sexta-feira, 12 de outubro de 2012

CENAS BREJEIRAS 2 - ASPÁSIA



CENAS BREJEIRAS 2 – ASPÁSIA

*Enoque Alves Rodrigues

Outrora, divertia-me observando o transitar de pessoas pelas ruas do Brejo das Almas ou Francisco Sá. O principal ponto de aglomeração, para onde todos se convergiam, ainda hoje existe em forma de Alameda com seus calçadões.

As jardineiras, carroças, charretes e carros de bois que vinham de Salinas, Grão Mogol, Taiobeiras e outras cidades da região tinham como ponto final a Alameda, ou precisamente, em frente à Pensão da Dona Quinó. Durante as minhas férias escolares era para lá que eu também ia com o objetivo de apreciar aquela movimentação toda. Sentava-me na soleira da porta da Pensão da dona Quinó, uma senhora forte, de meia idade, cujas instalações ficavam em um antigo casarão. Dali, daquele “point”, nada, absolutamente nada, me escapava às vistas. 

Foi assim, quase do nada, que numa manhã de sol de rachar mamona, sem querer, observei que do outro lado da Alameda acabava de “apear”, era assim que falávamos na época, de uma empoeirada Jardineira, uma jovem muito bem vestida. Trazia numa das mãos uma mala de fibra enquanto com a outra, agarrava-se a uma frasqueira de couro cru. Entre os dedos tinha um diminuto pedaço de papel. Após atravessar o pequeno trajeto parou á minha frente, indagando-me:

-Menino, você sabe onde é que fica a Pensão da Dona Quinó?

-Sei, sim, dona. É aqui! Respondi, levantando-me da soleira a fim de facilitar-lhe a passagem.

-Uai, disse-me surpresa, quanta coincidência! Como é que eu vim perguntar exatamente no endereço onde vou ficar?

-Fácil, dona, respondi-lhe, como o ponto final das Jardineiras é aqui, seria mais difícil não encontrar.
Olhou-me, fixamente, e, esboçando um sorriso, depois de pensar um pouco, apresentou-se.

-Meu nome é Aspásia. Sou Normalista e venho de Taiobeiras para participar de um estágio no Eliseu. Eu vou me hospedar aqui na Pensão da dona Quinó. Você trabalha aqui? Você conhece o Eliseu? Você é do Brejo?

Meu Deus, quantas perguntas eu tinha que responder. Bem, do alto da timidez que sempre me foi peculiar, principalmente no trato com estranhos, passei a responder.

-Não. Eu não trabalho aqui. Venho nesse local para ver a chegada das Jardineiras. Conheço o Eliseu Laborne. Ele fica na Mariquinha Silveira. Sim, sou Brejeiro.

Daquele dia em diante Aspásia passou a fazer parte integrante da vida brejeira. Aliás, como se revelaria posteriormente, se adaptou a tal ponto que parecia ter nascido no Brejo. Concluiu o estágio em trinta dias, fim dos quais escreveu à família informando sua desistência do magistério e que optaria por algo ligado à saúde, que ficaria em definitivo no Brejo, etc.

Tempos depois podia ser vista dando expediente no São Dimas. Continuava, no entanto, hospedada na Pensão da dona Quinó. 

Alegre, sorriso fácil, brincalhona e responsável. Exercia, com dedicação e zelo, o novo e digno oficio que agora abraçava. Ela se destacava em tudo. Como simples auxiliar de enfermagem prestou vestibular no qual foi aprovada para Medicina. Agora o Brejo encolhera para ela. Era demasiado pequeno para lhe proporcionar tão grandes sonhos. Sonhos estes que naqueles tempos nem mesmo a bela MOC seria capaz de realizar. Ela queria muito mais. Tinha que ganhar o mundo.

Em prantos convulsivos, abraçada a dona Quinó, vemos agora, aquele divino ser, com um dos pezinhos delicados apoiado sobre a soleira, se debulhando em lágrimas e palavras de gratidão, àquela benfeitora que apesar do pouco tempo de convívio, dizia considerar como se fosse sua mãe. Iria estudar Medicina na Capital das Alterosas.

