sexta-feira, 29 de março de 2013

CENAS BREJEIRAS 8 – CARMINA DE POÇÕES & HILÁRIO FERRADOR.




CENAS BREJEIRAS 8 – CARMINA DE POÇÕES & HILÁRIO FERRADOR.

*Enoque Alves Rodrigues

Carmina Abadia Ferreira nasceu na comunidade Quilombola de Poções, no distrito de Cana Brava, município de Francisco Sá, ao norte de Minas Gerais, distante a pouco mais de trinta quilômetros do centro de Francisco Sá ou Brejo das Almas, numa época muito difícil onde a fome campeava solta por aquelas bandas. Sua estirpe descendia de escravos da família Sá, pois seus pais haviam servido os pais de Francisco e Alfredo, grandes estadistas locais, tendo o primeiro sido Ministro de Viação e Obras Públicas além de emprestar seu nome a minha cidade.

Lá, aquele divino ser, trabalhava duro na roça ou especificamente na antiga fazenda Poço João de Deus, no quase infrutífero cultivo de abóbora, andu, fava, milho e feijão. Criança ainda mourejava debaixo de sol escaldante de rachar mamonas, mediante pífia remuneração. Ela ajudava os pais Juraci e Quitéria no sustento dos oito irmãos menores. A vida ali era foda mesmo e o temido bicho da fome que faz o “estambo” roncar já não assustava a mais ninguém. De tão presente no cotidiano daquelas criaturas, já não lhes causava nenhum espanto. A fome quando é amiúde, perde o temor do faminto que por não ver outra solução acaba por familiarizar-se com ela. Jovem ainda contraiu núpcias com Hilário Jú, também descendente de escravos, só que vindos da Bahia.

Naquela comunidade não havia nenhuma diversão a não ser o trabalho e as festas anual do Senhor Bom Jesus, de Nossa Senhora Aparecida e Nossa Senhora do Desterro que ocorriam nos meses de Julho, Maio e Dezembro, respectivamente. A fé que remove montanhas tinha que existir. E existia mesmo em toda a sua plenitude. Sem ela não tinha como se viver ali. A Religião que predominava naquele meu torrão era a Católica Romana da qual faziam parte grandes núcleos inclusive Carmina e todos os seus familiares.

Depois de enfrentarem grandes dificuldades eis que decidiram mudar para o centro de Francisco Sá, ou Brejo das Almas. Fundamentaram esta decisão ao fato de que os dois filhos que estavam crescendo deveriam ter a oportunidade que eles, os pais, não tiveram, de estudarem para que assim pudessem ser alguém na vida. Conseguiram alugar um casebre na Rua Sete de Setembro no centro do Brejo. Matricularam os dois infantes em escola também no centro. Enquanto Carmina cuidava das crianças e passava roupas em casas de senhoras da sociedade brejeira, Hilário que desejava a todo custo fugir da roça, agora se dedicava ao oficio de ferrar cavalos tornando-se exímio especialista. Ninguém dominava melhor que Hilário esta nobre arte que ao contrário do que muitos pensam, não é nada fácil. Ele trabalhava com os melhores cravos e ferraduras que, segundo diziam, eram os fabricados em Salinas de onde também vinha à cachaça que ele mantinha em um corote de carvalho com a qual brindava sua cativa freguesia com uma “cuiada”, pois a “mardita” era ofertada em uma cuia a guisa de copo. Sua banca, na verdade, um caixote de madeira, ao lado de um tronco onde amarrava os bichões, ficava defronte a antiga Viena. Isto era sagrado. Sempre que ele finalizava a tarefa de ferrar as animálias estendia, graciosamente, uma pequena cuia de cachaça ao cliente em forma de agradecimento. Depois disso, com uma bucha vegetal, dava um brilho nos cascos do rinchão que saia de lá com os “pisantes” nos trinques, além de levar uma tosada na crina. Hilário era deveras caprichoso e tinha mesmo que progredir. Em pouco tempo sua fama correu os mais longínquos rincões de onde fazendeiros mandavam através de seus capatazes, suas belas montarias para que Hilário as ferrasse. Havia até ferraduras douradas que de longe reluziam. Enquanto ambos, Hilário e a batalhadora Carmina progrediam, criavam e educavam os dois filhos no caminho do bem.

