sábado, 29 de outubro de 2011

GENTE DO BREJO - GERALDO MAZZAROPI

GENTE DO BREJO  -  GERALDO MAZZAROPI

Enoque Alves Rodrigues

Durante muitos anos, quando a precariedade das comunicações imperava nas pequenas cidades do norte de Minas, a Prefeitura Municipal de Francisco Sá, ou melhor, do querido Brejo das Almas,  tomou a iniciativa de criar seu próprio sistema de som. Uma velha Kombi caindo aos pedaços, de “cor daltônica”, sim, por que Cristão algum conseguia distinguir qual era a cor da danada, de tão suja que se apresentava, era utilizada nesse serviço. Alguns, quando chovia, arriscavam em afirmar meio, mineiramente, que a cor da Kombi era branca, devido pingos de chuva mais afoitos terem conseguido remover o encardido que existia sobre o teto externo. Outros, numa ilusão de ótica iminente, talvez sugestionados pela predominância da cor da terra Brejeira,  teimavam em dizer que a cor da Kombi era vermelha. Alguns mais inadvertidos ou com algumas doses de cana na cuca juravam que a cor daquela Kombi era amarela, lilás, azul, verde, etc. Na verdade, nenhum Brejeiro em pleno gozo de suas faculdades mentais possuía assertividades suficientes para tais afirmações. Instados a definir com exatidão aquela cor, apropriavam-se de palavras desconexas de nosso peculiar mineirismo, que é quando falamos tudo sem dizermos nada, a fim de não penhorarmos nossa palavra com afirmações das quais não temos a convicção plena, e mandavam:

- “Noquinho, posso lhe afirmar com toda certeza do mundo que a cor desta Kombi da Prefeitura é vermelha, mas olhando melhor, me parece que é azul, cinza, roxa, rosa, sei lá...”

- “Uai, sô, mas assim você não está afirmando nada. Qual é a cor da Kombi, afinal?” Bem... Deixa pra lá...

Completando a parafernália da qual vinha falando, instalaram-se um potente alto falante sobre o teto da Kombi e, dentro da dita cuja, um locutor com voz semelhante a do grande ícone do Cine Comédia Brasileiro, o saudoso  Amácio Mazzaropi, nascido aqui em São Paulo, no bairro do Brás, mas que passou quase toda a sua vida na Cidade de Taubaté, rasgava o verbo. Tendo como fundo musical a toada melosa e porque não dizer machista denominada “empreitada perigosa” (Quem tem mulher que namora, quem tem burro empacador. Quem tem a roça no mato,  me chama que jeito eu dou... Eu tiro a roça do mato e sua lavoura melhora. E o burro empacador eu corto ele na espora e a mulher namoradeira passo o couro e mando embora...), composta pelo quase conterrâneo, o Montesclarense Tião Carreiro, que formava dupla com Pardinho, ouviam-se: “Alô brejeiros, aqui vos fala Geraldo Mazzaropi. Por iniciativa do Excelentíssimo Senhor Prefeito de Francisco Sá, tenho a honra de convidar você e digníssima família,  para os festejos comemorativos pelo aniversário de nossa bem administrada cidade...”

Geraldinho Mazzaropi, assim o chamávamos, além da entonação da voz que, como já disse, que era idêntica a do velho “Mazza”, tinha também todos os jeitos e trejeitos do Jeca de Taubaté: nádegas propositadamente estufadas para trás, pernas lânguidas e andar meio ziguezagueante como se fosse um frango d’água.  Os Brejeirinhos, ao vê-lo, logo se acercavam dele, que sempre solicito, lhes dizia: “qual é a historinha de Jeca que vocês querem ouvir hoje?”

-  Sabem aonde o Jeca pegou aquele peixão?

-  Nãããããão!

- Perguntem pro homem do Emulsão. 

- Ahhhhh!

Referia-se ao Emulsão Scott em cuja  embalagem havia um homem com um peixe às costas.

 “Domingo ás 20 horas tem espetáculo no majestoso Cine e Teatro Mineiro... Não percam o duelo do século: O grandalhão “João Váine” (não conseguia pronunciar John Wayne) vai enfrentar o sela de prata “Juliano Gema” (Giuliano Gemma). Vai ser tiro para todos os lados. Vamos lá para ver quem vai vencer. Brejeiros, façam suas apostas...”

Pronto, a sorte estava lançada. Nas escolas, bares e alamedas, Brejalminos confabulavam-se e no final deixavam seus palpites sobre quem supunham seria o vencedor do duelo. Mal conseguíamos esperar pelo domingo. Cheios de entusiasmos, acorríamos todos ao velho Cine Mineiro. Sentávamos quase sempre nas primeiras fileiras para não perdermos nenhum lance. Expectativa... Adrenalina a mil... Atônitos e eufóricos... Espera difícil. O filme não começava. Murmúrio geral. Brejeiros inquietos:

- Uai, sô, mas cadê esse trem de filme que não começa?

- Sei lá... Uai... Espere um pouco... Aquele que está lá atrás com um carretel de filme nas mãos não é o Geraldinho Mazzaropi?

- Ih... É ele mesmo! 

- Deu crepe... O tão anunciado e esperado filme enroscou todo antes mesmo de ter começado. Enquanto isso, Geraldinho, que era um “faz de tudo”, agora estava com um dos lados do carretel em uma das mãos, enquanto com o dedo  puxava a ponta da fita cinematográfica, na tentativa de endireita-la dentro do carretel para que não houvesse cortes ou comprometimento da imagem. Mesmo com todo esse esforço, tais ações resultavam-se,  quase sempre, ineficazes, pois do começo ao fim do filme, pouca coisa se aproveitava. Cortes longos e intermitentes muitas vezes, de cenas inteiras, impediam que até mesmo as mais férteis das imaginações concatenassem idéias ou tivessem a mais simples e mísera noção de como seria realmente o enredo do filme e seu final. Entretanto, frustrações “tenebrosas” ainda estavam por vir.

Após passarmos longas horas assentados, com os “quartos” doloridos e a bexiga sobrecarregada reclamando pelo xixizinho básico e imediato, eis que surge, afinal, para a alegria de todos e felicidade geral da nação brejeira, o tão esperado fim do filme e o duelo “de titãs”, finalmente ia começar.

