sexta-feira, 5 de outubro de 2012

CENAS BREJEIRAS 1 – GERMANA


CENAS BREJEIRAS 1 – GERMANA

*Enoque Alves Rodrigues

Pernas curtas e arqueadas. Andar lento e trôpego. Olhar disperso como se nenhum interesse demonstrasse a sua volta. Sol quente e escaldante não obstante estar ela, como sempre, munida de seu inseparável guarda-chuva. Andava, assim, displicente, pelas calçadas da Praça Rogério da Costa Negro, em Francisco Sá, Brejo das Almas.

-Germana!

-Oi, pode falar!

-Lembra-se de mim?

-Não, respondeu-me, secamente. – como poderia eu me lembrar de você se jamais te vi? 

-Uai, sô, como não? Sou o Noquinho, neto do “seu Liberato”, aquele velhinho de barbas brancas que se parece a um papai Noel. Você não se lembra de meu avô? 

-Não. Não me lembro. Porque haveria de me lembrar?

Aquele diálogo se parecia mais a uma conversa de bêbados. Germana, não sei por quais razões insistia em não querer se lembrar de nada. Teria, por acaso caído e batido com a cabeça? Estaria, porventura, acometida de alguma súbita amnésia? Bebeu? Sei lá!

Bem, cabia a mim, já que fui eu quem começou a conversa, procurar as melhores formas de fazê-la recordar dos meus tempos de menino, quando ela, já beirando os cinquenta, frequentava a fazenda Terra Branca, de meu avô, próximo de Cana Brava e Vaca Morta. Assim sendo, com a finalidade de tornar-me mais visível, por imaginar que talvez tivesse com algum problema de visão próprio da idade, acerquei-me um pouco mais dela. Olhei-a nos olhos, já meio turvos pelos muitos janeiros e, insistentemente, voltei a me apresentar:

-E então, Germana. Sou o neto do senhor Liberato e dona Justina a quem você visitava na época das moagens de cana no mês de Julho. Você se lembra da tia Cota?

-Cota, o que? De que diabos você está falando, homem? 

Caramba. Que coisa chata. Aquela alminha que me fora tão importante em infância, quando ela me embalava com suas lindas e antigas histórias de um Brejo das Almas envolto em épocas perdidas séculos afora, agora estava ali, diante de mim, com sua mente relutante em reconhecer-me. Bem, sendo assim não tomaria mais o seu tempo.

Despedi-me com brejeiras reverências naturais que dispensamos aqueles que tiveram o privilégio de avançarem na idade longeva. Quando eu ia me afastando lembrei-me de um velho apelido de infância. A maneira que caminhava olhava para trás. Como Germana continuava parada, no mesmo lugar, me observando, pensei: porque não voltar e me apresentar melhor? Porque não me dar uma segunda chance? E se ela me desse um esculacho? Sim, porque antigamente ela era boazinha, tranquila, mas de vez em quando embravecia. Depois quem me garantiria que ela não mudou de temperamento depois de tanto tempo?

Voltar ou não voltar? Retornar ou seguir em frente?

Retornei!

Germana continuava estática me olhando. Ao ver que eu volvia em sua direção, fitou-me mais atentamente.

Não lhe dei nenhuma outra chance. Ela tinha que se lembrar de mim. Não se surpreendam: chato é assim mesmo. Quando encasqueta com uma coisa não há nada que o faça recuar. Acerquei-me muito dela ao ponto de lhe sentir o calor da respiração. Levemente lhe afaguei o rosto com uma mão em cada lado. Suavemente puxei de sua cabeça que se aproximou ainda mais de meu rosto. Agora eu tinha que finalizar o trabalho. Era agora ou nunca. Como em meu dicionário não existe a palavra “nunca”, então, era agora.

-Germana!

-Eu! Outra vez você? Mais o que é que você quer de mim, homem de Deus?

-Diabos, Germana. Como pode você não se recordar de mim? Você foi tão importante em minha vida. A minha avó a tinha como sua irmã. Deixava-me com você que cantava para eu dormir, balançando a rede que ficava pendurada entre aqueles dois pés de frutos do conde, lembra-se?

-Não!

Tencionava não utilizar a última cartada. Não mencionaria o apelido de infância. Não queimaria o último cartucho. Mas, brejeiros, acreditem, não teve jeito. 

Como Germana permanecia indiferente a minha “insignificante figura” e por não estar nem ai para o Bonifácio, tive que apelar.

Esbugalhei os olhos, enchi e murchei as bochechas, repetidamente, assim como faz aquele vertebrado da classe dos anfíbios que habitam os brejos. Fixei mais o meu olhar ao dela e me esforçando o máximo para parecer-me, cada vez mais com o danadinho, emiti o coaxar característico do mesmo, seguido da fulminante e infalível apresentação.

-Germana, sua diaba. Eu sou o “sapo”!

Nem bem fechei a boca e já pude escutar sua estridente e gostosa gargalhada.

-Sapo?

-Eu já sabia tolinho. Só estava fingindo para força-lo a falar o seu apelido com o qual nós nos divertíamos muito quando você era menino. Por alguns instantes cheguei a pensar que devido você ter “virado engenheiro” lá em Sun Paulo, que você não fosse se lembrar de seu apelido que ainda é para nós, seu segundo nome. Aliás, para mim é o seu primeiro nome, por que “eu nem sabia que seu nome era Noquinho”.

Corrigida, de que “Noquinho” não era o meu nome, mas o diminutivo de Enoque, meu nome verdadeiro, reagiu, sarcasticamente.

-Piorou. Este sim que eu não conheço mesmo. Jamais escutei dizer que seu nome era “Enoque”. Quem diabos lhe colocou esse trem? É feio demais da conta, sô! Sempre lhe conheci por “sapo” e é como “sapo” que vamos sentar ali e conversar. Eu quero que você me fale como andam “seu Liberato” e a “dona Justina” seus avós.

Informada que os meus avós já não se encontravam mais conosco no plano visível, ponderou:

-É isso mesmo, “sapo”, as pessoas boas morrem tudo. E o pior é que quem devia morrer, de tão ruim que é não morre. Sabe quem também morreu? Dito isto me passou um longo relato dos que haviam partido do Brejo. Dava os nomes, datas, doença ou motivos da morte com uma facilidade e precisão tão impressionantes como se referisse a uma trivialidade qualquer de momento.

E eu que cheguei a pensar que Germana estivesse meio lelé da cuca!