Quando o Brejo ficou pequeno para os meninos Carmina e Hilário não pensaram duas vezes. Mandaram-nos estudar em Montes Claros que naquela época não tinha a pujança de hoje e, por isso, dentro de algum tempo, também ficou pequena para os dois carinhas que, motivados até a medula pelos pais, filhos de escravos, não pararam mais de estudar enquanto trabalhavam. O Céu era o limite para eles. Nada os deteria. Será?

Não. Você que há muito tempo me lê já está, assim como eu, literalmente, careca de saber, que quando eu insiro uma interrogação no verbo conjugado “será”, alguma surpresa está por vir. Geralmente com este verbo interrogativo eu prenuncio o epilogo de alguma crônica. Mas desta vez você não acertou. Pela primeira vez consegui não ser previsível.

Ano de 1980. Rua Florêncio de Abreu em São Paulo. Aos que não conhecem esta rua informo que a mesma, naquele tempo, era inteiramente ocupada por casas comerciais onde só se vendiam ferramentas. Eu trabalhava numa grande Construtora aqui em SAMPA e cabia a mim o setor de suprimentos da empresa. Foi por isso que naquele dia lá estava eu com uma prancheta à mão a percorrer a Florêncio realizando comparativas de preços para uma grande aquisição ferramental. Como sempre fazia, desci mencionada rua analisando preços do lado ímpar até próximo à Rua 25 de Março. Ao subir a Florêncio cheguei até uma loja onde a denominação grafada em sua placa remeteu-me há um passado muitíssimo distante. Lá estava escrito “Casa de Ferramentas Ferreira & Ferrador.”.  Até ai, nada mais natural. Tratar-se-ia seguramente de alguma das muitas coincidências que acontecem vida afora. Nenhuma curiosidade tinha eu a despertar neste particular. Mas eu estava ali fazendo o meu trabalho que era pesquisar preços, por isso tinha que entrar. E entrei...

Predominantemente habitada por brancos, em sua maioria, descendentes de Europeus, os dois senhores que a primeira vista percebi tratar-se dos gestores daquele grande estabelecimento, destoavam-se, e muito, destes estereótipos. Eles eram pretos. Um muito alto enquanto o outro era de estatura mediana. Ao me verem designaram um de seus balconistas para me atender. Enquanto eu era atendido, o senhor alto, passou-me, singelamente, uma xícara de café muito doce e ralo. Não tinha mais dúvidas.

- O “Ferreira & Ferrador” que dão nome a vossa loja, porventura, são de Minas?

- Não. Não são de Minas. Respondeu-me o senhor alto, entre sorrisos. “São do Brejo das Almas!”

- O senhor é o Hilário Ferrador, marido da dona Carmina?

- Não. Somos seus filhos. Nossos pais já não trabalham mais. Eles já trabalharam muito para nos sustentar. Eles vivem conosco aqui em São Paulo para onde viemos concluir os nossos estudos. Aqui nos formamos. Eu sou o Hilário Filho e me formei em direito enquanto que o meu irmão, o Carmino, é Contador. Foram os nossos pais os fundadores desta loja. O “Ferreira” é homenagem a minha mãe enquanto que o “Ferrador” homenageia o meu pai, que venceu na vida e nos educou ferrando cavalos.

Foi por isto que utilizei um “&” comercial ao invés da vogal “E” no titulo desta minha verídica crônica de Abril.

Eita mundinho pequeno demais da conta, sô!

É...

Por vezes, ou quase sempre, não há limites para os que perseveram no trabalho digno.

E tenho dito.

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, MG.

sábado, 2 de março de 2013

CENAS BREJEIRAS 7 - MARIANA PERES



CENAS BREJEIRAS 7 – MARIANA PERES 

*Enoque Alves Rodrigues

Ela estava decidida. Não ficaria nem mais um minuto ali. Dificuldades extemporâneas à sua rotina e a atual decepção amorosa a estavam escorraçando de sua linda e querida Lagoinha, pequena comunidade pertencente ao Município de Brejo das Almas ou Francisco Sá, ao norte de Minas Gerais, onde nascera. Nenhuma oportunidade de estudos tivera. Mariana Peres tinha as mãozinhas calejadas pela lide pesada na lavoura de onde tirava o sustento próprio e de sua prole constituída com Juca Peres composta de oito boquinhas nervosas.