De um lado, Wayne com seu inseparável cigarrão em um dos cantos da boca e com duas tremendas pistolas, uma em cada coldre. Do outro lado, Gemma, equipado igualzinho a Wayne. Ao lado de cada um deles, suas montarias. Ao fundo, vários casarões de madeira com alpendres, onde moçoilas se achavam debruçadas para assistirem o espetáculo de horror. Em um barzinho de araque, vários bebuns observam. Em frente à Igrejinha, também de araque, o Padre e o Sacristão faziam o sinal da cruz. Lá no front os dois homens fitam-se com ódio nos olhos. Dão algumas voltas como se estivessem estudando um ao outro. Olhar tenso. Wayne, de tanta raiva, treme os músculos da face e cerra os dentes, rompendo em dois o cigarrão, cujo pedaço, vai ao chão. Gemma, também treme todo, da cabeça aos pés. Acometido de mortal ojeriza pelo desafeto Wayne, começa a piscar um dos olhos. Não entendíamos nada. Perdemos as principais cenas do filme. Meu Deus, quais foram os motivos que levaram aqueles dois homens ao ápice da ignorância humana? Porque se odiavam tanto?

Numa sintonia de fazer inveja a perfeição da Mãe Natureza, sacaram de uma só vez suas respectivas pistolas e abriram fogo um contra o outro. Baixadas a fumaça das saraivadas de tiros e a poeira levantada pelo tropel das montarias, agora, jaziam, ali, inertes, dois corpos estendidos no chão. Morreram-se os dois.

Para nossa decepção, pelo menos daquela vez, ou enquanto os dedinhos ágeis de Geraldinho Mazzaropi tivessem forças para seguir rebobinando aquela “maldita” fita, não houve ganhadores. Todos perderam. Inclusive nós.

Deu empate!

Enoque Alves Rodrigues, brejeiro de nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia, é Escritor com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil. Visitem meu blog: Pra variar, é sobre Francisco Sá: http://enoquerodrigues-earodrigues.blogspot.com/  http://www.facebook.com/profile.php?v=info&edit_info=all&ref=nur

sábado, 15 de outubro de 2011

FRUSTRAÇÕES NATURAIS – FRANCELINO DO AREAL

FRUSTRAÇÕES NATURAIS – FRANCELINO DO AREAL

Enoque Alves Rodrigues

Alguns mais antigos devem ter ouvido falar ou talvez conhecido o meu personagem da crônica de hoje. Francelino do Areal, cujo “sobrenome” vinha da denominação da Fazenda Areal, de sua propriedade que ficava no Município de Francisco Sá. Ali Francelino cultivava alho, arroz, feijão, algodão, milho, e outras culturas. Criava também gados de corte, que vendia para um hoje inexistente Frigorífico que ficava no bairro Malhada Santos Reis, em Montes Claros. Festeiro contumaz, Francelino era devoto de Nossa Senhora e de todos os santos, principalmente de São Gonçalo, Padroeiro do lugar. Todas as festas do Brejo das Almas de então, tinham-no como seu principal idealizador. Já na véspera ouviam-se ao longe os foguetórios. As bandeiras dos santos saiam do Largo da Igreja Matriz sempre com Francelino a frente rezando “um bendito é o fruto entre as mulheres” e pedindo para que os marmanjos devotos abrissem alas para que o Santo pudesse passar. “Sai da frente bando de bebuns que o Santo precisa passar”, dizia. Aos renitentes que insistiam em não abrir espaço, empurravam com uma velha bengala. Depois de dar toda uma volta em torno do velho centro, paravam, finalmente, em frente a Igrejinha de São Gonçalo e lá ficavam discursando. Após destacar todas as virtudes do Santo homenageado, iam todos encher a cara nos bares.

Sujeito de palavra, forte e destemido que veio do nada, fizera, graças ao seu elevado espírito de luta, alguma fortuna, que, no entanto, devido as muitas desavenças familiares, numa das quais chegou a levar uma facada na barriga que deixou seus intestinos a mostra, começou a virar pó. Desgostoso, vendeu a Fazenda Areal com tudo que tinha e rumou-se com a família para Grão Mogol, onde  comprou outra fazenda esta bem pequenina, de nome “Três Capões” de onde não mais se teve noticias.

Não me lembro ter feito antes alguma alusão ao grande Francelino. Caboclo brejeiro que dentro de sua simplicidade cultivava hábitos muito salutares, quando se tratava de se obter bons resultados. Empreendedor convicto, daqueles que passam ás 24 horas do dia pensando em como se ganhar mais dinheiro, Francelino era, à sua maneira, um “o Midas do brejo”. Várias eram as abrangências de seus empreendimentos que alcançavam muitos ramos de atividades. Quase analfabeto, mal escrevia, punha nos bolsos muitos doutores das letras que queimavam pestanas e se contorciam todos para ganharem alguns parcos vinténs.

Ligeiro e astuto nos negócios. Mas cordial e generoso com os menos favorecidos. Cauteloso ao extremo, quando algum caboclo se dirigia a ele no sentido de lhe pedir algo fiado ou emprestado, ouvia sempre a mesma cantilena: “num vô lhe fiar ou emprestá nada. Vorte prá sua casa e veja com a Creuza o que ocêis necessita. Eu lhe darei de graça. Se eu te emprestá, ocê num vai ter cuma me pagar. Ocê é meu amigo e ai a nossa amizade vai pro brejo que num é das armas”.

Era um motivador nato. Do alto de sua rústica eloqüência salientava sempre que todos deviam ser como ele que nascera pobre e hoje tinha  mais que o suficiente para viver. Que assim como ele, quando se luta em busca de objetivos, eles acabam “dando as caras”. Contava aos roceiros embrenhados nos eitos de suas roças, várias anedotas que beiravam o inverossímil. Era dado à pesca. Naqueles tempos, hoje tão longínquos, os rios, Verde, São Domingos, Gorutuba, Quem- Quem e até mesmo alguns córregos meio abusados, eram pródigos na oferta de peixes. Havia grandes e importantes espécies de peixes nestes rios, enquanto que nos “córregos abusados” havia desde a traíra até o bagre, que, alias, davam um bom caldo.

No entanto especialmente naquele ano as coisas não estavam muito boas para Francelino. O ano foi de pouca chuva e a lavoura, quase todas as culturas, principalmente as de arroz, feijão e milho, perderam-se no chão de deserto. Corria-se a enxada no chão seco e era só poeira vermelha que levantava. Era de chorar. Francelino, no entanto, não se abalava, ou pelo menos nada demonstrava. Por outro lado, metera-se na Política onde patrocinava amigos correligionários aos pleitos à Prefeitura, Câmara de Vereadores de Francisco Sá e outras cidadezinhas. Mas para tudo há um limite e o limite da tranqüilidade de Francelino chegou exatamente quando ele enviou uma grande manada de gado para determinado frigorífico, em Montes Claros. O negocio havia sido fechado por ele com o dono daquele frigorífico, de tradicional família da velha MOC, há muito tempo.