Após uma hora de prosa, despedimo-nos.

-Fique com Deus, Germana! – Disse-lhe eu.

-Vá com Deus, “sapo”. Que Jesus te acompanhe menino, respondeu-me.

-Amém!

  É...

Por vezes, que importância tem nosso nome de batismo aos que nos embalaram os sonhos? 

E tenho dito!

*O autor nasceu em Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

sábado, 29 de setembro de 2012

CASOS DO BREJO V - CAMPANHAS ELEITORAIS



CASOS DO BREJO V – CAMPANHAS ELEITORAIS

*Enoque Alves Rodrigues

É difícil entender onde se localiza a essência dos milagres dentro dos pleitos eleitorais. Dispõem do poder de aglutinar em torno de si todas as forças ainda que em estado de letargia e obsolescência. Diria até que os pleitos eleitorais promovem milagres inimagináveis. Almas que, em eleições anteriores foram banidas da vida publica e lançadas, pelo poder do voto, ao temido fogo do inferno, ressurgem, inesperadamente, das cinzas, qual fênix, coradas e faceiras. Impressiona-me, particularmente, a força de renascimento de alguns. Mas, sinceramente, o que mais me surpreende é a maneira fácil que chega a beirar a inocência com que pessoas simples se deixam influenciar por seus iguais inclusive em nível intelectual. Promessas vazias inseridas em oratórias sofríveis, desprovidas de quaisquer conteúdos são lançadas, boca afora, aos pobres ouvidos do infeliz Cidadão, como se exequíveis fossem. Estes, atordoados, correm de um lado para outro, ou, de um comício para outro, qual barata tonta, como aquele personagem da mitologia grega que, desesperado em busca da verdade, munia-se de uma lâmpada, e saia buscando-a por toda parte, sem, contudo, encontra-la.

Talvez a melhor maneira de entendermos a eficácia de tão grande capacidade de renascimento desses “imortais”, esteja mesmo na ficção dos pastelões como as séries, “duro de matar”. Mas ater-nos-emos ao que há de bom nas eleições por que a função desta coluna é trazer informação e entretenimento aos poucos que ainda a leem, devido á maioria se achar exatamente envolvida atualmente com este tema, campanhas eleitorais, sem tempo para ler as bestagens que ainda insisto em escrever. Falemos de coisas dóceis e amenas, então.

Um dos muitos pontos decisivos das eleições são as campanhas eleitorais que são capazes de mobilizar multidões de pessoas, fomentar o consumo e injetar recursos no comércio, revolucionando toda a vida das cidades, por mais pacatas que sejam. Não fossem pelas circunstâncias já destacadas acima, de alguns, que, uma vez eleitos, divorciam-se dos planos de governo que eles próprios elaboraram e que foram responsáveis pelo êxito obtido nas urnas, dir-se-ia que existem muito mais de positivo em eleições além do que supõe nossa vã filosofia. Deixemos de lado o troca-troca, a compra de votos, o voto de cabresto, o fogo cruzado entre candidatos que nestas ocasiões se esquecem de comezinhos sentimentos de fraternidade, e mais recentemente, a lei da ficha limpa. Recordo-me de uma história que um senhor de barbas brancas que nasceu e viveu no Brejo das Almas onde faleceu com 92 anos me contava. 

Dizia-me ele:

Naqueles tempos o voto de cabresto imperava no Brejo. Todos os camaradas eram conduzidos pelos seus senhores geralmente donos de fazendas na região, para votarem na secção eleitoral que ficava no centro da cidadezinha. O voto tinha que ser dado ao candidato previamente escolhido pelo patrão. As duas únicas forças politicas exponenciais disputavam as eleições naquele ano. Os dois candidatos eram coronéis com cabedal eleitoral garimpado depois de muitos anos de labuta e bons serviços prestados à comunidade.

Marcolino de Poções não tinha patrão. Ele não trabalhava para ninguém. Ele era dono de seu próprio passe. Votava em quem queria. Bem, sendo assim, venderia bem o seu voto. Espere ai! Não, ele não se contentaria em vender o voto para um só candidato. Ganharia um pouco mais. Venderia seu voto para os dois candidatos. Ele só teria outra oportunidade daquela dali a quatro anos. Ele era esperto. Sendo assim, procurou o primeiro candidato.

- Mercê ainda está comprando voto?

- Sim, estou. Porque, você quer me vender o seu?

- Quero. Quanto é que Mercê paga?

- São duas galinhas e uma porca!

- Fechado. O meu voto será seu. Como faço para entrega-lo?

- Fácil. No dia da eleição eu estarei lá, na boca da urna, pronto para recebê-lo.

- E quando é que o senhor vai me pagar?

- Quando eu me eleger, claro! Respondeu-lhe seco, o mandachuva. 

-  E se Mercê não ganhar? Não se eleger?

- Bem, você já está perguntando demais. Isso ai já é outra história que não é da sua conta. Isso é um jogo e eu não jogo para perder. – Você vai ou não vai me vender o seu voto?

- Espere ai, lembrou-se Marcolino. E se o outro candidato também pensar igual ao senhor? E se ele também não jogar para perder? Como é que eu fico? Vou ficar na mão do calango?

Mineiro matuta. Brejeiro pensa e matuta ao mesmo tempo. Assim sendo, fechou com aquele candidato. Matutou. Pensou. Pensou. Matutou e decidiu. Iria se garantir com o outro candidato. Assim se aquele danado com quem ele se comprometeu primeiro perdesse ele não ficaria chupando o dedo. 

Foi com a língua de fora e esbaforido que ele, após utilizar-se de vários atalhos no caminho, chegou, finalmente, a casa do segundo candidato.  

Alto, magro e esguio. Vestido do mais puro brim, cáqui, calçado com botas de couro, canos longos, com chapéu panamá à cabeça, olhar tranquilo e falar manso. Sentado estava no solar de seu casarão de onde observava todo o Brejo das Almas, reduzido, naquele tempo, a um pequeno amontoado de casas. Ao avistar Marcolino, elegantemente se expressou:

- Bom dia, meu amigo. Como vai o senhor? Porventura, há algo que eu possa fazer para lhe ajudar? 

- Sabe o que é coronel! Eu vim aqui para lhe vender o meu voto. Quanto é que Mercê está pagando?

- Vender, o que, meu filho? Por favor, seja mais especifico. Não lhe entendi!