Juca, caboclo forte e destemido, pau pra toda obra, sempre pronto a ir à luta em busca de dias melhores agora estava desmotivado e já não se dedicava ao trabalho e a família com a mesma intensidade de antes. Autoestimas pífias aproximavam aquele brejeiro da inércia total. De repente ele que era um batalhador incansável começou a encostar o corpo. Foi em uma de suas muitas idas ao centro de Francisco Sá que aquela mudança inesperada se apoderou dele. Agora, levantava-se de manhã e ao invés de ir para a roça, já com o mato a invadir as plantações, o fazia pelos caminhos dos botecos brejeiros, ou especificamente no humilde, mas sempre badalado “pé na cova” aonde se enturmava com outros desocupados bebuns. Lá ele passava todo o dia lamentando a sina e degustando as “detonam fígado” de então. Ali ele marcava o ponto. Era, por mais incrível que pareça, naquele paraíso ás avessa que ele encontrava o sossego almejado. 

Não adianta buscar no campo da psicologia uma explicação lógica e racional que permita definir com clareza necessária o que se passa na mente humana. Tampouco, nem mesmo Sigmund, conseguiu entender os motivos capazes de arrebatar alguém de uma vida simples e pacata, mas digna e cheia de sonhos e perspectivas, atirando-o ao mais triste e tenebroso atoleiro de dúvidas e incertezas. Ocorre que o nosso cérebro é habitado por vários mundos, sendo quase todos eles impenetráveis. Pois é. Imaginemos então que as ideias de nosso amigo e conterrâneo Juca Peres, de Lagoinha, estavam uma verdadeira quiçaça assim como na quiçaça estavam suas roças que reclamavam sua presença, pois há muito tempo não viam o fio da enxada, nem ouviam o seu tilintar contra as pedras na defesa das viçosas floradas sem as quais vargem alguma vingaria, comprometendo, assim, quaisquer quesitos relacionados à colheita e fartura. Juca havia mergulhado de cabeça na bebida e ociosidade e agora não conseguia sair do marasmo que tornou sua existência. Aliás, na verdade, não saia por que nenhuma força de vontade tinha. Entregou-se inteiramente ao vicio e agora via escapar por entre os dedos eventuais oportunidades que a vida, porventura, lhe havia reservado. Não há, no modesto raciocínio deste escriba, nada que antes tenha sido arquitetado por qualquer plano, impassível aos nossos próprios desejos de mudar ou transformar. A vontade que nos impulsiona a seguir adiante é a mesma que nos leva a mudar aquilo que está à nossa volta, adequando-o ao nosso “modus vivendi”. Mais Juca não queria sair do lamaçal. Fazer o que?

Por conta destes motivos vemos agora Mariana lamentando a sorte que ela não escolheu. Estava, aquele divino ser, entre a cruz e a caldeirinha. Mas ela tinha de fazer alguma coisa. E fez.

Ao retornar certo dia de mais uma bebedeira Juca encontrou a casa vazia. Mariana foi embora com as crianças. Mudou-se para Grão Mogol distante aproximadamente setenta e seis quilômetros do Brejo. Juca até que a procurou durante alguns dias, mas depois desistiu de vez. Ai foi que a coisa entornou mesmo. Juca afundava cada vez mais na bebida pela qual trocou seu Sitio com todas as roças e algumas cabeças de gado. Depois de beber tudo que tinha tornou-se indigente. Morador de rua. Elegeu como seu “point” a escada, de apenas três degraus, da antiga Igreja de São Gonçalo, no centro do Brejo. A todos quantos ali transitavam mendigava uma moeda para, segundo dizia, comprar um pão para matar a fome. 

Compadecido do deplorável estado de Juca, certa ocasião o grande Feliciano Oliveira, cujos pais eram donos de fazendas na região, convidou-o para colaborar com os mesmos nas tarefas diárias da fazenda e em troca receberia um soldo a cada fim de mês.