Lá chegando, com toda a boiada em frente ao frigorífico, o capataz de Francelino foi informado pelo dono do frigorífico, conhecedor dos costumes do caboclo, que teria que voltar com a boiada para Francisco Sá porque seu frigorífico não estava vendendo nada. Que a “crise o estava devorando aos poucos”. E arrematava: “Esta maldita crise não está deixando mais nem um pouquinho de dinheiro para o pobre comprar carne”.

Como naquela época telefone era artigo de luxo até mesmo para certos ricos, o capataz sem saber o que fazer, mas receoso de volver com a boiada sem um prévio aviso ao seu patrão, permaneceu em Montes Claros, designando um peão de sua comitiva para ser o portador daquela triste mensagem. Depois de uma eternidade, o brejeiro finalmente chegou a Fazenda do Areal. Do alpendre do casarão Francelino o avistou ao longe. Logo deduziu que aquele retorno extemporâneo e solitário não lhe traria bons fluidos. Que havia algo de podre no reino da Dinamarca. Que a porca havia torcido o rabo e que não tinha quem o endireitasse. Ou que alguém havia roído a corda e agora cabia a ele consertar.

Ainda no alpendre, já deu um grito:

- “Mateus, Mateus, é ocê?”

- “É ieu, sim, meu pratão!”, respondeu-lhe o pobre vaqueiro, assustado.

- “E por que diabos ocê tá aqui só? Adonde tá Juca com o dinheiro dos boi?”

- “Antonces, meu pratão, é sobre isso qui eu quero falá e mecê num me deja. O cabra lá do figurifi de Monte Craro falô pro Juca qui num tem fulô de abroba (notas de 1000 cruzeiros da época) prá pagá o gado de mecê, apusquê uma tar de crise teve por lá e cumeu todo o frigurifi dele. Que o probe num tem dinhero pra comprá carne apusquê a mardita crise cumeu tamêm o dinhero. Seno assim, meu pratão, é mió qui nóis num vai lá. É muito pirigoso. Eu insisti cum Juca prá num ficá lá e trazê o gado de vorta. Mais ele é temoso Cuma jumento e me obrigô a vim falá cum mecê.”

Educado, comedido e resignado, Francelino entendeu de pronto o que havia acontecido. Calmamente esperou que o peão finalizasse sua fala. Chamou-o para dentro de casa. Ofereceu-lhe água e comida e no final lhe disse:

- “Bem, ocê já feiz a sua parte. Já foi lá e vortô e a crise nun te enguliu. Mais eu tenho lá os meus gado e os meus peão. Vou lá resgatá eles. Fica ai com a Edna, minha muié rezano prá qui eu ainda encontre eles lá Vico. Tumara que a crise nun tenha cumido eles tamêm!”

Pegou seu jeep e rumou-se à caminho de Montes Claros com a consciência plena de que ali chegando teria que renegociar ainda que em suaves prestações a sua boiada com o dono do frigorífico. Que as marés dos mares de Minas realmente não estavam para peixes e que caititu fora de manada é papo pra onça. Ele tinha que entender. Precisava aderir. Tinha que se recompor. A crise quando vem não poupa ninguém. Engole tudo e ai, meu nêgo, salve-se quem puder.

É...

Por vezes, ou quase sempre, quando a coisa está feia é melhor deixar como está para ver depois como é que fica.

Enoque Alves Rodrigues, brejeiro de nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia, é Escritor com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil. Visitem meu blog: Pra variar, é sobre Francisco Sá: http://enoquerodrigues-earodrigues.blogspot.com/  http://www.facebook.com/profile.php?v=info&edit_info=all&ref=nur