- Então, coronel, o senhor sabe que todo eleitor aqui vende o voto e que por aqui qualquer  candidato só se elege se comprar votos, já que não tem voto de cabresto para todo o mundo.

Aquele candidato olhou para Marcolino com piedade. Após fitar-lhe de alto a baixo, respondeu-lhe educadamente.

- Creio que o amigo esteja enganado. O voto deve ser dado e não vendido.  Voto não tem preço, voto tem consequência. Aliás, você nem precisa conhecer a pessoa para votar nela. O que você tem que conhecer é o seu plano de governo. Não faça de seu voto moeda de troca senão os candidatos vão fazer de você massa de manobra e posso lhe garantir que esta ciranda perversa não é benéfica nem para você tampouco para à Democracia que todos nós um dia almejamos. Não vote, jamais, em quem se propõe a comprar o seu voto. Ele não o merece.

Democracia? De que diabos aquele coronel visionário estava falando em plena década de 1920 quando a maioria das questiúnculas era resolvida à bala ou sorrateiramente?

Impossível seria mesmo entender, quanto mais explicar, não fosse aquele candidato o Coronel Jacinto Alves da Silveira que, segundo os anais da história, jamais perdeu uma eleição das muitas que disputou. 

É...

Por vezes, ou quase sempre, não é preciso se afastar dos caminhos da retidão para se lograr êxitos nas urnas. Basta que você tenha um bom plano de governo. De preferência e se possível, exequível. Porque chapéu de trouxa é marreta. 

E tenho dito!

*O autor nasceu no Brejo das Almas. Atua há mais de 41 anos na área de Engenharia. Publicou o livro “Liderança Conquistada”. É Colunista, Palestrante Motivacional, Historiador e Divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

sábado, 22 de setembro de 2012

CASOS DO BREJO IV – MARIA DE LURDES



CASOS DO BREJO IV – MARIA DE LURDES
*Enoque Alves Rodrigues
O período de estiagens que atualmente assola grande parte do Brasil, inclusive São Paulo, antes denominada, “terra da garoa”, remete-me aos longínquos tempos de minha infância no Brejo das Almas, ou Francisco Sá. Quando, cansados de sonhar com a negritude dos cúmulos que eram cada vez mais empurrados pelo vento para localidades mais distantes, punham-nos a pensar, no quanto seríamos felizes, se fossemos agraciados pela mãe “natura” com alguns pinguinhos de chuva. Ainda que fosse apenas para sentirmos o cheirinho de relva molhada que por si só, era-nos mais que suficiente para que cravássemos no chão a primeira enxadada dando inicio a mais uma tenebrosa aventura que, já sabíamos todos, antecipadamente, no que ia dar. É isso mesmo: no final, as sementes que lançávamos ao solo com as quais deixávamos de matar a fome dos barrigudinhos eram devoradas, sem dó e piedade pela “dona terra” que nada fizera por merecê-las. É a vida, meu nego, que passava lenta e inexorável, por aquelas bandas sofridas. 
Avançando um pouco mais no tempo e no espaço, ainda sou capaz de me confrontar com cenas que não faz muito tempo, integravam o cotidiano da gente brejeira, simples, ordeira e pacata: as novenas e penitências aos santos protetores do sertanejo e da lavoura.
Poderia desfilar aqui neste despretensioso espaço, que ocupo com prazer, sem receber um centavo em troca, vários brejeiros que se destacaram na arte de “fazer chover”, ou, na arte de “encherem os sacos dos santos”, que, lá de cima, na maioria das vezes, permaneciam alheios ás súplicas e clamores. Eles nem tomavam conhecimento do nosso padecer. Chuva que era bom mesmo, necas. Mas hoje me aterei apenas a um desses personagens. Prende-se esta minha predileção, a sua quase contemporaneidade, pois é possível que muitos dos que ainda habitam no Brejo das Almas o tenham conhecido, ou, quiçá, até mesmo com ele, ou melhor, com ela, convivido. 
Poderosa, voz possante e determinada. Levantava-se de manhã depois de uma noite mal dormida povoada de preocupações com a insensibilidade dos santos que não mandaram a chuva no dia anterior, e já ia logo olhando para o céu. Se seus olhinhos vislumbrassem, em algum ponto do infinito uma sombra de nuvem, ela retornava para o seu canto e esperava um pouco mais para ver se a nuvem se aproximava. Quando isso não acontecia, aquele ser maravilhoso, incontinenti, colocava sobre sua cabeça um litro com água e saia batendo de porta em porta, em busca dos demais moradores que tinham de sair de suas casas já com um litro com água na cabeça e eram quase obrigados a acompanha-la em oração em mais uma novena que invariavelmente terminava aos pés do Cristo Redentor, no morro da caixa d’agua. Lembram-se? 
Seu nome? Maria de Lurdes. Sobrenome? Nunca soube. Não obstante todo o Brejo conhecê-la como “Lú Doida”, vou me abster por questões de princípios, do ato de empregar aqui este pejorativo tratamento, até porque de “doida” mesmo, aquele divino ser não tinha nada. 
Moravam na Vila Vieira, antiga Lagoa, ali mesmo, onde o Brejo das Almas nasceu. Dali, eles, sempre com Lú à frente, saiam em novena e penitência. À maneira que avançavam pelas ruas do Brejo, aquela procissão ia aumentando. Depois, faziam uma pequena pausa no Largo da Matriz de onde seguiam rumo ao morro da “caixa d’agua” onde o Cristo, com os braços abertos para recebê-los, os aguardava com compaixão. Sob aquele olhar piedoso e manso, os penitentes em prantos e preces puxados por Maria de Lurdes, deixavam em seus pés, tristes lamentos e o mais importante, a certeza plena de que a chuva viria, ainda que tardia. Depositavam, ali, todas as suas esperanças em dias melhores, quando o sol, de preferência depois da chuva, brilharia para todos.
Naquele ano a seca estava esturricando o meu Brejo. Maçarico ligado 24 horas lá em cima. A impressão que se tinha era que os santos de Maria de Lurdes haviam virado as costas para aquela cidadezinha onde orgulhosamente nasci. O diabo é que quanto mais se rezava mais as nuvens se afastavam. Barrigas roncavam qual tambor de couro de boi velho e os caras “do alto” nem tchum. Brejeiros atônitos não sabiam mais a que santo recorrer. Desesperançados, já não queriam mais acompanhar Maria de Lurdes nas novenas. Ela que até então gozava de grande credibilidade junto aos brejeiros na arte de representa-los aos santos de sua devoção que sempre a atendiam, agora estava prestes a se desmoralizar. Não. Ela não se desmoralizaria, jamais. Sempre fora fiel. Faria o possível e até mesmo o impossível para dar uma resposta àquela gente. 
Numa noite do mês de agosto, sozinha, subiu até o Cristo. Falariam “cara a cara”. O que conversaram nunca se soube. Segredo de confessionário não se revela a ninguém. O certo é que Maria desceu do morro, renovada. No dia seguinte com sua vasilha d’agua à cabeça foi, uma vez mais, de porta em porta. Batia, e ás vezes saía até quatro moradores com litros de água na cabeça. Foi a maior mobilização popular de penitentes que o Brejo das Almas já teve. 
Passearam pelas ruas do Brejo e depois, como sempre faziam, dirigiram-se para o Cristo no morro da caixa d’agua. Ele estava lá como sempre com seu olhar benevolente. Céu límpido e azulado. Prostraram-se. Rezaram vários terços e Ave Marias. Derramaram aos pés magnânimos daquela estátua, a água barrenta que traziam em seus humildes vasilhames. Maria, em prantos, mirava o rosto do Cristo e murmurava palavras desconexas e incompreensíveis à pobre mente humana. Uma vez mais, somente ela e Ele sabiam o que disseram, por que Ele a atendeu. Não se falaram em português. Tampouco em aramaico. Falaram e se entenderam com a voz do coração. O linguajar “cifrado” que ambos utilizaram naquela “estranha comunicação”, Brejeiros, agora, alegres e felizes, só  entenderiam no dia seguinte, que depois de um ano seco, amanhecia, finalmente, com chuvas torrenciais que se prolongaram durante toda aquela estação que foi a de maior fartura que o meu Brejo querido já viu.
É...
Por vezes, ou quase sempre, a fé que remove montanhas, acredite, é a mesma que faz chover.
E tenho dito!
*O autor nasceu no Brejo das Almas. Atua há mais de 41 anos na área de Engenharia. Publicou o livro “Liderança Conquistada”. É Colunista, Palestrante Motivacional, Historiador e Divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil. 
Se você é Brejeiro e deseja participar da seleção das melhores crônicas que serão inseridas no meu próximo livro “O Brejo das Almas em Crônicas” entre nos meus blogs e escolha. Ao final envie-me o titulo da crônica pelo e-mail: enoque.rodrigues@ibest.com.br