Quem de longe observasse veria, por certo, o segundo personagem desta verídica história ocorrida no Brejo das Almas no inicio da década de 1960, se esvaindo em lágrimas, procurando, improficuamente, lá no fundo de seu limitado vocabulário palavras de gratidão àquela mão salvadora.  No dia seguinte Juca amanhecia na fazenda dos pais de Feliciano, dedicando-lhes toda a sua longa existência no árduo trabalho não mais voltando ao vicio da bebida. Foi eternamente grato a Feliciano a quem jamais decepcionou.

Enquanto isso, em Grão Mogol, Mariana refazia sua vida. Contraiu novas núpcias e a prole só fez aumentar. Com quarenta anos era mãe de doze filhos. Quase todos, exceto um, Djalma, o mais velho, viviam com ela. Firmino Ferreira, seu atual esposo era um sujeito de posses e não deixava que nada faltasse a Mariana e aos meninos. Mariana estava muito feliz. Pudera, ela não se acomodou. Correu atrás da própria felicidade e agora em idade madura a alcançava. Que bom. Finalmente, depois de vários trancos, a vida agora lhe sorria.

Será?

Residiam na Rua Alfredo Colares no Centro de Grão Mogol. Manhã de uma primavera de pouco verde. Era outubro de 1961. Saudosa de sua Lagoinha, lá estava ela a visitar parentes. De lá se dirigiu ao velho Centro do Brejo das Almas.  Às quinze horas encontramos aqueles delicados pezinhos, antes rachados, a palmilharem as ruas adjacentes empoeiradas. Passou em frente à Igreja Matriz e continuou sua caminhada que, no entanto, foi interrompida abruptamente. Ao chegar diante da Igreja de São Gonçalo, ao fixar seu olhar em algo, na realidade, um farrapo em forma de gente que se encontrava estirado sobre o último degrau do solo sagrado, atônita, não conseguia acreditar no que via. Por alguns instantes permaneceu estática. Teimava em não aceitar o que o destino cruel lhe reservara. Prostrado ali, à beira de um coma alcoólico, no mesmíssimo lugar onde antes, num passado distante, se encontrava o pai Juca, lá estava seu filho mais velho Djalma. Todas as tentativas empreendidas por aquela mãe desesperada resultaram-se infrutíferas, pois desta vez o maldito vicio conseguiu vencer, ceifando, três meses depois, a vida do jovem Djalma.

Carma? Coincidência? Premeditação? Estava escrito? E, nesse caso, como ficaria a irremovível vontade de mudar as coisas da qual falei logo atrás?

Uai, sô, quantas perguntas difíceis de responder! Se nem Sigmund as responderia, por que eu? Por via das dúvidas... Bem, não vou entrar nessa... Prefiro não ter opinião formada a esse respeito... Faço meus os seus pensamentos, comentários e interpretações, mesmo não sabendo quais são... Caititu fora de manada é papo pra onça.

É...

Por vezes, quando não conseguimos identificar de pronto à origem de certas provas que a vida nos impõe, o melhor mesmo é aceita-las, sem questionamentos.

Um forte abraço, brejeiros. Até mês que vem! 

E tenho dito!

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, MG.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

CENAS BREJEIRAS 6 – ANA LUCÍLIA DO TABUAL



CENAS BREJEIRAS 6 – ANA LUCÍLIA DO TABUAL

*Enoque Alves Rodrigues

Ana Lucília. Era esse o nome de minha primeira professora no curso primário lá no povoado de São Geraldo.

Ela era natural de Tabual, lugarejo pertencente ao Município de Brejo das Almas ou Francisco Sá, ao norte de Minas Gerais. Filha de Joaquim Silva e de dona Maria Garcia, foi designada pela Prefeitura do Brejo para lecionar na pequena São Geraldo, cuja escola tinha minha mãe como diretora.

Uma vez em São Geraldo, Ana Lucília, ficava hospedada em casa de dona Dazinha, também professora, esposa de seu Lau, açougueiro.