-Adeus, dona Quinó, muito obrigado por tudo! 

-Adeus, Aspásia, vê se aparece um dia por aqui, menina! Respondeu-lhe, dona Quinó.

Em instantes surgia a Jardineira que a levaria até Montes Claros de onde tomaria o trem de ferro com destino a Belo Horizonte. Lembro-me que havia uma fila tão grande de Jardineiras que a obrigou a embarcar alguns metros antes do ponto, exatamente em frente onde hoje é a “Moda Brasil”.

Quis o destino, assim como o fez em sua chegada, que também em sua saída, marcas indeléveis fossem gravadas em nossos recônditos. Pois, ao passar por mim, pequeno pirralho, sem mais nem menos, assim pensávamos, depois de acalantar-me, com respeitoso abraço, disse-me: “Para você, menino, eu digo um até breve. É certo que nos veremos bem antes do que imaginamos”. 

Naquele momento não me ative aos significados daquelas palavras. Teriam algum sentido? 

Será?

Treze anos depois era chegada a hora do “sapinho” aqui ganhar o Mundo. O Brejo, quem diria, também ficou pequeno para mim. 

Usina hidrelétrica de Volta Grande. Divisa de Minas com São Paulo. Era aquele o maior empreendimento da Construtora Mendes Junior naquele ano. No dia 31 de Maio a Mendes recrutaria mais 200 peões de obra. Eu era um deles. Depois de termos passado uma semana aguardando a vez de fazermos os testes admissionais, eis que somos encaminhados para os exames médicos. Por se tratar de muita gente, o Setor de Recursos Humanos optou por dividir aquela multidão em vários grupos. Como era impossível examinar a todos ali, mandaram dois grupos de dez pessoas para Uberaba, no Triangulo Mineiro. Em um deles estava eu. 

Quando o caminhão da Mendes estacionou defronte ao número 342 da Rua São Benedito onde faríamos os exames, demorei a aceitar o que os meus olhos castanhos insistiam em me dizer. Por alguns instantes cheguei a pensar tratar-se de uma visão. Mas não era: o pomposo nome que aquela bem elaborada placa ostentava não me deixava dúvida alguma. Ali estava escrito:

“Doutora Aspásia Modesto de Medeiros Fonseca – Clínica Geral e Cirúrgica”.

Era ela, com o sorrisão aberto e espontâneo de sempre, que fazia tremer os deuses, e com a mesma simplicidade dos velhos tempos brejeiros.

Maktub!

Aliás, em Uberaba, vários outros fenômenos se revelariam para mim que não cabem aqui comentar.

É...

Por vezes, ou quase sempre, é na singeleza das entrelinhas que se encontram as mais importantes revelações.

E tenho dito!

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

CENAS BREJEIRAS 1 – GERMANA


CENAS BREJEIRAS 1 – GERMANA

*Enoque Alves Rodrigues

Pernas curtas e arqueadas. Andar lento e trôpego. Olhar disperso como se nenhum interesse demonstrasse a sua volta. Sol quente e escaldante não obstante estar ela, como sempre, munida de seu inseparável guarda-chuva. Andava, assim, displicente, pelas calçadas da Praça Rogério da Costa Negro, em Francisco Sá, Brejo das Almas.

-Germana!

-Oi, pode falar!

-Lembra-se de mim?

-Não, respondeu-me, secamente. – como poderia eu me lembrar de você se jamais te vi? 

-Uai, sô, como não? Sou o Noquinho, neto do “seu Liberato”, aquele velhinho de barbas brancas que se parece a um papai Noel. Você não se lembra de meu avô? 

-Não. Não me lembro. Porque haveria de me lembrar?

Aquele diálogo se parecia mais a uma conversa de bêbados. Germana, não sei por quais razões insistia em não querer se lembrar de nada. Teria, por acaso caído e batido com a cabeça? Estaria, porventura, acometida de alguma súbita amnésia? Bebeu? Sei lá!