sábado, 15 de setembro de 2012

CASOS DO BREJO III – MESSIAS PREÁ FINAL

CASOS DO BREJO III – MESSIAS PREÁ FINAL

CASOS DO BREJO III - MESSIAS PREÁ - FINAL

*Enoque Alves Rodrigues
A princípio, como vinha dizendo, Messias Antonio Dias, ou Messias Preá, estava fechado consigo mesmo que faria vistas grossas e passaria por cima daquele alforje sem toca-lo. Conteria todo e qualquer impulso que o conduzisse a curiosidade nefasta de abri-lo. Não revelaria a ninguém os segredos daquela descoberta. Por isso, conhecedor de seus desejos mais profundos e sabendo que não conseguiria, caso ali permanecesse, controlar suas vontades, afastou-se por alguns metros do local. Quando já se achava próximo ao casarão da fazenda de Antonio Miranda e Edite, virou-se em direção aquele achado e viu que ao redor do mesmo se encontravam dois sujeitos altos e fardados. Ao cruzarem os olhares, em gestos, chamaram-no.
Uma vez mais as mesmas dúvidas e incertezas do inicio se apoderaram dele. Novamente aquela ingênua e pura mente brejeira se deixava mergulhar no mundo das nebulosas.
Voltar, ou não voltar. Eis a questão!
Não. Não voltaria. Ele era um sujeito de palavra e valeria a primeira decisão. Aqueles dois “guardas-mores” que ficassem com o que houvesse naquele bendito alforje. Fosse o que fosse.
Continuou morro abaixo. Cruzou a pinguela que ali existia sobre córrego. Ganhou finalmente a estrada, hoje rua, pela qual se entra no Brejo das Almas, Francisco Sá, os que procedem de Montes Claros. Já longe, não se conteve. Voltou a olhar para cima e pode verificar que um dos guardas continuava sinalizando para ele. Agora, apontava para o alforje, olhava em sua direção e esfregava o dedo polegar ao indicador, naquele gesto mundialmente conhecido que significa grana, bufunfa ou dinheiro.
Se para um bom entendedor meia palavra basta, para ele, os insistentes gestos dos “porta-vozes” do Bandeirante Jerônimo, diziam tudo. Em seu entendimento, e ele era bom entendedor, fora ele o escolhido pelo dito cujo para ser o fiel destinatário daquele tesouro. Qualquer brejeiro menos ganancioso, portador de mediano QI teria feito a si mesmo, antes de retornar ao cume do morro do mocó, as seguintes indagações: por quais razões seria eu o escolhido por este cara a quem jamais vi mais magro? O que foi que eu fiz para merecer tamanha distinção? Será que não está havendo algum engano? Eram perguntas básicas que ele deveria ter feito. Mas não o fez. Terá tido lá seus motivos: muitos bacuris para sustentar, renda parca e outras adversidades naturais da vida, levaram-no a se sentir o dono da cocada preta. Aquela preciosa encomenda era para ser dele sim. E tem mais: era macho o suficiente para retornar lá e pegar aquele quinhão que era seu de direito.
Mesmo determinado a retornar, relutou. Titubeou. Bambeou mas não caiu. É o mineirismo se manifestando. Por alguns instantes uma sensação de medo e arrepios apoderaram-se dele. Mas ele estava decidido a voltar. E voltou...
Recebido de bom grado pelos dois senhores uniformizados, que lhe sorriam. Na sequência abriram-lhe os braços e falaram em arcaico português: nós sabíamos que você viria buscar o que é teu. O bandeirante Jerônimo que também era dono destas terras e que segue sendo nosso patrão jamais se esqueceu de quem o ajudou a conquista-las. Ele era um homem muito justo. Ele nos disse que não consegue descansar enquanto não lhe entregarmos a sua parte. Ele diz que não aguenta mais lhe ver sonhar com este tesouro. Foi por isso que ele nos mandou aqui.
Finalizadas estas palavras de gratidão, agacharam-se. Ergueram do chão o alforje e passaram as mãos de Messias Preá, que, feliz, tremia.
Antes que Messias o abrisse, ouviu dos emissários do Bandeirante um sonoro Nããããoooo. Você não está autorizado pelo chefe a abrir isso agora. Somente quando você chegar a Igreja. E tem que abri-lo na frente de muita gente. Também se faz necessário que um padre esteja presente.
Uai, sô, que recomendação mais doida aquela? Porque tudo aquilo? Agora todos iam saber que ele era rico. Não lhe deixariam em paz. Parentes jamais dantes vistos com certeza agora apareceriam. Filas quilométricas se formariam em frente a sua porta pedindo dinheiro emprestado. Bem. Fazer o que? Era o preço que ele tinha que pagar.
Despediu-se daqueles dois, agora, amigos, e rumou para o Largo da Matriz. No trajeto ele entrava em cada boteco e convidava os bebuns que em procissão, seguiam-no. Argumentava que tinha em mãos o tesouro do Bandeirante Jerônimo e a missão de só abri-lo na Igreja Matriz, na frente do padre. O que ele não sabia era que o padre que ali estava era Salú, ou, Salustiano Fernandes dos Anjos, tido como ríspido e de poucas palavras, que não levava desaforos para casa, ou melhor, para a igreja. O padre, ao ver aquela multidão de bêbados com Messias à frente, que ostentava ás mãos o alforje, a guisa de bandeira de santo, voltou-se para dentro e consultou a folhinha. Salustiano não era brejeiro, portanto, ainda não estava afeito aos costumes do lugar. Ao constatar que aquele mês não era setembro, quando se homenageia boa parte dos santos do brejo, lançou mão de um velho cabo de enxada e postou-se frente à porta. Depois de confirmar que não se tratava de mais uma coluna de bandoleiros, muito comum naqueles tempos, ficou no aguardo dos acontecimentos.
Messias arriou o alforje ao chão e chamou o padre. Relatou-lhe as circunstâncias que o levaram até ali. Depois de transmitir-lhe as palavras que ouvira dos emissários do Bandeirante, alçou do chão o alforje. Abriu-o, finalmente.
O que tinha dentro do alforje? Você quer mesmo saber? Jura que não vai ficar decepcionado com o final desta história? Ela me foi contada pelo meu avô, um ancião adventista que jamais mentiu na vida, cujo nome era Liberato. 
Jurou? 
Então lá vai...
Esterco. Sim, esterco de boi ou vaca. Sei lá! Você sabe o que é esterco? É isso mesmo. É aquela coisa seca. Só que dentro do alforje havia também uma carta. E o que dizia a missiva?
“Quase dois séculos me separam de vocês. Todo esse tempo o sono dos justos me tem sido difícil conciliar. Talvez por ter me preocupado tanto em ajuntar tesouro na terra. Por isso pretendia dividi-lo com vocês. Mas a vossa cobiça falou mais alto. O ouro em pedra, quando almejado com trabalho e humildade, com o passar do tempo vira ouro em pó. Mas se for desejado pela cobiça, ganância, intriga, hipocrisia, ociosidade e mortes, se transforma nisso aí que vocês agora tem em mãos. Rezem bastante meus filhos e depois vão trabalhar para ver se conseguem alguma coisa. Deixem-me em paz, por favor, amém”.
 