sábado, 24 de setembro de 2011

A FÊNIX BREJEIRA – MANEZIN VAQUEIRO


A FÊNIX BREJEIRA – MANEZIN VAQUEIRO

Enoque Alves Rodrigues


Na década de 1960, mesmo com a crise, as visitas aos principais pontos turísticos mais importantes do Velho Brejo das Almas, ou Francisco Sá, “beldade do norte de Minas”, fervilhavam-se. Uma das atrações turísticas mais visitadas era a antiga e histórica Lagoa das Pedras. Para lá, convergiam-se multidões, vindas de quase todas as localidades e se aportavam às suas margens, onde passavam dias e noites se divertindo com a gama infinita de lazer que ali existia.
Águas claras e cristalinas onde se via, nitidamente, várias espécies de peixes, hoje inexistentes, nadando ao fundo. Ovinos, bovinos, caprinos, suínos e outras criaturas do mundo animal domesticado, misturavam-se a outros animais, do mundo racional civilizado, cada qual consumindo, engolindo inteiro, mastigando e ruminando, de acordo com o que determinam suas respectivas cadeias alimentares.
Canoas a remo, barquinhos com e sem motores, transportavam os homens “de coragem” até o meio da lagoa, cuja profundidade, diziam não ter fim. As mulheres com suas crianças de colo palestravam sentadas à beira da Lagoa com seus pezinhos delicados levemente mergulhados na água rasa, enquanto que seus pimpolhos, mais crescidinhos, cavalgavam sobre pôneis nativos ou brincavam de tourear algum bezerrinho recentemente desmamado. Os mais traquinas brincavam de caçar com bodoque, juritis, pombas amargosas, codornas, rolinhas e outras avezinhas silvestres.
Famílias abastadas de Montes Claros, Grão Mogol, Salinas e até mesmo de “Belzonte”, Capital das Alterosas, faziam dali seu habitat natural. Muitas chegavam ao ponto de fixarem suas residências naquelas imediações e de lá não arredavam pé de forma alguma. Usufruíam dos confortos que a grana lhes proporcionava naquele Rincão Paraiso, enquanto que muitos de nós, Brejeiros autênticos, nascidos nos arrabaldes ou com os dois pés cravados num brejo qualquer de lá, apenas nos conformávamos em  vê-los se divertirem. Era tudo que nos restava. Naqueles tempos assim como é hoje, amanhã e para todo o sempre, amém, a nata do leite jamais se deixou misturar com o soro. O máximo que nós, soros, conseguíamos, era como já disse, observar, discretamente, a nata em sua diversão.
- Uai, e a quem pertencia a Lagoa das Pedras?
- A nós, Brejeiros, uai!
Também íamos lá, claro. Mas somente quando não se achavam os ricos. Sim, porque eles nos olhavam com desdém. Agiam em relação a nós que não fruíamos de seus “status quo” como se fossemos Cidadãos de segunda classe. Desprezavam-nos em nosso próprio território. Nada podíamos fazer. Eles aportavam riquezas ao erário de Francisco Sá. Eles faziam a máquina pesada da Administração Municipal girar, ao passo que nós, povinhos simples, apenas produzíamos algumas migalhas que em nada impactavam de relevante.
É possível que muitos dos meus conterrâneos que neste momento se encontram lendo as bestagens que escreve esse reles genérico de escritor, se lembrem, com saudades daquelas tardes e manhãs domingueiras à beira da Lagoa das Pedras.
Manezin Vaqueiro era um desses pobres brejeiros, sem eira nem beira, que se contentava apenas em ver a nata bem sucedida se divertir. Timidez própria dos que “não souberam nascer”, vivia embrenhado nas matas adjacentes a Lagoa das Pedras, observando, sorrateiro, a pompa de seus desiguais. Os homens remavam enquanto sorriam deixando à mostra o ouro que cobria seus dentes bem tratados, que reluziam sob os reflexos lampejantes do Astro Rei naquela manhã primaveril.
De repente, grita uma voz de mulher:
- “Socorro. O Marquinho está se afogando... Tirem-no da água, pelo amor de Deus!” Á maneira que a mulher não obtinha resposta ao seu pedido de socorro, a criança se afundava e eram mais fortes e desesperadores os seus gritos de aflição.
Ao notar que nenhum daqueles “bem nascidos, bundas moles” se manifestavam, Manezin Vaqueiro  perdeu a timidez. Num gesto de bravura, coragem e destemor, imbuído do mais puro e elevado sentimento de amor ao próximo e solidariedade, independente de condição social, com habilidade e destreza peculiares a todos nós que nascemos na barranca do rio, jogou-se, de corpo e alma, nesta altura mais alma que corpo, nas águas profundas da Lagoa, só saindo de lá, minutos depois, com a criança quase desfalecida em seus frágeis braços. Foi aplaudido por todos que ali estavam pela sua coragem. Mas, matuto que é matuto, principalmente o brejeiro, não se deixa influenciar por endeusamentos fúteis.
Será?
À sua maneira, frente ao mulherio, carimbou, ali mesmo, a sua lição de moral, passando um tremendo sabão nos “bundas moles” que não tiveram coragem de lançarem-se ao rio.
- “Ocêis é uns riquin de merda qui num tem corage, porra niúma e qui borra as bota a cada peido... É muito fáci ficá ai si divertindo inquanto o minino afoga... De nada adianta ter esses barrigão cheio de cumida boa si nu curação de preda num tem nada. Ni um poquin de amô siqué... Eu divia era de cutucá ocêis cumia vara de tocagado prá vê se ocês se acorda... A cabeça docêis é cuma a cabeça de bagre, só tem b...”
Antes que Manezin completasse a frase, os “ricos bundas moles” corados de vergonha, no afã de sufocarem aquela descompostura matuta, na maior cara de pau, alçaram-no do chão e enquanto caminhavam com ele nos braços, gritavam, em uma só voz, a plenos pulmões, este refrão, aliás, próprio dos habitantes do Sudeste quando em aniversário.
- “E prá Manezin, nada?” Ao passo que outros gaiatos respondiam.
- “Tudo!”
- “E, então, como é que é?”
- “É!”
- É pique... É pique... É pique... É pique... É pique. É hora... É hora... É hora... É hora... É hora.  Ra... Tim... Bum... Manezin... Manezin... Manezin... Manezin.
Num misto de frustração pelo “abafo” de suas palavras agora inaudíveis aos ouvidos humanos, mas sentindo-se como se fosse a Fênix Brejeira que renascia das cinzas nos braços daqueles marmanjos vestidos do mais puro tergal, Manezim, agora, apenas sorria. Um sorriso amarelo e desdentado, é verdade, mas era um sorriso.
Não demorou muito para que os “riquin bundas moles” encontrassem o primeiro “infernin” mais próximo aonde “dispensaram aquela tralha”. Antes, no entanto, tiveram o cuidado de efetuar o pagamento antecipado de várias garrafas de “Chora Rita”. Ao saírem dali, deixaram ordens expressas e implacáveis à Margot, dona daquele fétido boteco de beira de estrada: “Segure esse tonto ai, Margot. Faça-o beber quantas garrafas de pinga forem necessárias. Não deixe que esse encosto vá à Lagoa encher o nosso saco. Não queremos que esse estorvo perturbe o nosso merecido sossego. Estamos cansados de não fazer nada. Nós precisamos nos divertir”.
É...
Por vezes, não é sem motivo que o velho adágio popular nos diz que quando a esmola é muito grande o santo deve desconfiar.
Enoque Alves Rodrigues, brejeiro de nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia, é Escritor com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil. Visitem meu blog: Pra variar, é sobre Francisco Sá: http://enoquerodrigues-earodrigues.blogspot.com/  http://www.facebook.com/profile.php?v=info&edit_info=all&ref=nur