Bem, cabia a mim, já que fui eu quem começou a conversa, procurar as melhores formas de fazê-la recordar dos meus tempos de menino, quando ela, já beirando os cinquenta, frequentava a fazenda Terra Branca, de meu avô, próximo de Cana Brava e Vaca Morta. Assim sendo, com a finalidade de tornar-me mais visível, por imaginar que talvez tivesse com algum problema de visão próprio da idade, acerquei-me um pouco mais dela. Olhei-a nos olhos, já meio turvos pelos muitos janeiros e, insistentemente, voltei a me apresentar:

-E então, Germana. Sou o neto do senhor Liberato e dona Justina a quem você visitava na época das moagens de cana no mês de Julho. Você se lembra da tia Cota?

-Cota, o que? De que diabos você está falando, homem? 

Caramba. Que coisa chata. Aquela alminha que me fora tão importante em infância, quando ela me embalava com suas lindas e antigas histórias de um Brejo das Almas envolto em épocas perdidas séculos afora, agora estava ali, diante de mim, com sua mente relutante em reconhecer-me. Bem, sendo assim não tomaria mais o seu tempo.

Despedi-me com brejeiras reverências naturais que dispensamos aqueles que tiveram o privilégio de avançarem na idade longeva. Quando eu ia me afastando lembrei-me de um velho apelido de infância. A maneira que caminhava olhava para trás. Como Germana continuava parada, no mesmo lugar, me observando, pensei: porque não voltar e me apresentar melhor? Porque não me dar uma segunda chance? E se ela me desse um esculacho? Sim, porque antigamente ela era boazinha, tranquila, mas de vez em quando embravecia. Depois quem me garantiria que ela não mudou de temperamento depois de tanto tempo?

Voltar ou não voltar? Retornar ou seguir em frente?

Retornei!

Germana continuava estática me olhando. Ao ver que eu volvia em sua direção, fitou-me mais atentamente.

Não lhe dei nenhuma outra chance. Ela tinha que se lembrar de mim. Não se surpreendam: chato é assim mesmo. Quando encasqueta com uma coisa não há nada que o faça recuar. Acerquei-me muito dela ao ponto de lhe sentir o calor da respiração. Levemente lhe afaguei o rosto com uma mão em cada lado. Suavemente puxei de sua cabeça que se aproximou ainda mais de meu rosto. Agora eu tinha que finalizar o trabalho. Era agora ou nunca. Como em meu dicionário não existe a palavra “nunca”, então, era agora.

-Germana!

-Eu! Outra vez você? Mais o que é que você quer de mim, homem de Deus?

-Diabos, Germana. Como pode você não se recordar de mim? Você foi tão importante em minha vida. A minha avó a tinha como sua irmã. Deixava-me com você que cantava para eu dormir, balançando a rede que ficava pendurada entre aqueles dois pés de frutos do conde, lembra-se?

-Não!

Tencionava não utilizar a última cartada. Não mencionaria o apelido de infância. Não queimaria o último cartucho. Mas, brejeiros, acreditem, não teve jeito. 

Como Germana permanecia indiferente a minha “insignificante figura” e por não estar nem ai para o Bonifácio, tive que apelar.

Esbugalhei os olhos, enchi e murchei as bochechas, repetidamente, assim como faz aquele vertebrado da classe dos anfíbios que habitam os brejos. Fixei mais o meu olhar ao dela e me esforçando o máximo para parecer-me, cada vez mais com o danadinho, emiti o coaxar característico do mesmo, seguido da fulminante e infalível apresentação.

-Germana, sua diaba. Eu sou o “sapo”!

Nem bem fechei a boca e já pude escutar sua estridente e gostosa gargalhada.

-Sapo?

-Eu já sabia tolinho. Só estava fingindo para força-lo a falar o seu apelido com o qual nós nos divertíamos muito quando você era menino. Por alguns instantes cheguei a pensar que devido você ter “virado engenheiro” lá em Sun Paulo, que você não fosse se lembrar de seu apelido que ainda é para nós, seu segundo nome. Aliás, para mim é o seu primeiro nome, por que “eu nem sabia que seu nome era Noquinho”.

Corrigida, de que “Noquinho” não era o meu nome, mas o diminutivo de Enoque, meu nome verdadeiro, reagiu, sarcasticamente.