Salú, num misto de frustração e nervosismo, pois lá no fundo também tinha interesses por uma daquelas supostas moedinhas de ouro para arrumar o telhado da igreja, volveu-se porta adentro de lá não mais saindo.

Quanto aos bêbados, com Messias Preá à frente... Eles foram cantar em outras freguesias. Para os bêbados está tudo sempre muito bem. Eles não se decepcionam nunca. Desilusões são próprias dos sóbrios, avessos etílicos. Resumindo: frustrações são coisas de loucos.
É...
Por vezes, se algum achado não lhe pertence, o melhor mesmo é passar por cima e seguir adiante.
E tenho dito!
*Enoque Alves Rodrigues, que vive em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção. Atua há mais de 41 anos na área de Engenharia. É autor do livro “Liderança Conquistada”, temática simples sobre otimismo, liderança e motivação, cuja primeira edição já se encontra esgotada http://livraria.livreexpressao.com.br/catalog/product/view/id/82/s/lideranca-conquistada/ É Colunista, Palestrante Motivacional, Historiador e Divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

CASOS DO BREJO III - MESSIAS PREÁ


CASOS DO BREJO III – MESSIAS PREÁ

Enoque Alves Rodrigues

No Brejo das Almas de antigamente não há quem não o tenha conhecido. Na verdade ele pouco ia ao Centro do Brejo. Ocupava a maior parte de seu tempo caçando preás no morro do mocó. Vivia, praticamente, no topo do morro. Descia todas as tardes em direção à antiga fazenda de Antonio Miranda por onde saia para bebericar alguns pileques nos bares da região.

Messias Antonio Dias, assim se chamava. A alcunha de “Messias Preá” foi-lhe dada devido a esta prática de caçar preás. No entanto, ele era um caçador meio que às avessas, pois ao invés de caçar estes pequenos animais, pertencentes ao grupo dos roedores, para se alimentar, ele apenas os caçava por mero prazer. Ele se realizava ao vê-los cair em suas inofensivas armadilhas. Uma vez presos e imobilizados ele, curiosamente, amarrava uma pequenina fita em uma das patinhas do preá e o soltava de volta à Natureza. Antes ele tinha o cuidado de registrar em uma folha de caderno a data e o número do bichinho. Assim caso houvesse alguma repetição de o mesmo vir a cair em sua armadilha ele o soltava imediatamente, porque não mais necessitava ser “recenseado”. A sua sensação estava na primeira vez. Nada mais.

Redundante seria me estender sobre a lenda que, segundo a qual, há no morro do mocó um rico tesouro, enterrado que foi por Jerônimo Xavier de Souza. Sobre o dito cujo, muitos historiadores interessantes, de renome e projeção nacional já discorreram. Houve, inclusive, várias corridas à caça do mesmo que, no entanto, resultaram-se infrutíferas. Talvez não tenha chegado ainda o tempo necessário para esta revelação ou quiçá, o espirito deste Bandeirante, parente próximo de Joaquim José, já tenha encontrado o repouso suficiente que o tornou indiferente ás necessidades materiais mais comezinhas de pobres brejeiros, que nada desejariam, senão uma pequena parte deste imenso quinhão, cada dia mais distante.