De 1959 a 1960 Ana Lucília foi minha professora e por que não dizer também, a diva que povoava o meu ilimitado mundo de fantasias, fomentando-o com sonhos bons mais irrealizáveis. “Sweet memories.”. 

Naquele tempo de saudosa lembrança, Ana Lucília não possuía mais que 17 anos. No entanto, inobstante tratar-se apenas de uma adolescente, todos nós em sinal de respeito e reverência natural para caracterizar a posição hierárquica que ela mantinha sobre nós, seus pupilos, a tratávamos por “dona”, numa época abençoada onde o professor era tido como um segundo pai ou uma segunda mãe, pois os cupins do desequilíbrio, indisciplina e desamor ainda não haviam corroído as bases sólidas da sagrada família como ocorre nos dias atuais, quando não mais se mantém o menor respeito por aqueles que nos ensinam as primeiras letras assim como os primeiros passos pelos caminhos da vida.

Em meus tempos de infante escolar, que não foram, de forma alguma, os tempos da palmatória, a única referência á travessura cometida por um aluno na sala de aula era surrealista, pois servia apenas como elemento figurativo para ilustrar uma das estrofes da música, a meu ver, de péssimo gosto, “capeta em forma de guri,”, cantada pelos Incríveis. Bem, para cantar aquilo, tinham que ser mesmo “incríveis”: “crescendo o menino, pra escola entrou, de cara feia logo a professora olhou”. No meio da aula, num teco fatal, mandou um coleguinha logo pro Hospital... Conheci um capeta em forma de guri...”. Lembram-se?

Antes de sentarmos para fazermos as nossas lições, guiados pelas suaves mãos da pequena grande mestra, tínhamos de rezar o Pai Nosso e cantar o hino nacional, assim como também fazíamos em nossa saída. Éramos orientados a sermos solidários e a tratarmos uns aos outros com respeito e cordialidade. Recebíamos ali, entremeados com o bê-á-bá e tabuada, noções de religião, amor a Deus, ao nosso semelhante e à Pátria, embasamentos singelos, mas fundamentais que nos preparavam para sermos bons cidadãos no futuro. A minha primeira escola só tinha uma porta que era a mesma de entrada e saída. Não tinha carteira ou banco escolar que eram improvisados, mas, sem quaisquer jactâncias, seria até covardia de minha parte comparar o aprendizado que recebi ali com o de outras escolas que frequentei mundo á fora. Frondosas em seus interiores e frontispícios e imponentes em seus currículos, mas nenhuma tão rica e pródiga em ensinamentos como foi minha primeira escolinha. Pois é.

E o que vemos hoje? Vamos analisar?

Lares desestruturados com pais truculentos, xucros e negligentes que brindam seus filhos, desajustados desde o nascimento, com péssimos e abomináveis exemplos. No bojo paternalista de um genérico de governo quinto-mundista veio ás creches e várias ações sociais que, dado ao baixo nível sociocultural do Brasileiro, tornaram-se fomentadoras da preguiça e paternidade irresponsável. É muito fácil e gostoso fazer filhos para o estado, ou seja, para nós, contribuintes responsáveis criarmos. Eles deixam, na maioria das vezes, toda a educação infantil, inclusive aquela da qual eles, os pais, não deveriam jamais se abdicar por lhes serem atribuições intransferíveis por dever constitucional, por conta dos professores que no final, ainda são cobrados pelos pais inescrupulosos e insolentes, quando algo não sai muito bem para o seu capetinha.  O termo “não sair muito bem” aqui utilizado significa dizer, quando os professores em pleno exercício de suas prerrogativas na cruel arte de ensinar, acabam por contrariar as vontades do capetinha birrento, entojado e mal criado. Há casos extremos aqui em São Paulo que certamente não se diferem das demais regiões Brasileiras, aonde alunos, capetinhas e capetões, chegam mesmo a agredir fisicamente seus professores sob o beneplácito dos pais bundões, e de um risível código penal bichado, ultrapassado desde o seu nascedouro em 1940, desprovido de efeitos reais coercitivos que beiram o ridículo e que nenhuma autoridade exerce sobre eles. É o fim do mundo. Definitivamente eu não seria um bom professor.  Talvez seja por isso que Deus não me deu esse dom apesar de vir de família onde todos exercem com muita honra, orgulho, galhardia e dignidade esta nobre arte.