-Piorou. Este sim que eu não conheço mesmo. Jamais escutei dizer que seu nome era “Enoque”. Quem diabos lhe colocou esse trem? É feio demais da conta, sô! Sempre lhe conheci por “sapo” e é como “sapo” que vamos sentar ali e conversar. Eu quero que você me fale como andam “seu Liberato” e a “dona Justina” seus avós.

Informada que os meus avós já não se encontravam mais conosco no plano visível, ponderou:

-É isso mesmo, “sapo”, as pessoas boas morrem tudo. E o pior é que quem devia morrer, de tão ruim que é não morre. Sabe quem também morreu? Dito isto me passou um longo relato dos que haviam partido do Brejo. Dava os nomes, datas, doença ou motivos da morte com uma facilidade e precisão tão impressionantes como se referisse a uma trivialidade qualquer de momento.

E eu que cheguei a pensar que Germana estivesse meio lelé da cuca!

Após uma hora de prosa, despedimo-nos.

-Fique com Deus, Germana! – Disse-lhe eu.

-Vá com Deus, “sapo”. Que Jesus te acompanhe menino, respondeu-me.

-Amém!

  É...

Por vezes, que importância tem nosso nome de batismo aos que nos embalaram os sonhos? 

E tenho dito!

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

sábado, 29 de setembro de 2012

CASOS DO BREJO V - CAMPANHAS ELEITORAIS



CASOS DO BREJO V – CAMPANHAS ELEITORAIS

*Enoque Alves Rodrigues

É difícil entender onde se localiza a essência dos milagres dentro dos pleitos eleitorais. Dispõem do poder de aglutinar em torno de si todas as forças ainda que em estado de letargia e obsolescência. Diria até que os pleitos eleitorais promovem milagres inimagináveis. Almas que, em eleições anteriores foram banidas da vida publica e lançadas, pelo poder do voto, ao temido fogo do inferno, ressurgem, inesperadamente, das cinzas, qual fênix, coradas e faceiras. Impressiona-me, particularmente, a força de renascimento de alguns. Mas, sinceramente, o que mais me surpreende é a maneira fácil que chega a beirar a inocência com que pessoas simples se deixam influenciar por seus iguais inclusive em nível intelectual. Promessas vazias inseridas em oratórias sofríveis, desprovidas de quaisquer conteúdos são lançadas, boca afora, aos pobres ouvidos do infeliz Cidadão, como se exequíveis fossem. Estes, atordoados, correm de um lado para outro, ou, de um comício para outro, qual barata tonta, como aquele personagem da mitologia grega que, desesperado em busca da verdade, munia-se de uma lâmpada, e saia buscando-a por toda parte, sem, contudo, encontra-la.

Talvez a melhor maneira de entendermos a eficácia de tão grande capacidade de renascimento desses “imortais”, esteja mesmo na ficção dos pastelões como as séries, “duro de matar”. Mas ater-nos-emos ao que há de bom nas eleições por que a função desta coluna é trazer informação e entretenimento aos poucos que ainda a leem, devido á maioria se achar exatamente envolvida atualmente com este tema, campanhas eleitorais, sem tempo para ler as bestagens que ainda insisto em escrever. Falemos de coisas dóceis e amenas, então.

Um dos muitos pontos decisivos das eleições são as campanhas eleitorais que são capazes de mobilizar multidões de pessoas, fomentar o consumo e injetar recursos no comércio, revolucionando toda a vida das cidades, por mais pacatas que sejam. Não fossem pelas circunstâncias já destacadas acima, de alguns, que, uma vez eleitos, divorciam-se dos planos de governo que eles próprios elaboraram e que foram responsáveis pelo êxito obtido nas urnas, dir-se-ia que existem muito mais de positivo em eleições além do que supõe nossa vã filosofia. Deixemos de lado o troca-troca, a compra de votos, o voto de cabresto, o fogo cruzado entre candidatos que nestas ocasiões se esquecem de comezinhos sentimentos de fraternidade, e mais recentemente, a lei da ficha limpa. Recordo-me de uma história que um senhor de barbas brancas que nasceu e viveu no Brejo das Almas onde faleceu com 92 anos me contava. 