Bem, antes que você me pergunte: E o que teria o pobre do Messias Preá a ver com isso? Pois, é. Vamos, então, partir para o “quase” epílogo desta despretensiosa crônica e no final você entenderá que, ao contrário do que imaginava, ele, Messias Preá, tinha sim, muito a ver com tudo isso, pois esta história não existiria não fosse ele seu principal personagem.

A tarde caia faceira e preguiçosa por aqueles recônditos de meu Deus. O astro rei acabava de se ausentar do Orbe, partindo para iluminar os mundos intangíveis aos nossos olhos e limitadas divagações. O clarão da lua cheia já cintilava nas águas do São Domingos. Messias houvera tido um dia “muito cansativo e enfadonho”. A caça e identificação de seus preás fora muito produtiva. Agora ele estava se preparando para descer o morro. Sairia em frente ao antigo casarão da sede da fazenda de Antonio Miranda e dona Edite e dali, ganharia as imediações. Era o que ele imaginava. Mas não foi exatamente isso o que ocorreu. 

De soslaio, visualizou algo que a primeira vista não conseguiu identificar, mas que reluzia. Brilhava um brilho azulado que resplandecia até as copas dos mais altos e frondosos arbustos. Curioso, apesar de comedido, aproximou-se um pouco daquele estranho objeto. A distância não era grande. Mas, mesmo assim, por estar um pouco escuro, não lhe permitiu definir do que se tratava realmente. Aproximou-se um pouco mais... Mais... Mais... E, zás... Lá estava um grande, e encardido alforje em couro de um boi que seguramente fora sacrificado centenas de anos antes daquela descoberta. Estava aquele alforje, ainda, sujo da terra vermelha do Brejo das Almas, ou Francisco Sá, “igual a ti, outro não há”. Isso só já era motivo mais que primordial para levar a mais iluminada das mentes a navegar por mares pródigos e alvissareiros onde patacas de ouro cunhadas nos tempos do Império tilintavam as vistas do caboclo. 

Inebriado, extasiado. São sinônimos, não importa. Era assim que ele estava. Contemplava tudo aquilo, mas não acreditava no que seus olhos viam. Estaria ele experimentando o fenômeno da segunda-vista ou dupla-vista que se trata de um efeito de emancipação da alma o qual se manifesta quando nos achamos acordados, cuja finalidade é nos fazer ver coisas ausentes como se presentes estivessem? Seria ele, Messias Preá, clarividente? Bem, se nem ele sabia possuir este dom quem dirá, eu que, nem lá estava e que, somente hoje, oitenta anos depois, me atrevo a fazer este misero relato. 

A curiosidade que matou o gato, por certo,  pensava ele, não o mataria. Á necessidade que fez o sapo pular, dele não se apoderaria. Fechara, consigo próprio, que independente do que houvesse naquele alforje, ele não tomaria conhecimento. Abdicado estava, segundo ele, de todo e qualquer desejo que o levasse a por a mão “naquela coisa”. 

Você ai que me lê, procure controlar também a sua curiosidade e espere os próximos capítulos por que só darei o final desta história após eu retornar do Brejo das Almas para onde viajo nesta semana para comemorar o aniversário de minha mãe. Não avançarei nesse caso, um milímetro sequer, antes disso. 

É...

Por vezes, ou quase sempre, saber esperar com paciência e resignação também é uma das grandes virtudes.

E tenho dito!

Enoque Alves Rodrigues, que vive em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção. Atua há mais de 41 anos na área de Engenharia. É autor do livro “Liderança Conquistada”, temática simples sobre otimismo, liderança e motivação, cuja primeira edição já se encontra esgotada. É Colunista, Palestrante Motivacional, Historiador e Divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil
.
Se você é Brejeiro e deseja participar da seleção de minhas melhores crônicas que serão inseridas no meu próximo livro “O Brejo das Almas em Crônicas” entre nos meus blogs e escolha. Ao final envie-me o titulo da crônica pelo e-mail: enoque.rodrigues@ibest.com.br

sábado, 11 de agosto de 2012

CASOS DO BREJO II - JUAREZ DE QUADROS


CASOS DO BREJO II –  JUAREZ DE QUADROS

Enoque Alves Rodrigues

Morro da Masseira - Francisco Sá, MG
Definitivamente ele estava com o burro na sombra. Nasceu numa família onde criar e vender gado de corte era tradição centenária. Assim como seu tio que vivia nababescamente, já em idade avançada, na bela Curralinho dos tempos antigos, ele também se enveredou pelos caminhos da fazenda. Depois de muita labuta e escorregões em bosta de vaca, agora ele estava colhendo os frutos que havia plantado na juventude. Deitado eternamente em berço esplêndido. Ao som do mar não, porque Minas, assim como o Brejo das Almas onde ele nasceu, não tem mar. Porque se o tivesse, certamente que o acolheria. De mais a mais, usufruía de todas as regalias ou benesses. Claro que eu sei que esta estrofe se refere a nossa Pátria Mãe Gentil e que se trata de uma exaltação ao nosso gigantismo e pujança. Ele era merecedor do que possuía. Venceu na vida sem se utilizar de atalhos. Tampouco à sombra do tio rico. Ele correu atrás. Foi à luta. Ele conseguiu.

Juarez Dias de Quadros era este o seu nome, não obstante ter feito todos os seus estudos na Capital Mineira, onde se formou em medicina, jamais quis exercer esta profissão. Aliás, no Brejo das Almas ou Francisco Sá, quase ninguém sabia que ele era médico. Importante salientar que este sobrenome “Dias de Quadros” não tem nenhuma ramificação familiar com homônima atual. O dele descendia do Pará. 

Ao seu retorno para o Brejo das Almas, seu tio Olacyr o presenteou com uma imensa fazenda.   Foi por isso que antes de prestar o juramento de Hipócrates, a inclinação para com as coisas da terra já estava em seu sangue.

Casou-se com Vanda. Nunca tiveram filhos. Com isso, tempos depois, ricos, estavam agora, Juarez e Vanda, sozinhos no casarão daquela fazenda em cujo frontispício se achava uma cabeça empalada de boi, acima da qual se lia em letras garrafais: “Fazenda Pau Preto – propriedade de Juarez e Vanda – 1932”.