terça-feira, 6 de setembro de 2011

SER BREJEIRO É... SUPERAR OBSTÁCULOS COM GALHARDIA

SER BREJEIRO É...  SUPERAR OBSTÁCULOS COM GALHARDIA
Enoque Alves Rodrigues
Março de 1964. O dia 31 que marcaria, literalmente, a ferro e fogo a vida de todos nós Brasileiros, se avizinhava. Falsos sentimentos de amor eterno pela Pátria Amada, Salve, Salve, enrustidos por detrás de vaidades pessoais e interesses mesquinhos e individualistas, levavam forças deletérias a aglutinarem-se em noites caladas, debaixo de sombras sorrateiras. Na marra, desiguais apeariam outros desiguais do Poder, lançando os menos favorecidos nos mais profundos e tenebrosos precipícios durante 20 anos. Não vale a pena detalhar aqui as consequências nefastas deste tresloucado gesto, que todos nós ainda hoje tentamos esquecer.
O certo é que, muito antes desse episódio, as coisas já não andavam muito bem pelas plagas que eu, quase infante, palmilhava com pés descalços. Aliás, as marés dos “mares de Minas” já não estavam mais para peixes há muito tempo. Crises de seca e fome grassavam o País de ponta a ponta. Numa dessas pontas, estava eu, um pirralho de onze anos, estávamos nós, e estava ele, o velho Brejo de todas as Almas, lá na pontinha das Gerais, se debatendo todo para saciar os desejos mais sublimes e elementares de seus filhos. A vida fluía difícil e lentamente. Por mais que se trabalhasse, claro, quando havia trabalho, a coisa não saia do lugar.
Não fosse a velha máxima que diz que “não há nada que de tão ruim não possa piorar”, poderíamos até afirmar que os efeitos desastrosos da Revolução, foram apenas mais uma ferida no corpanzil de um lazarento. Mas as coisas não são tão simples assim.
Dejanir de Cana Brava tinha plena consciência disso. Casado com Francisca, pai de seis filhos pequenos, labutava de sol a sol para conseguir o sustento parco daquela prole numerosa. Tivera ele todos os trinta anos de sua curta existência, forjados na bigorna cruel das mais difíceis necessidades de uma vida miseravelmente Severina. Vendia o almoço para comprar a janta. Trabalhava nas roças  de Zeca. Quando a lide no campo escasseava, recorria-se ao Gorutuba, de onde sempre voltava com alguns peixes. Agradecido, dizia sempre: “Meu Deus... O Gorutuba jamais me deixou na mão. O que será de mim se algum dia isso acontecer?”
Bem, como o Brejeiro aqui já mencionou nestas mal traçadas linhas, “as marés dos mares de Minas”  não estavam mesmo para peixes.  Sendo assim, o Gorutuba, coitado,  não estava nem mesmo para sapo. A seca atazanava a vida de todos nós matutos do Norte de Minas. Eu, apesar de à época contar apenas 11 anos, já não tinha mais cobras para puxar o rabo (roças para carpir) com uma velha enxada lá na Fazenda do “seu” Venúcios, onde defendia alguns trocados. Vem daí a minha obstinação pelo trabalho, fora do qual não vejo nenhuma outra forma de se realizar na vida. Mergulhei-me, então, na função de “retratista”. Com uma velha câmera kodac e rolos de  filmes branco e preto, tentava realçar a sofrível beleza brejeira de meus iguais, que apesar de serem feios de doer, como eu, queriam mesmo era ficar bem e bonitos na fita. Distantes estávamos  dos tempos atuais das câmeras de última geração e do photoshop que hoje, num passe de mágica, transforma gordos em magros, pretos em brancos, feios em bonitos e canhões oxidados pelo tempo, em reluzentes e turbinados boeng’s, aliás, difíceis de pilotar. É o progresso meu chapa.
A verdade, sem maiores delongas, é que o que o nosso amigo Dejanir mais temia, aconteceu. O rio Gorutuba começou a dar sinais de cansaço. O peixe que antes oferecia a Dejanir em abundância, agora não mais aparecia. Com o seu velho anzol com vara de bambu, e uma minhoca à ponta, ele ficava horas a fio sentado sobre um toco naquele barranco, à espera  que um pintado, uma gorda traíra ou na pior das hipóteses, um bagre enlameado surgissem. Mas, nada. Quando o desespero apertava, ele tentava se tranquilizar acedendo um cigarrinho de palha. Mas permanecia sempre plantado no mesmo lugar como se um arbusto fosse. À maneira que as horas avançavam ele se descabelava. E em suas lamentações amaldiçoava a tudo e a todos. Em seus queixumes olvidava-se que naquele mesmo lugar, no mesmo rio, houvera tirado durante todo o ano o seu sustento. E resmungava: “Capeta, que diabo está acontecendo com estes peixes?” “Antes eles vinham aqui aos montões e agora, nenhum!” “Será que deu veneno na cabeceira deste maldito rio?” “Cruz, credo...”
Mergulhado em sua própria inércia e muito mais preocupado com suas “desgracências”, sequer lhe ocorreu em algum instante mudar de lugar. Não havia notado que  a pouco menos de cem metros de distância dele, Antão do Catuni, precavido, prudente e motivado, calmamente retirava peixes e mais peixes do mesmo rio que ele segundos atrás amaldiçoara. De soslaio, entre uma baforada e outra, viu-o. Pôs-se estático. Nada conseguia entender. Em suas divagações inferiores só conseguia concatenar isso: “Desgraça, como é possível que Antão tão perto de mim consiga pegar tantos peixes em tão pouco tempo, enquanto que eu que estou aqui o dia todo não consigo pegar nem uma piabinha?”
Ai não teve jeito. A voz da consciência que até então se achava adormecida lá no fundão da cachola do caboclo brejeiro, não se conteve. Perdeu a paciência e compostura. Aos berros,  esbravejou: “Vai trabalhar, vagabundo! Saia dessa inércia inútil! Quem você pensa que é? Durante o ano todo você ficou ai sentado neste toco, e o rio, generoso, empurrou os peixes até você para que você os pescasse. Você no entanto se acomodou de tal forma que hoje não quer nem se dar ao trabalho de caminhar menos de cem metros para busca-los. É por isso que nós, digo, eu, que sou o seu Anjo da Guarda, que recebi a triste missão do Cara lá de Cima para lhe carregar nas costas, seu estrupício,  e Ele Próprio, decidimos que a partir de hoje, se você quiser levar algum peixe para casa terá que correr atrás. Você tem que sair daí. Esse toco já não lhe agüenta mais, cara. Você precisa caminhar um pouco e emagrecer, rapaz... Feio... Molenga...Careca...  Barrigudo... Preguiçoso... Te manca, meu... Cobra que não anda não engole sapo, sô!”
Convenhamos que o vocabulário chulo, próprio de nós, simples mortais, utilizado pelo Anjo da Guarda de Dejanir, estava há milhões de anos luz de distância do que se pratica nas esferas Angelicais mais elevadas. No entanto, foram as palavras certas no momento mais que oportuno. Foi a sacudida que Dejanir necessitava para, daquele dia em diante, seguir em frente, ir à luta com coragem, determinação e galhardia.
É...
Por vezes, quando até mesmo o nosso Anjo da Guarda perde as estribeiras, é porque a coisa entortou de vez e ai, meu nego, mexa-se. Vá em frente, senão jacaré te abraça.
Enoque Alves Rodrigues, Brejeiro de nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia há quarenta anos, é cronista, escritor com dois livros em fase de lançamento, historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil. Contatos: enoque.rodrigues@ibest.com.br; enoquerodrigues2010@hotmail.com. Visitem meu blog: http://enoquerodrigues-earodriguesblogspot.com/; http://www.facebook.com/profile.php?v=info&edit_info=all&ref=nur#!/profile.php?id=100000392634518