Vamos sair dessa zona de turbulência que muito me aborrece e voltemos á docilidade de dona Ana Lucília, de Tabual, personagem de minha crônica deste mês.

Geralmente, conforme deixei entender nas entrelinhas, naquela idade todos nós, garotos, estaríamos preocupados em identificar outro atributo: a beleza física, por exemplo. Dona Ana Lucília era demasiado linda, é verdade, mais a pujança de sua beleza intelectual conseguia sobrepor á lindeza material e isso nos prendia a todos. Quando abria a boca para falar, nossas atenções eram, imediatamente, arrebatadas para a sua graciosa e eloquente didática. Educada, paciente, cordial, enérgica, sorridente, determinada e assertiva. Eram predicados inerentes àquele divino ser, deusa de rara sabedoria e beleza.

 Antes de chegarem às férias escolares daquele fim de ano, todos nós, seus pequeninos alunos fomos tomados por sensações cujas causas desconhecíamos. Flutuávamos entre o bom e o ruim. Nos intervalos recreativos conversávamos entre nós ansiosos por encontrar no outro a explicação que aguçava nossas curiosidades rumo ao desconhecido. Por mais que tentássemos, não conseguíamos imaginar o que estaria por acontecer. A merenda à base de triguilha (trigo in natura) com leite em pó parecia-nos insossa. As palavras doces de dona Ana Lucília, também pareciam não serem mais as mesmas. Soavam agora meio que sem sentido. Criança é assim. Um oásis de curiosidade, mas nenhuma criança foi feita para conviver com curiosidade. Nós não éramos diferentes. Algo estava por acontecer, disso tínhamos certeza. Uai, o que seria?.

Duas semanas antes das esperadas férias, a noticia começou a correr trazida que foi por dona Dazinha de seu Lau: dona Ana Lucília, a linda e inteligente professorinha não mais continuaria conosco no próximo ano. O seu saber e todas as suas demais virtudes intelectuais haviam atravessado as fronteiras limitadas da querida São Geraldo. Agora, o prefeitão do Brejo julgava importante designa-la para ir cuidar de outras mentes em formação preparando-as para o porvir. Por certo ele entendeu que nós lá em São Geraldo já havíamos atingido o estágio necessário aos desafios que a vida nos traria. Ela foi promovida e depois transferida para Porteirinha, a pedido do prefeitão de lá, de onde jamais tivemos noticias. Nos primeiros dias do seguinte ano letivo nos sentíamos meio que órfãos, mas depois “o furacão” do saber e ensinar de nome dona Florisbela Martins, (a quem dedico á flor animada que cintila e enfeita o introito desta minha crônica), obedecendo como a um cão de guarda, aos comandos da dona Nazir, preencheu, imediatamente, a altura, os espaços deixados por dona Ana Lucília. Dali é possível que não tenha saído nenhum grande vulto exponencial que pudesse revolucionar o podre mundo da politica, das belas artes ou do saber, ou quiçá, com alguma notoriedade relevante em outros patamares da vida. Mas de uma coisa estejam certos e convictos: De lá saíram cidadãos íntegros e cônscios de seus direitos e deveres sociais e acima de tudo, exemplares pais de família que sabem que a verdadeira educação e disciplina começam em casa e que a escola, com seus professores mal remunerados por um Governo hipócrita, inepto e capenga, preocupado apenas com suas avaliações pífias e tendenciosas, salas de aulas sucateadas e imundas, caindo aos pedaços, milagrosamente apenas as complementam.

Ou eu estou errado.

Desculpe-me, dona Ana Lucília, onde quer que a senhora esteja. Mas, neste finalzinho de minha crônica não me foi possível segurar a onda. Sóbrio, comedido e educadamente, claro, pois foi assim que minha santa mãezinha, a senhora e o mundo me ensinaram.

É...

Por vezes, necessário se faz cutucar o gigante que dorme deitado eternamente em berço esplêndido para ver se ele acorda para cuspir, uai.

E tenho dito!

*O autor nasceu em Brejo das Almas, Francisco Sá, MG.