Velhos e alquebrados. Tiveram o privilegio de avançar na vida e na idade. Ninguém vive sem envelhecer. Mas eles eram felizes. Plenamente? Bem! Talvez. Quem sabe. Eram. Claro, não lhes faltava nada. Esperem um pouco, sem mineirismo: Juarez e Vanda eram felizes porque tinham tudo? Ou porque não lhes faltava nada! Particularmente, se eu pudesse, não sairia da zona de conforto. Eu ficaria, por certo, com as duas alternativas. Mas sabemos que há momentos na vida em que temos que decidir. Temos que optar... 

Pois é, meus conterrâneos Brejeiros, eles se achavam felizes exatamente porque na concepção deles, não lhes faltava nada. Mas eles não tinham mais a doce sensação de levantar todos os dias de manhã e sair em busca de algo. Uai, sendo assim eles não tinham tudo. Mas também haviam passado quase todos os anos de suas vidas levantando-se de madrugada para conseguirem amealhar patrimônio que pudesse sustenta-los pelo resto da existência. E agora colhiam os frutos.

Bem, não demorou muito e o implacável senhor da razão mandou-lhes a fatura. O burro, conforme eu disse na introdução, estava realmente na sombra. Tudo que Juarez e Vanda desejavam conquistar os deuses lhes deram em dobro. Vocês já perceberam que alguns que parecem nem ter trabalhado tanto conseguem enriquecer com muito mais facilidades que outros que ralaram a vida toda? Eles venceram, é verdade, eu já disse. Mas o carnê agora chegava e tinha que ser quitado. Vinha com juros e correções.

Começou com uma dorzinha nas costas de Juarez. Algum tempo depois Vanda reclamava da mesma dor que baixou para as pernas. Transcorridos dois dias, Juarez também passou a reclamar da dita cuja nas pernas, que endureceram. As de Vanda, também. Agora passavam os dias sentados, um ao lado do outro, cada qual numa bela e bem trançada cadeira em vime. O rico patrimônio, dores e endurecimento nas articulações, somados com a falta de necessidades materiais, eram agora motivos, ou melhor, justificativas, mais que suficientes para manter aqueles dois pombinhos no ócio. Não se mexiam. Também não precisavam. Serviçais zelosos que se esmeravam aos seus cuidados dias e noites, anos a fio, estavam ali, para servi-los. 

Foi oportuna e indispensável á intervenção de pequena Plêiade que lá de cima os observava.
Dizia um deles que parecia ser o líder:

- O que são aqueles dois pontinhos escuros e imóveis, lá embaixo, no Brejo das Almas, ao pé do morro da masseira?

- Não saberia informar-lhe, Senhor. Da altitude em que nos encontramos é muito difícil distinguir alguma coisa!
- Vá lá, então. Certifique-se do que se trata e venha me contar. Não é possível: Há 10 anos, 9 meses, 25 dias, 6 horas, 33 minutos e 28 segundos que não consigo registrar em meus apontamentos um minuto sequer de trabalho daqueles dois. Mal consigo sentir a vibração dos elos que os unem a nós e que são alimentados pela força do trabalho. A continuarem assim, em pouquíssimo tempo, os elos vão se romper, e ai, eu não poderei fazer mais nada.
Foi assustadora a chegada do anjo àquelas paragens. Com o dedo em riste apontava para Juarez e Vanda, esbravejando: 

- Quem diabos vocês pensam ser? Quem foi que lhes autorizou a parar de trabalhar? Qual foi o tonto que lhes disse que vocês já estão com a vida ganha? Vocês não sabem que um ano trabalhado aqui embaixo representa somente uma hora de estadia lá em cima? Mexam-se, seus preguiçosos. Vocês estão se enferrujando e daqui a pouco não vamos mais conseguir ver vocês. O chefe mandou dizer que se vocês não se movimentarem. Não forem à luta e não trabalharem para seguirem contando pontos, ele vai “puxar vocês”!

Ai, brejeiro, não teve jeito. Quando a água bate na bunda neguinho pula. Todos querem o Paraiso, mas ninguém quer morrer. Saltaram da cadeira e retomaram a luta. Bater o ponto era preciso. 

É...

Por vezes, é quando pensamos que temos a vida ganha que mais necessitamos trabalhar. Os apontadores do além não dão moleza. Eles não dormem nunca.

E tenho dito!

Enoque Alves Rodrigues, que vive em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção. Atua há mais de 41 anos na área de Engenharia. É autor do livro “Liderança Conquistada” temática simples sobre otimismo, liderança e motivação, cuja primeira edição já se encontra esgotada. É Colunista, Palestrante Motivacional, Historiador e Divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

Se você é Brejeiro e deseja participar da seleção de minhas melhores crônicas que serão inseridas no meu próximo livro “O Brejo das Almas em Crônicas” entre nos meus blogs e escolha. Ao final envie-me o titulo da crônica pelo e-mail: enoque.rodrigues@ibest.com.br

sábado, 4 de agosto de 2012

CASOS DO BREJO I - NALDINHO E MABÉL: GEOGRAFIA E HIDROGRAFIA


CASOS DO BREJO I –  NALDINHO E MABÉL: GEOGRAFIA E HIDROGRAFIA

Enoque Alves Rodrigues

Não. Não podia ser. Aquilo não era verdade. Bem, poderia até ser real. Verdadeiro. Desde que não fosse com ele. Por acaso ele não havia se preparado a vida toda para ser um exemplar pai de família? Um ótimo professor? Optara, desde a mais tenra idade pelo sacerdócio do ensinar e agora estava ali, ouvindo aquilo. Fora, durante toda a vida um estudante aplicado. Orgulho maior de todos os seus professores que se gabavam ao chama-lo a lousa para dissertar sobre os mais variados temas. Ele deixava qualquer um de boca aberta. A sua inteligência era o que se podia classificar como privilegiada. Tinha, com toda certeza um QI de três dígitos. 

Brejeiro, nascido na Praça Jacinto Silveira, num lindo casarão onde hoje se localiza um Hotel, Agnaldo Francisco da Conceição, ou Naldinho, parecia biblioteca ambulante. Era a cultura em ebulição. Transpirava o saber por todos os poros.

Menino, ainda, conheceu Maria Isabel Dias ou Mabel nos áureos tempos de Mariquinhas. Lindos dias. Nas namorações veladas dos dois celibatários, onde um se assentava em uma ponta do banco e o outro na outra, o assunto que, pelas circunstancias naturais, tinha que versar sobre as coisas do coração, quando menos se esperava, debandava pelos campos da ciência, da astrologia, da geografia brejeira e da bacia hidrográfica que banha aqueles rincões. Era engraçado de ver. Ele, por força do hábito, Inseria, sem querer, entre as temáticas do emocional, as friezas medonhas e cansativas das ciências e coisas. Estes temas não se coadunam entre si. Era mais ou menos assim:

- Naldinho, temos que marcar logo o noivado. A mãe que está na ponta daquele banco e o pai que está na outra ponta estão me pressionando.