sábado, 27 de agosto de 2011

PLANTAS MEDICINAIS - OS RAIZEIROS DO VELHO BREJO DAS ALMAS

PLANTAS MEDICINAIS  -  OS RAIZEIROS DO VELHO BREJO DAS ALMAS
Enoque Alves Rodrigues
São infinitamente incontáveis os historiadores que tem nos presenteado com seus relatos, por sinal, ricos em pormenores, a respeito da flora medicinal que existia nos serrados do velho Brejo das Almas de antanho que, contrariando a ordem da Natureza,  cobria como se verde tapete fosse, á árida terra que me serviu de berço. Eu próprio, sem qualquer pretensão de incluir-me no rol de importantes, mas mantendo a prudência peculiar, já discorri várias vezes sobre esse tema que em muitos ainda exerce grande fascínio. 
Há, no entanto, várias crendices populares que o nosso matuto brejeiro sempre procurou preservar no decorrer dos muitos anos ou séculos. Refiro-me a comprovação da eficácia de cura atribuída a determinada erva ou raiz. Aliás, ao vermos nos dias atuais a alquimia resultante das grandes descobertas no campo da indústria química prevalecer em quase todas as essências, há que nos perguntarmos: até onde devemos crer na capacidade de cura creditada pelos nossos antepassados, a esta ou aquela plantinha? Será que a raiz que se encontra curtida com cachaça de alambique dentro daquela branca garrafa tem realmente algum poder de cura ou está lá apenas devido ao seu sabor amargo ou para causar um bom efeito visual induzindo o pinguço a consumir mais? São indagações que com toda certeza habitam o imaginário de grande parte da população, pau d’agua ou não.
Contrariando minha mãezinha, a santa de cabelos brancos, razão de meu existir, que acaba de completar setenta e seis aninhos e vive lá em Burarama, que certamente me diria: “Noquinho, cuidado com certas afirmações. Lembre-se que cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém,” atrevo-me a dizer que os efeitos dessas garrafadas na maioria das vezes, são muito mais psicológicos, ou placebo que reais. Mas isso não importa. O que conta mesmo é que não há raízes e garrafadas sem os raizeiros, que as preparam e que intitulam a crônica de hoje.
Certo está que as raízes e os raizeiros fazem parte da vida de Francisco Sá, o nosso querido Brejo das Almas, desde os tempos de sua fundação. Em 1704, quando  o fazendeiro Antonio Gonçalves Figueira deixou suas fazendas Jaíba, Olhos D’agua e Colônia Montes Claros com destino ao Gorutuba, onde chegaria a dois de Novembro, incorporaram-se em sua pequena expedição de pouco mais de 20 pessoas, vários raizeiros, sendo o mais famoso deles Getúlio Santos Soares. Quando construíram a primeira Capela do Brejo, a São Gonçalo, em 1768, ao inaugura-la, estavam todos cansados e esbaforidos. Devido ao calor, forte indisposição intestinal tomou conta da plebe. Foram todos salvos por garrafadas e mais garrafadas de malva com fedegoso e semente de aroeira.
Antão do Catuni, Geraldo da Marvina, de Lagoa Seca, Rosendo, de São Geraldo, Manuel Pereira, de Poções, Bicalho, do final da Rua Montes Claros, Zezim, tocador, da Padre Augusto, Genivaldo, do Mocó, Zé Cláudio, de Vaca Morta e muitos outros, são alguns dos raizeiros que se encarregavam de abastecer os muitos botecos do Brejo com suas garrafadas milagrosas. No entanto, para quem desejasse saborear todas as garrafadas produzidas por estes verdadeiros alquimistas em uma só parte, sem  que se fizesse necessário caminhar muito, bastava apenas ir até o velho “pé na cova”, sugestivo nome de um protótipo de bar, que como o nome indica, ficava exatamente no alto, quase dentro do cemitério de Francisco Sá. Também já muito falei a respeito dos bares do Brejo. Estica o Braço, Rola Moça, do Almeida, Dê Pena, Moça Branca, Roubaram meu Gato, Corta Volta, Rola Pote, Alma Penada, Fura Fronha, Só Cinco, Boca do Inferno, cuja denominação atribuída a sua localização que ficava no antigo beco que dava, ou melhor, que levava o transeunte boêmio à procura do sexo fácil, aonde belas mulheres maculadas e iludidas por promessas fáceis, ainda em idade juvenil, vendiam o sexo, na penumbra de abajur lilás do não menos famoso “Rancho da Lua”, onde  Margot, a cafetina, imperava. Isso apenas para citar alguns botecos mais recentes em minha memória quase anciã.
As poucas farmácias da época viviam às moscas, enquanto que os bares com suas garrafadas não tinham do que reclamar. Qualquer pequena dor de cabeça, de barriga, do peito, das pernas, lombrigas, impotência sexual, etc., era motivo mais que suficiente para que o matuto brejeiro recorresse ao bar mais próximo. Chegava, informava ao dono do bar o seu suposto diagnóstico e depois de alguns segundos lá vinha o caboclo com uma límpida garrafa em uma mão e com um copo baboso na outra, dizendo: “aqui está a solução para a sua doença. Toma um gole que é tiro e queda!”
O “doente” pegava o copo e antes de solver em um só trago o precioso liquido, dava o primeiro gole para o santo e... tchan, tchan, tchan, tchan... Entornava tudo de uma só vez e em poucos instantes dizia-se curado. Não. Não ia embora. Ao contrário, ficava lá bebendo mais e enchendo o saco, até cair, fazendo a festa da cachorrada que lambia-lhe os lábios, solvendo os sabores maléficos da aguardente. Enquanto isso, a patroa brejeira que ficara em casa preocupada com os queixumes do bebum, não restava outra alternativa senão o difícil périplo pelas escuras ruas do Brejo, em busca do infeliz em um dos muitos bares, cuja missão quase impossível, mas que protegida pela deusa que ampara e sustenta todas as deusas do sexo feminino, principalmente as nossas mulheres brejeiras, acabava por lograr êxito em seu intento. Lá estava o “maldito” estirado à frente do bar. Chamava-lhe pelo nome. Nenhum sinal de vida. Estava quase em coma alcoólico. Ai a grande heroína do lar, com a ajuda de alguns outros bebuns que ainda estavam de pé, mesmo tropeçando nas próprias pernas, punham-no em posição vertical, jogava-o nas costas e lá se iam, trôpegos, esposa e pau d’agua à caminho do lar aconchegante.
É...
Por vezes, não há cruz mais pesada e difícil de carregar, que um bêbado às costas.
Enoque Alves Rodrigues, brejeiro de nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia, é Escritor com dois livros a serem lançados, Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil. Visitem meu blog: Pra variar, é sobre Francisco Sá: http://enoquerodrigues-earodrigues.blogspot.com/ 