Dizia-me ele:

Naqueles tempos o voto de cabresto imperava no Brejo. Todos os camaradas eram conduzidos pelos seus senhores geralmente donos de fazendas na região, para votarem na secção eleitoral que ficava no centro da cidadezinha. O voto tinha que ser dado ao candidato previamente escolhido pelo patrão. As duas únicas forças politicas exponenciais disputavam as eleições naquele ano. Os dois candidatos eram coronéis com cabedal eleitoral garimpado depois de muitos anos de labuta e bons serviços prestados à comunidade.

Marcolino de Poções não tinha patrão. Ele não trabalhava para ninguém. Ele era dono de seu próprio passe. Votava em quem queria. Bem, sendo assim, venderia bem o seu voto. Espere ai! Não, ele não se contentaria em vender o voto para um só candidato. Ganharia um pouco mais. Venderia seu voto para os dois candidatos. Ele só teria outra oportunidade daquela dali a quatro anos. Ele era esperto. Sendo assim, procurou o primeiro candidato.

- Mercê ainda está comprando voto?

- Sim, estou. Porque, você quer me vender o seu?

- Quero. Quanto é que Mercê paga?

- São duas galinhas e uma porca!

- Fechado. O meu voto será seu. Como faço para entrega-lo?

- Fácil. No dia da eleição eu estarei lá, na boca da urna, pronto para recebê-lo.

- E quando é que o senhor vai me pagar?

- Quando eu me eleger, claro! Respondeu-lhe seco, o mandachuva. 

-  E se Mercê não ganhar? Não se eleger?

- Bem, você já está perguntando demais. Isso ai já é outra história que não é da sua conta. Isso é um jogo e eu não jogo para perder. – Você vai ou não vai me vender o seu voto?

- Espere ai, lembrou-se Marcolino. E se o outro candidato também pensar igual ao senhor? E se ele também não jogar para perder? Como é que eu fico? Vou ficar na mão do calango?

Mineiro matuta. Brejeiro pensa e matuta ao mesmo tempo. Assim sendo, fechou com aquele candidato. Matutou. Pensou. Pensou. Matutou e decidiu. Iria se garantir com o outro candidato. Assim se aquele danado com quem ele se comprometeu primeiro perdesse ele não ficaria chupando o dedo. 

Foi com a língua de fora e esbaforido que ele, após utilizar-se de vários atalhos no caminho, chegou, finalmente, a casa do segundo candidato.  

Alto, magro e esguio. Vestido do mais puro brim, cáqui, calçado com botas de couro, canos longos, com chapéu panamá à cabeça, olhar tranquilo e falar manso. Sentado estava no solar de seu casarão de onde observava todo o Brejo das Almas, reduzido, naquele tempo, a um pequeno amontoado de casas. Ao avistar Marcolino, elegantemente se expressou:

- Bom dia, meu amigo. Como vai o senhor? Porventura, há algo que eu possa fazer para lhe ajudar? 

- Sabe o que é coronel! Eu vim aqui para lhe vender o meu voto. Quanto é que Mercê está pagando?

- Vender, o que, meu filho? Por favor, seja mais especifico. Não lhe entendi!

- Então, coronel, o senhor sabe que todo eleitor aqui vende o voto e que por aqui qualquer  candidato só se elege se comprar votos, já que não tem voto de cabresto para todo o mundo.

Aquele candidato olhou para Marcolino com piedade. Após fitar-lhe de alto a baixo, respondeu-lhe educadamente.

- Creio que o amigo esteja enganado. O voto deve ser dado e não vendido.  Voto não tem preço, voto tem consequência. Aliás, você nem precisa conhecer a pessoa para votar nela. O que você tem que conhecer é o seu plano de governo. Não faça de seu voto moeda de troca senão os candidatos vão fazer de você massa de manobra e posso lhe garantir que esta ciranda perversa não é benéfica nem para você tampouco para à Democracia que todos nós um dia almejamos. Não vote, jamais, em quem se propõe a comprar o seu voto. Ele não o merece.