- Pois é, Mabel, você sabia que o rio São Domingos que nasce aqui na serra do Catuni,  desagua no rio Verde Grande? E que o rio Verde Grande divide o nosso município de Brejo das Almas do município de Montes Claros? Que a rede hidrográfica do Brejo das Almas é muito pobre devido á maioria de seus córregos secarem quando não chove? Imagine você, uma coisa, Mabel, como é que pode isso? Temos tantos córregos, veja: do lado norte temos o córrego do carrapato, o sitio novo, o ribeirão de cana brava, o córrego pau preto, o do brejão, o mamonas, o traçadal e o rio quem-quem que passa na fazenda Terra Branca do “seu” Liberato. Sem falar do grande rio gorutuba com suas belíssimas praias de areias que banham o povoado do Catuni. Já do lado Sul, nós temos outro montão de córregos, como, o rio boa vista, vaca brava, o córrego dos patos, o rio caititu, o rio da prata e o córrego rico. E as nossas lagoas? Você já imaginou quantas são? Mouras, da barra, da prata, das pedras, lagoa nova. E a lagoa do tabual... E mesmo assim, tudo isso seco... Já imaginou?

- Então, Naldinho, o que você me diz do nosso casamento? 

- Interessante mesmo Mabel, não é a nossa hidrografia, mas sim, a nossa geografia. Veja: você sabia que o nosso município se situa na bacia do rio São Francisco? Que o nosso vasto território fica  no vale médio do verde grande? Que somos limítrofes, ao norte com Grão Mogol. Ao sul com Montes Claros e Capitão Enéas. Ao leste com o município de Juramento e a oeste com Janaúba? Que estamos distantes de Belo Horizonte 480 quilômetros? Que a nossa área territorial compõe-se de 2.749.393 quilômetros quadrados? Que a nossa densidade demográfica gira em torno de 9.5 habitantes por quilômetro quadrado, sendo 49,5% de homens e 50,5% de mulheres? Você sabia que o nosso município de Brejo das Almas seria maior hoje não fossem as duas grandes mutilações que ele sofreu para “dar a luz” aos municípios de Janaúba e Capitão Enéas? Sabia que o nosso município tem vida própria e é habitado por um povo laborioso, pacato, de hábitos simples e hospitaleiro o que muito dignificam as nossas origens? E o que você me diz, Mabel, de nossa altitude de 667 metros acima do nível do mar? E sobre as nossas coordenadas geográficas de 16º’27’00 de altitude sul e de 43º’28’00 de longitude WGr? E o nosso fundador, Seu Jacinto. Você já leu alguma coisa sobre ele? E os nossos ancestrais? Você já imaginou como o Bandeirante Antonio Gonçalves Figueira conseguiu chegar por nossas terras?

Bem, convenhamos que o “papo firme” do amigo Agnaldo, que, aliás, não possuía em nenhuma parte de seu bojo uma pitada sequer de romantismo, destoava, inteiramente, do que a bela brejeira Mabel queria ouvir. Se ele tivesse ao menos falado das matas, dos pássaros e principalmente das flores silvestres que cercam e ainda perfumam a minha terra, poderia ter recebido um desconto. Mas desta vez a sua mente iluminada o traíra. Ele não falou das flores. E, por não ter ele falado das flores estava agora ali, no veneno, literalmente “no brejo”.   

Era exatamente por isso que ele agora se amaldiçoava. Maldizia a sua sina. Não acreditava no que lhe reservara o destino. Lamentava, conforme o encontramos na introdução destas mal traçadas linhas. Levara um tremendo pé no traseiro que o deixou desnorteado. Desiludido, abandonou numa esquina qualquer do Brejo o sonho de ser professor. Casar, constituir família e viver uma vida simples, mas, tranquila e sossegada, a beira do rio. Rio? Não! Isso não... Foi exatamente por falar tanto em rios, córregos, lagoas, altitudes, longitudes, densidades, extensões territoriais e o diabo a quatro, era que ele agora estava ali, sozinho. Sem o amor de Mabel. Ele teria que viver em algum lugar que não fosse o Brejo das Almas, e, de preferência, onde não existisse nada que o fizesse recordar da dor da perda de sua Mabel. Pensou. Repensou. Matutou. Ruminou e não chegou a nenhuma conclusão. Bem... Chegou, sim. A de que na terra ou em qualquer lugar sobre ela, não existiria nada que o fizesse olvidar aquela desilusão. Num misto de fraqueza, coragem e covardia, tomou a pior e mais abominável das decisões. Encontramo-lo, agora, vagando sem rumo pela crosta sem poder subir ou descer. Lá não há elevador nem ascensorista.  Coitado, percebeu, tardiamente, que nem mesmo aquele seu tresloucado gesto de “bravura” conseguira liberta-lo do peso da culpa pela perda daquela paixão transitória. Muitíssimos anos depois, em idade avançada, partiu do Brejo a bela Mabel em direção ao Infinito. Não. Não se encontraram. Eles transitam por vibrações diferentes cuja distancia, um do outro, nenhuma medida astronômica conseguiria mesurar. Enquanto isso, aqui em baixo, no velho campo santo do Brejo das Almas, ou Francisco Sá, até bem pouco tempo atrás, por coincidência ou obra do destino, seus corpos jaziam, quase numa mesma cova, um ao lado do outro. Foram colocados ali, involuntariamente. Será?

É...

Por vezes, ou quase sempre, nem tudo que está junto na terra significa que esteja também junto no Céu.

E tenho dito!

Enoque Alves Rodrigues, que vive em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção. Atua há mais de 41 anos na área de Engenharia. É autor do livro “Liderança Conquistada” temática simples sobre otimismo, liderança e motivação, cuja primeira edição já se encontra esgotada. É Colunista, Palestrante Motivacional, Historiador e Divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil. 

Se você é Brejeiro e deseja participar da seleção de minhas melhores crônicas que serão inseridas no meu próximo livro “O Brejo das Almas em Crônicas” entre nestes sites e escolha. Ao final envie-me o titulo da crônica pelo e-mail: enoque.rodrigues@ibest.com.br