domingo, 14 de agosto de 2011

DEVANEIOS DE UM BREJEIRO AUSENTE – ANDANDO PELAS RUAS DO BREJO

DEVANEIOS DE UM BREJEIRO AUSENTE – ANDANDO PELAS RUAS DO BREJO

Enoque Alves Rodrigues

A imaginação é a mais poderosa aeronave que nos transporta em fração de segundos de um ponto ao outro do Universo, sem que tenhamos movido sequer um dos pés do local em que nos encontramos. Através de suas poderosas asas voamos para os mais longínquos lugares, principalmente para onde se detém os nossos laços e recordações da infância indelével.
Foi assim que de repente me pus a vagar, de maneira dispersa e sem destino definido, pelas ruas, avenidas e praças de meu querido Brejo das Almas, Francisco Sá, “beldade do norte de minas”.
Vi-me defronte à Drogaria União, próximo ao Banco do Brasil, na Praça Jacinto Silveira, de onde iniciei minha caminhada. Parei um pouco em frente à Igreja Matriz e observava a movimentação dos fieis que saiam de mais uma missa. Ganhei a Alameda Montes Claros e fui seguindo. Vi a antiga casa onde antes era a Pensão da Dona Quino, cuja frente servia de ponto para os ônibus que vinham da região de Salinas, Taiobeiras, Grão Mogol, etc.
Mercearia Alameda, Casa Lotérica Lotefrasa,  Minas Bahia Consultoria, até a Farmácia Mineira na mesma Alameda. Sem mais nem menos, vi-me, desta vez diante do Mercado Compre Sempre, na Rua Sete de Setembro, com suas saliências íngremes, João de França Corretor de Imóveis, Diocese de Montes Claros, Fantástico Móveis, Casa Quincas, etc. Saio na Rua Marechal Floriano Peixoto. O Bar do Ronaldo, Casa Rocha, Comercial Moreira, Varejão do Hélio, Mercearia Dois Irmãos, Mercearia São Luiz, etc.  Agora estou na Rua Padre Augusto, diante da Funerária Avelar –cruz credo-, Mercearia São José. Sigo por ela: Sol e Mar, Varejão da Economia. Paro um pouco e antes de virar a direita para sair em frente ao Mercado Municipal, ponho-me a pensar... Quantos, porventura, de nossos conterrâneos saberiam definir o quanto representou o  nome gravado naquela velha placa para o Brejo das Almas?  O certo é que o Padre Augusto Prudêncio da Silva, sobre o qual muito já escrevi neste mesmo espaço foi, juntamente com Jacinto Silveira, um dos maiores beneméritos do antigo Brejo das Almas.
Ao invés de entrar à direita, retorno à esquerda, pegando a Avenida Getúlio Vargas. Passo em frente à Igreja de São Gonçalo. Observo, agora, os prédios da Prefeitura e da Câmara Municipal. Subo,  trôpego, as escadarias da Câmara e posso observar em seu interior. Na portaria uma gorda senhora com uma prancheta à mão. Sequer nota minha insignificante presença. Adentro os interiores. Fotos antigas e amareladas pelo tempo de Legislaturas de há muito passadas. Sento-me numa das cadeiras do Plenário de onde vejo a Nobre edilidade debruçada sobre projeto de grande interesse e relevância para os munícipes brejeiros. Depois de acirrada discussão, aprovaram-no por maioria absoluta. Saio de lá feliz e convicto de que o meu povo a minha gente, os meus queridos iguais, estão sendo muito bem representados. Que, sem duvida alguma, os seus anseios e suas necessidades mais prementes e comezinhas estão sendo, aos poucos atendidos.
De igual modo, entro no prédio da Prefeitura. Feinho, claro, assim como o da Câmara, faltam algumas reformas. Nenhum obstáculo. Alias esta é uma das grandes vantagens de viver e morar em pequenas localidades. Os acessos são livres. Se você for um local, conhecerá a todos e todos o conhecem. Mas se você não for local, acaba passando despercebido. Agora estou defronte ao Gabinete do Prefeito. Posso vê-lo com sua bela “pena” a sancionar o Projeto de Lei que momentos antes tivera eu o privilégio de ver sendo discutido e aprovado na Câmara de Vereadores. Sem quaisquer delongas, o grande chefe do Poder Executivo Brejeiro, homem de grande sensibilidade política e elevado espírito público, comprometido em mitigar facilidades que beneficiem seu povo,  com uma só canetada enquanto eu piscava, zás... Com um só risco, com o seco e assertivo “cumpre-se” dos magistrados, libera toda aquela papelada à Secretaria para que seja registrada nos anais. 
Êxtase incomensurável mesclado com prazer e sentimentos de uma pequenez pessimista e abstrata, invadiu  meu ser. Pensei comigo: Que coisa feia... Por que razão eu imaginava que as celeridades  para com as decisões e aprovações de coisas que beneficiam realmente o povo não aconteciam? O que me levou a subestimar algo tão transparente e cristalino? Sei lá...
O certo é que a felicidade sobrepunha os questionamentos de inferioridades de minha reles pessoa. Poderia ali mesmo encerrar aquele périplo pelas ruas do Brejo. Mesmo assim continuei caminhando sem rumo. Correios, Espaço Rural, Asilo São Vicente, Funasa, Construpena, etc. Na Praça Duque de Caxias, vejo o antigo casarão que pertencia a Rogério da Costa Negro, Casa Prado, Hidrogás, Farmácia Nossa Senhora das Graças, Humberto Ruas e Cia, etc. Na Olimpio Dias, Banco Itaú, Tribunal de Justiça de Minas, Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Kenya Criações, etc. Na Alfredo Sá, Policia Rodoviária e Cartórios de Protestos e do Primeiro Oficio. Na Francelino Dias, Rádio Raízes e outras. Na Rua Capitão Enéas, O Instituto Municipal de Previdência. Na Lauro Oliveira, o prédio da Escola Estadual Donato dos Santos, Tiburtino Pena, a Augusta e Representável Loja. Na Zeca Guida, o Instituto Mineiro. O Café Cometa da Rua Sargento Mor. Na Rua Belo Horizonte a Secretaria Municipal de Saúde. Na José Patrício Silveira, o Sindicato Rural de Francisco Sá. A Doce Magia Modas, da Rua Tremendal. O Colégio Pirâmide, na Rua Minas Gerais. Na Travessa do Rosário, o Sacolão Brejeiro. O Hospital São Dimas e oTribunal Regional Eleitoral na Rua João Catulino. O Centro de Saúde da Praça Rogério da Costa Negro. Hotel Avenida, da Avenida Padre Silvestre. Depois de muito caminhar me vejo à frente do Hotel Amaralina, onde, “supostamente” estou hospedado. Na mesma praça de onde iniciei a minha caminhada. O corpo pede repouso. Observo, de soslaio, do outro lado da Praça dois conterrâneos ao lado de um boizinho sofrível, com uma selinha ao lombo e com uma garrafa pet a servir-lhe de penico.
Uai, eu não havia dito, supostamente?
Pois é!
Todo esse transe de felicidade ímpar seria muita “areia para o caminhãozinho deste pobre mortal”. Eis que na calada da noite, não demorou muito e a invenção de Alexandre Graham Bell, toca...
Ao tira-lo do gancho, antes mesmo que eu falasse “alô”, uma voz feminina que de pronto identifiquei começou.
Dr. É a Luzinete...
Oi, Luzinete, qual é o problema?
Desculpe-me, doutor, pelo adiantado da hora... Mas eu estou te ligando para avisar que aquele treinamento que o senhor ia dar para o pessoal da Obra de Candeias, na Bahia, foi antecipado para hoje.
Luzinete, sua “demônia”, mas eu não lhe disse que não queria ser incomodado quando estivesse em minha terra? Você, por acaso, não sabe que eu estou aqui em Francisco Sá? Desmarque essa joça, imediatamente...
Desculpe-me, doutor, mas acho que o senhor está enganado, pois eu estou ligando para o telefone fixo de sua residência daqui de São Paulo. Assim sendo, o senhor se encontra aqui em SAMPA e não lá no seu “Brejo das Almas”. E com uma gargalhada sarcástica e escrachada, própria dos tiradores de sarro, ainda me comeu o toco... Acorda prá realidade, doutor...Ha, ha, ha, ha,ha,ha...
É...
Por vezes, sem que saibamos, o maior dos pesadelos está em nosso próprio despertar!!!
Enoque Alves Rodrigues, brejeiro de nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia, é Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil. Visitem meu blog: Pra variar, é sobre Francisco Sá:
http://www.facebook.com/profile.php?v=info&edit_info=all&ref=nur

