CASOS DO BREJO IV – MARIA DE LURDES
*Enoque Alves Rodrigues
O período de
estiagens que atualmente assola grande parte do Brasil, inclusive São Paulo,
antes denominada, “terra da garoa”, remete-me aos longínquos tempos de minha
infância no Brejo das Almas, ou Francisco Sá. Quando, cansados de sonhar com a
negritude dos cúmulos que eram cada vez mais empurrados pelo vento para
localidades mais distantes, punham-nos a pensar, no quanto seríamos felizes, se
fossemos agraciados pela mãe “natura” com alguns pinguinhos de chuva. Ainda que
fosse apenas para sentirmos o cheirinho de relva molhada que por si só, era-nos
mais que suficiente para que cravássemos no chão a primeira enxadada dando
inicio a mais uma tenebrosa aventura que, já sabíamos todos, antecipadamente,
no que ia dar. É isso mesmo: no final, as sementes que lançávamos ao solo com
as quais deixávamos de matar a fome dos barrigudinhos eram devoradas, sem dó e
piedade pela “dona terra” que nada fizera por merecê-las. É a vida, meu nego,
que passava lenta e inexorável, por aquelas bandas sofridas.
Avançando um
pouco mais no tempo e no espaço, ainda sou capaz de me confrontar com cenas que
não faz muito tempo, integravam o cotidiano da gente brejeira, simples, ordeira
e pacata: as novenas e penitências aos santos protetores do sertanejo e da lavoura.
Poderia desfilar aqui neste
despretensioso espaço, que ocupo com prazer, sem receber um centavo em troca, vários
brejeiros que se destacaram na arte de “fazer chover”, ou, na arte de “encherem
os sacos dos santos”, que, lá de cima, na maioria das vezes, permaneciam
alheios ás súplicas e clamores. Eles nem tomavam conhecimento do nosso padecer.
Chuva que era bom mesmo, necas. Mas hoje me aterei apenas a um desses
personagens. Prende-se esta minha predileção, a sua quase contemporaneidade,
pois é possível que muitos dos que ainda habitam no Brejo das Almas o tenham conhecido,
ou, quiçá, até mesmo com ele, ou melhor, com ela, convivido.
Poderosa, voz possante e
determinada. Levantava-se de manhã depois de uma noite mal dormida povoada de
preocupações com a insensibilidade dos santos que não mandaram a chuva no dia
anterior, e já ia logo olhando para o céu. Se seus olhinhos vislumbrassem, em
algum ponto do infinito uma sombra de nuvem, ela retornava para o seu canto e
esperava um pouco mais para ver se a nuvem se aproximava. Quando isso não
acontecia, aquele ser maravilhoso, incontinenti, colocava sobre sua cabeça um
litro com água e saia batendo de porta em porta, em busca dos demais moradores
que tinham de sair de suas casas já com um litro com água na cabeça e eram
quase obrigados a acompanha-la em oração em mais uma novena que invariavelmente
terminava aos pés do Cristo Redentor, no morro da caixa d’agua. Lembram-se?
Seu nome? Maria de Lurdes. Sobrenome?
Nunca soube. Não obstante todo o Brejo conhecê-la como “Lú Doida”, vou me
abster por questões de princípios, do ato de empregar aqui este pejorativo
tratamento, até porque de “doida” mesmo, aquele divino ser não tinha nada.
Moravam na Vila Vieira, antiga
Lagoa, ali mesmo, onde o Brejo das Almas nasceu. Dali, eles, sempre com Lú à
frente, saiam em novena e penitência. À maneira que avançavam pelas ruas do
Brejo, aquela procissão ia aumentando. Depois, faziam uma pequena pausa no Largo
da Matriz de onde seguiam rumo ao morro da “caixa d’agua” onde o Cristo, com os
braços abertos para recebê-los, os aguardava com compaixão. Sob aquele olhar
piedoso e manso, os penitentes em prantos e preces puxados por Maria de Lurdes,
deixavam em seus pés, tristes lamentos e o mais importante, a certeza plena de
que a chuva viria, ainda que tardia. Depositavam, ali, todas as suas esperanças
em dias melhores, quando o sol, de preferência depois da chuva, brilharia para
todos.
Naquele ano a seca estava esturricando
o meu Brejo. Maçarico ligado 24 horas lá em cima. A impressão que se tinha era
que os santos de Maria de Lurdes haviam virado as costas para aquela
cidadezinha onde orgulhosamente nasci. O diabo é que quanto mais se rezava mais
as nuvens se afastavam. Barrigas roncavam qual tambor de couro de boi velho e
os caras “do alto” nem tchum.
Brejeiros atônitos não sabiam mais a que santo recorrer. Desesperançados, já
não queriam mais acompanhar Maria de Lurdes nas novenas. Ela que até então
gozava de grande credibilidade junto aos brejeiros na arte de representa-los
aos santos de sua devoção que sempre a atendiam, agora estava prestes a se
desmoralizar. Não. Ela não se desmoralizaria, jamais. Sempre fora fiel. Faria o
possível e até mesmo o impossível para dar uma resposta àquela gente.
Numa noite do mês de agosto,
sozinha, subiu até o Cristo. Falariam “cara a cara”. O que conversaram nunca se
soube. Segredo de confessionário não se revela a ninguém. O certo é que Maria
desceu do morro, renovada. No dia seguinte com sua vasilha d’agua à cabeça foi,
uma vez mais, de porta em porta. Batia, e ás vezes saía até quatro moradores
com litros de água na cabeça. Foi a maior mobilização popular de penitentes que
o Brejo das Almas já teve.
Passearam pelas ruas do Brejo e
depois, como sempre faziam, dirigiram-se para o Cristo no morro da caixa
d’agua. Ele estava lá como sempre com seu olhar benevolente. Céu límpido e
azulado. Prostraram-se. Rezaram vários terços e Ave Marias. Derramaram aos pés
magnânimos daquela estátua, a água barrenta que traziam em seus humildes
vasilhames. Maria, em prantos, mirava o rosto do Cristo e murmurava palavras
desconexas e incompreensíveis à pobre mente humana. Uma vez mais, somente ela e
Ele sabiam o que disseram, por que Ele a atendeu. Não se falaram em português.
Tampouco em aramaico. Falaram e se entenderam com a voz do coração. O linguajar
“cifrado” que ambos utilizaram naquela “estranha comunicação”, Brejeiros, agora,
alegres e felizes, só entenderiam no dia
seguinte, que depois de um ano seco, amanhecia, finalmente, com chuvas
torrenciais que se prolongaram durante toda aquela estação que foi a de maior
fartura que o meu Brejo querido já viu.
É...
Por vezes, ou quase sempre, a fé
que remove montanhas, acredite, é a mesma que faz chover.
E tenho dito!
*O autor nasceu no Brejo das
Almas. Atua há mais de 41 anos na área de Engenharia. Publicou o livro “Liderança Conquistada”. É Colunista,
Palestrante Motivacional, Historiador e Divulgador voluntário de Francisco Sá,
Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.
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