sábado, 25 de junho de 2011

MINEIRISMO BREJEIRO – MANÉL DE VOVÓ

MINEIRISMO BREJEIRO – MANÉL DE VOVÓ

Enoque Alves Rodrigues

Antigo proprietário de bar em Francisco Sá, Manél de Vovó era muito conhecido e famoso devido ao esmero com que preparava suas garrafadas de pingas, nas quais adicionava desde raízes de vegetais do serrado brejeiro até a bela cobrinha coral, que dava um tom colorido às garrafas, quase sempre brancas.
A cachaça era curtida com aquelas exóticas misturas durante várias semanas. Depois, eram servidas em doses generosas, aos tropeiros cansados que pairavam naquele bar confortável, tendo a frente o manguezal do Clovão, com fartas pastagens verdejantes para suas montarias.
Ali era o que se poderia chamar de “o paraíso dos tropeiros”. Enquanto lá fora, os muares degustavam os brotos ainda em formação do legitimo capim colonião, dentro do bar de Manél de Vovó, na verdade um barraco de madeiras que ficava bem na saída da Cidade, à beira da estrada principal de acesso a todos os confins do norte de Minas Gerais, seus donos, os tropeiros, faziam a festa.
Manél de Vovó, um senhor já de meia idade, moreno, alto, que possuía somente um braço, não me lembro qual, era ágil na alquimia das garrafadas além de exímio cozinheiro, que preparava pratos saborosos que segundo a própria freguesia comentava, também eram afrodisíacos, quase sempre compostos por ovos de codorna e sarapatel, acompanhados de arroz branco, feijão de corda e farinha de mandioca. Era este o prato do dia, ou melhor, de todos os dias. Como sobremesa, casadinhos de queijos com marmelada que ficavam em um prato sobre o balcão. Vinha gente de diversas regiões, de todos os lados para saborear as famosas iguarias do Bar de Manél de Vovó. Enquanto os muitos bares do Brejo das Almas se achavam às moscas, a espera de um mísero freguês, amargando prejuízos pelas crises seguidas que naqueles tempos grassavam o Norte das Gerais, Manél não tinha do que se queixar. Seu bar vivia sempre cheio, todos os dias. O burburinho era intenso. Copos e mais copos de cachaça com cobras e raízes eram servidos à guisa de aperitivo enquanto a clientela mordiscava crocantes torresmos e pernas de galinha, no aguardo, sem nenhuma pressa, do rango principal que fumegava numa preta panela de ferro, sobre um fogão de lenha com fogo preguiçoso. Flores de aboboras como eram chamadas as antigas notas de um mil cruzeiros, quase inexistentes para as mãos dos simples e mortais brejeiros, reluziam aos montes nas mãos de Manél de Vovó. Contava-as assim como se contavam centavos. Ele merecia o sucesso. Ele trabalhava. Mas todos também trabalhavam e não prosperavam. Manél, quem sabe, ao nascer, fora bafejado pela sorte. Será?
O certo é que Manél conhecia o caminho das pedras. Como bom comerciante tinha que agradar a todos; ainda que para isso, tivesse que praticar o mais puro e autentico mineirismo. Isso ocorria sempre que ele queria se esquivar de uma venda na base do “fiado”, sem se correr o risco de perder o freguês. Mas também sabia ser áspero com os maus pagadores.
- Antonces, seu Manél... - Dizia um freguês no intuito de justificar o atraso de pagamento de um fiado para contrair novas dividas.
- Eu não me esqueci daquela continha que fiz com o senhor no ano passado...
- Não se esqueceu, mais não pagou. Se queres beber e comer de novo, primeiro tem que pagar! Não estou aqui para trabalhar de graça, não!
- Seu Manél, “sorta ai um rabo de galo e um “torremo”, que eu lhe pago no dia 30 de fevereiro  –brincava um engraçadinho”.
- “Trinta de fevereiro está muito longe. Só lhe vendo se for para pagar no dia 28”. – Respondia, Manél, sério.
- Seu Manél... “Sua cumida é muito gostosa, mas o pissoá aí fora anda dizeno que ocê está guardano sobras de cumida véia pra vendê pra nóis outra vêis. Isso é divéra?”
- É intriga da oposição, respondia Manél: Quem espalhou essa mentira foram os donos de bares do centro do Brejo, revoltados com o meu sucesso...
- Manél... Esse torresmo está muito pequeno. Você vai acabar cortando o dedo da mão que você não tem.
- Então espera o bacuri crescer e virar porco. Não faço milagres...
- Seo Manél... Os “ovo de cadorna” que o senhor me serviu “está” muito pequenos.
- Vá reclamar com o “fiofó” da codorna ou então coma ovos de galinha que são “mais grandes!”
- Mas ovo de galinha não dá sustância e lá na casa da Salomé, num tem cunversa. Eu tenho que chegar com os quatro pneus calibrados. Num posso passá vregonha.
- Isso já não é problema meu, retrucava Manél. Se você não tem como dar conta do recado, fique por aqui mesmo, comendo e bebendo, porque você é um bom pagador e o meu negócio vai agradecer!
Certa feita, munido da curiosidade peculiar aos adolescentes, estava eu a observar a agilidade e destreza com que Manél de Vovó, apenas com um braço, cortava os queijos e marmeladas para fazer os apetitosos casadinhos.
Não, aquilo não era possível!
Ou era...
Seria ilusão de ótica ou estou bêbado?
Não...
Uai, mas eu jamais bebi em toda a minha vida!
Então, o que era aquilo?
Será que os meus lindos olhinhos estão me traindo?
Simples e elementar meu caro Enoque, diria a voz da minha consciência: O querido amigo Manél, em sendo desprovido de um dos braços, não teria outra maneira mais eficaz, apesar de pouco ou quase nada higiênica, de realizar a necessária tarefa da retirada dos resíduos da marmelada da faca antes de cortar o queijo e vice-versa, senão com a própria língua. Que outra forma você acha que ele teria para limpar a faca, bobinho?
O certo é que daquele dia em diante jamais retornei ao bar do Manél de Vovó para comer casadinhos.
É...
Por vezes, é melhor viver enganado que conhecer a verdade. É como dizem os Espanhóis: “La verdad, duele”
E tenho dito!
Enoque Alves Rodrigues, brejeiro de nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia, é Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá,  Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil. Visitem meu blog: Pra variar, é sobre Francisco Sá: http://enoquerodrigues-earodrigues.blogspot.com/

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