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

SER BREJEIRO É... AMAR O BREJO SOBRE TODAS AS COISAS...

SER BREJEIRO É...  AMAR O BREJO SOBRE TODAS AS COISAS...
Enoque Alves Rodrigues
Há algum tempo atrás li em minha página de relacionamentos “face”, aparte de um conterrâneo ao outro que me sugeria escrever sobre determinado tema relacionado, como sempre, ao Brejo das Almas, do qual supunha ele deter eu o domínio do conhecimento.
Na breve missiva, o conterrâneo que aparteava a quem agradeço de coração, do alto de sua inquestionável sapiência, manifestava-se surpreso devido o outro ter sugerido a mim, que nem no Brejo vivo e não a ele, mencionado tema.  Finalizava informando que sai do Brejo muito cedo e que, portanto, não poderia discorrer com natural propriedade tal assunto, etc.
Tenho por premissa me resguardar de comentar ou me envolver com temáticas polemicas onde não consigo visualizar claramente o trinômio principio, meio e fim. É que na área de Engenharia onde atuo, lidamos muito com ciências exatas, cujo cume é o resultado. Assim sendo, as coisas que não se enquadram neste perfil, julgamo-las, abstratas ou descartáveis o suficiente a não nos permitir que debrucemos sobre elas para tomarmos ações que certamente nos levarão do nada a lugar algum.
Não tenho nos dias atuais nenhum vinculo familiar, qualquer parentesco ou contato físico com alguém que vive no Brejo. Ando por suas ruas sem ser sequer notado. Ninguém me conhece fisicamente. Os poucos, que lá ficaram,  com os quais convivia, já estão, certamente, no andar de cima. Devo aqui ressaltar que sou brejeiro de nascimento, por amor e convicção. Apenas isso já bastaria para justificar esse meu inexplicável apego à terra que me serviu de berço. A incondicionalidade do amor que nutro pelo Brejo das Almas, sua gente e suas mazelas, está lastreada nas mesmas dificuldades que me obrigaram um dia a sair de lá, e principalmente, pelos parâmetros comparativos que pude estabelecer, diante de várias localidades e povos que vim a conhecer aqui mesmo no Brasil e em outras partes ao redor do Mundo, como no Oriente Médio, por exemplo. Em São Paulo, onde vivo, creio ter atingido o modesto pedestal pelo qual lutei e que a vida me reservou, durante longuíssimos anos de labuta.
Mas... E então, não deveria eu nesse caso, amar muito mais a São Paulo que me acolheu, quando necessitava, dando-me guarida, após haver, com seu coração hospitaleiro e cheio de bondade, me convertido através de seus costumes, sotaques diferenciados dos Italianos da Mooca, com suas pizzas e bracholas, em um de seus iguais?
Não. Negativo!
Amo São Paulo assim como amaria qualquer outro lugar que tivesse me proporcionado constituir minha família, participar de seu crescimento e ainda por cima, depois de comer o pão que o capeta amassou, chegar ao ápice da vida com algum no bolso para me sustentar, sei lá, por quanto tempo, sobre as já frágeis e trêmulas pernas que ás vezes insistem,  como as mulas empacadeiras do meu Brejo querido, em não mais querer sair do lugar, carregando o peso de minha saliente barriga. É a vida, meu nêgo.
Amar, já dizia o Poeta, é dar-se sem pedir nada em troca. O meu amor pelo Brejo das Almas, ou Francisco Sá, “beldade do norte de Minas” vem daí. Desde que nasci até hoje, muitos anos se passaram desde que amassei pela ultima vez a bosta das vacas da Fazenda Terra Branca de propriedade de meu avô, no Município do Brejo das Almas. Mesmo assim, ainda hoje meus pobres pés, ao palmilharem alguns importantes centros financeiros, palácios de convenções, centros empresariais e conferências inerentes a minha atividade, conseguem tropeçar em algo de natureza mole e tonalidade verde e escorregadia, que no final, pasmo, as narinas que jamais me traem, constatam tratar-se da mesma bosta de vaca dos tempos de outrora.
O amor, meus queridos amigos e conterrâneos é algo que sobrepõe o nosso querer. Nós não escolhemos o que ou quem vamos amar. Dessa forma, por me faltar argumentos dentro da objetividade, por não dispor de palavras suficientes que me permitam relatar com clareza, todas as causas, motivos e peculiaridades que canalizam o meu amor pelo Brejo das Almas, resta-me apenas me homiziar por detrás do meu mineirismo brejeiro, para lhes afirmar categoricamente, que somente o fato do Brejo ter produzido esse povo simples, lindo e maravilhoso onde eu, igual algum encontrei pelas diversas plagas percorridas, esse povo que transita pelas empoeiradas ruas do Brejo onde eu, muitas vezes, em vigília do espírito invisível, também me encontro a caminhar, basta-me para seguir amando-o com todas as forças do meu ser, sem quaisquer outras justificativas. Assim é o amor.
E tenho dito!
Enoque Alves Rodrigues, brejeiro de nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia, é Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil. Visitem meu blog: Pra variar, é sobre Francisco Sá: http://enoquerodrigues-earodrigues.blogspot.com/