Democracia? De que diabos aquele coronel visionário estava falando em plena década de 1920 quando a maioria das questiúnculas era resolvida à bala ou sorrateiramente?

Impossível seria mesmo entender, quanto mais explicar, não fosse aquele candidato o Coronel Jacinto Alves da Silveira que, segundo os anais da história, jamais perdeu uma eleição das muitas que disputou. 

É...

Por vezes, ou quase sempre, não é preciso se afastar dos caminhos da retidão para se lograr êxitos nas urnas. Basta que você tenha um bom plano de governo. De preferência e se possível, exequível. Porque chapéu de trouxa é marreta. 

E tenho dito!

*O autor nasceu no Brejo das Almas. Atua há mais de 41 anos na área de Engenharia. Publicou o livro “Liderança Conquistada”. É Colunista, Palestrante Motivacional, Historiador e Divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

sábado, 22 de setembro de 2012

CASOS DO BREJO IV – MARIA DE LURDES



CASOS DO BREJO IV – MARIA DE LURDES
*Enoque Alves Rodrigues
O período de estiagens que atualmente assola grande parte do Brasil, inclusive São Paulo, antes denominada, “terra da garoa”, remete-me aos longínquos tempos de minha infância no Brejo das Almas, ou Francisco Sá. Quando, cansados de sonhar com a negritude dos cúmulos que eram cada vez mais empurrados pelo vento para localidades mais distantes, punham-nos a pensar, no quanto seríamos felizes, se fossemos agraciados pela mãe “natura” com alguns pinguinhos de chuva. Ainda que fosse apenas para sentirmos o cheirinho de relva molhada que por si só, era-nos mais que suficiente para que cravássemos no chão a primeira enxadada dando inicio a mais uma tenebrosa aventura que, já sabíamos todos, antecipadamente, no que ia dar. É isso mesmo: no final, as sementes que lançávamos ao solo com as quais deixávamos de matar a fome dos barrigudinhos eram devoradas, sem dó e piedade pela “dona terra” que nada fizera por merecê-las. É a vida, meu nego, que passava lenta e inexorável, por aquelas bandas sofridas. 
Avançando um pouco mais no tempo e no espaço, ainda sou capaz de me confrontar com cenas que não faz muito tempo, integravam o cotidiano da gente brejeira, simples, ordeira e pacata: as novenas e penitências aos santos protetores do sertanejo e da lavoura.
Poderia desfilar aqui neste despretensioso espaço, que ocupo com prazer, sem receber um centavo em troca, vários brejeiros que se destacaram na arte de “fazer chover”, ou, na arte de “encherem os sacos dos santos”, que, lá de cima, na maioria das vezes, permaneciam alheios ás súplicas e clamores. Eles nem tomavam conhecimento do nosso padecer. Chuva que era bom mesmo, necas. Mas hoje me aterei apenas a um desses personagens. Prende-se esta minha predileção, a sua quase contemporaneidade, pois é possível que muitos dos que ainda habitam no Brejo das Almas o tenham conhecido, ou, quiçá, até mesmo com ele, ou melhor, com ela, convivido. 
Poderosa, voz possante e determinada. Levantava-se de manhã depois de uma noite mal dormida povoada de preocupações com a insensibilidade dos santos que não mandaram a chuva no dia anterior, e já ia logo olhando para o céu. Se seus olhinhos vislumbrassem, em algum ponto do infinito uma sombra de nuvem, ela retornava para o seu canto e esperava um pouco mais para ver se a nuvem se aproximava. Quando isso não acontecia, aquele ser maravilhoso, incontinenti, colocava sobre sua cabeça um litro com água e saia batendo de porta em porta, em busca dos demais moradores que tinham de sair de suas casas já com um litro com água na cabeça e eram quase obrigados a acompanha-la em oração em mais uma novena que invariavelmente terminava aos pés do Cristo Redentor, no morro da caixa d’agua. Lembram-se? 
