca retirou-se ameaçando retornar para finalizar seu intento em outra oportunidade.

“Azar” ouviu-o atentamente e no final foi claro: “Não haverá outra oportunidade seu bandoleiro besta. Você não entendeu o que eu lhe disse que isso aqui é solo sagrado por ser terra do Padre? Seus pés sujos não podem pisar mais aqui.”

Dois dias depois Manduca, em companhia de trinta de seus melhores jagunços, retornou ao mangueiro do Padre em calada sorrateira. Vinham pisando em algodão para não levantarem suspeitas. Pretendiam levar todos os animais do Padre. Já estava acessa uma grande fogueira no acampamento para assarem os porquinhos. Não tiveram tempo. Outra vergonhosa derrota agora os esperava. Entraram todos no mangueiro. De onde surgiu tanto lamaçal jamais se soube. O que se via e até soava engraçado, era aquele bando de marmanjos tentando se equilibrar sobre as pernas, que se achavam enterradas no barro até a altura dos joelhos. 

Sobre a porteira, confundindo-se com um preto mourão, Wenceslau ou “Azar” observava. E à maneira que a turba tentava sair do barro mais se afundava. Quando isso acontecia, “Azar” soltava grandes gargalhadas a guisa de gozação. O negro era perverso quando queria. Não contente em somente ele apreciar aquela cena deprimente para quem, como Manduca, se dizia autoridade, foi até o Largo da Matriz onde convidou os presentes a irem assistir aquele dantesco espetáculo. Todos viram. Mas ninguém acreditou. Aquilo não era possível. Amedrontados tentaram segurar o riso. Mais “Azar” foi implacável: “Suas pulgas, não trouxe vocês aqui para chorar, mas para sorrir. A menos que estejam com pena deles.” Pronto: era tudo que faltava. Sarcásticas gargalhadas foram ouvidas durante toda a madrugada. Não satisfeitos, subiram sobre a cerca e de lá, qual plateia no Coliseu Romano, dos tempos de Nero, atiçavam: “Vamos, seus bocós. Queremos ver quem de vocês vai sair primeiro desta merda!” Outros, diziam, “cuidado, não vão se misturar!”
 
De manhã, ao se levantar, o Padre Augusto, já velho e meio surdo, custou a entender de onde partia aquela algazarra. Levantou-se e se dirigiu até o mangueiro. Lá estavam todos, cansados e esbaforidos. Enterrados agora até a cintura. Ao avistarem o Padre foram logo dizendo: Tire-nos daqui, tire-nos daqui. Sua Reverendíssima, “piedosamente” apenas observava. Depois de algum tempo, mineiramente, lhes indagou:  Por favor, meus “filhos”, quem foi que os colocou em meio a tanto barro e bosta de vaca? Como é que vocês foram parar ai? Porventura, disse-lhes o Padre, entre sorrisos, estavam vocês praticando alguma estripulia? Eu não acreditaria devido serem vocês bastante crescidinhos. 

Todos, desesperadamente, responderam a uma só voz, apontando para “Azar”: Foi ele. Foi este preto dos demônios que nos colocou aqui neste inferno!

- Então, disse-lhes o Padre, se foi ele que os colocou ai, ele que os tire. Eu também, assim como um de vocês me disse outro dia, não sou empregado dele e de ninguém. Eu só trabalho para Deus!

Dito isto juntou a batina e se retirou.

Agora, por favor, amantíssimos conterrâneos, brejeiros do meu coração, povo meu, não perguntem a este quase sexagenário, cabeça branca, o que Manduca teve que prometer desta vez a Wenceslau, para que os liberasse. O que posso lhes informar é que na manhã daquele mesmo dia todo aquele “exército de sujos” era visto a caminho da Bahia. Derrotados, apontavam suas armas para o alto e disparavam. Vitoriosos, agora felizes e aliviados, os Brejeiros, lá atrás, respondiam com sonoras gargalhadas e fogos de artifícios.

É...

Por vezes, ou quase sempre, a prudência nos recomenda que não ha fracos nem fortes diante das estratégias do sobrenatural. O importante é saber achar o “ponto G” do equilíbrio.

E tenho dito!

Enoque Alves Rodrigues, que vive em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção. Atua há 40 anos na área de Engenharia. É Escritor, com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.