Seu nome? Maria de Lurdes. Sobrenome? Nunca soube. Não obstante todo o Brejo conhecê-la como “Lú Doida”, vou me abster por questões de princípios, do ato de empregar aqui este pejorativo tratamento, até porque de “doida” mesmo, aquele divino ser não tinha nada. 
Moravam na Vila Vieira, antiga Lagoa, ali mesmo, onde o Brejo das Almas nasceu. Dali, eles, sempre com Lú à frente, saiam em novena e penitência. À maneira que avançavam pelas ruas do Brejo, aquela procissão ia aumentando. Depois, faziam uma pequena pausa no Largo da Matriz de onde seguiam rumo ao morro da “caixa d’agua” onde o Cristo, com os braços abertos para recebê-los, os aguardava com compaixão. Sob aquele olhar piedoso e manso, os penitentes em prantos e preces puxados por Maria de Lurdes, deixavam em seus pés, tristes lamentos e o mais importante, a certeza plena de que a chuva viria, ainda que tardia. Depositavam, ali, todas as suas esperanças em dias melhores, quando o sol, de preferência depois da chuva, brilharia para todos.
Naquele ano a seca estava esturricando o meu Brejo. Maçarico ligado 24 horas lá em cima. A impressão que se tinha era que os santos de Maria de Lurdes haviam virado as costas para aquela cidadezinha onde orgulhosamente nasci. O diabo é que quanto mais se rezava mais as nuvens se afastavam. Barrigas roncavam qual tambor de couro de boi velho e os caras “do alto” nem tchum. Brejeiros atônitos não sabiam mais a que santo recorrer. Desesperançados, já não queriam mais acompanhar Maria de Lurdes nas novenas. Ela que até então gozava de grande credibilidade junto aos brejeiros na arte de representa-los aos santos de sua devoção que sempre a atendiam, agora estava prestes a se desmoralizar. Não. Ela não se desmoralizaria, jamais. Sempre fora fiel. Faria o possível e até mesmo o impossível para dar uma resposta àquela gente. 
Numa noite do mês de agosto, sozinha, subiu até o Cristo. Falariam “cara a cara”. O que conversaram nunca se soube. Segredo de confessionário não se revela a ninguém. O certo é que Maria desceu do morro, renovada. No dia seguinte com sua vasilha d’agua à cabeça foi, uma vez mais, de porta em porta. Batia, e ás vezes saía até quatro moradores com litros de água na cabeça. Foi a maior mobilização popular de penitentes que o Brejo das Almas já teve. 
Passearam pelas ruas do Brejo e depois, como sempre faziam, dirigiram-se para o Cristo no morro da caixa d’agua. Ele estava lá como sempre com seu olhar benevolente. Céu límpido e azulado. Prostraram-se. Rezaram vários terços e Ave Marias. Derramaram aos pés magnânimos daquela estátua, a água barrenta que traziam em seus humildes vasilhames. Maria, em prantos, mirava o rosto do Cristo e murmurava palavras desconexas e incompreensíveis à pobre mente humana. Uma vez mais, somente ela e Ele sabiam o que disseram, por que Ele a atendeu. Não se falaram em português. Tampouco em aramaico. Falaram e se entenderam com a voz do coração. O linguajar “cifrado” que ambos utilizaram naquela “estranha comunicação”, Brejeiros, agora, alegres e felizes, só  entenderiam no dia seguinte, que depois de um ano seco, amanhecia, finalmente, com chuvas torrenciais que se prolongaram durante toda aquela estação que foi a de maior fartura que o meu Brejo querido já viu.
É...
Por vezes, ou quase sempre, a fé que remove montanhas, acredite, é a mesma que faz chover.
E tenho dito!
*O autor nasceu no Brejo das Almas. Atua há mais de 41 anos na área de Engenharia. Publicou o livro “Liderança Conquistada”. É Colunista, Palestrante Motivacional, Historiador e Divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil. 
Se você é Brejeiro e deseja participar da seleção das melhores crônicas que serão inseridas no meu próximo livro “O Brejo das Almas em Crônicas” entre nos meus blogs e escolha. Ao final envie-me o titulo da crônica pelo e-mail: enoque.rodrigues@ibest.com.br