sábado, 3 de março de 2012

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – WENCESLAU, MANDINGUEIRO.

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ – WENCESLAU, MANDINGUEIRO.

Enoque Alves Rodrigues

Quando em 1914 o pequeno Orfanato particular que era mantido pelo Padre Augusto Prudêncio da Silva, em Francisco Sá, Brejo das Almas, atingiu a marca de 74 (setenta e quatro) pequeninos abandonados à própria sorte e que agora encontravam guarida no seio daquele coração misericordioso, coincidentemente ou não, sem que se soubessem ao certo de onde veio, “brotou”, ali, na antiga Rua da Amargura ou Rua do Padre, ou especificamente naquele simples Orfanato, um negro alto, feio, de pele áspera e olhos vermelhos esbugalhados, de andar ziguezagueante. A princípio aquela imagem aparentemente sinistra e ameaçadora, causou um verdadeiro rebuliço a todos. O próprio Padre Augusto, que  nada temia, até porque como é de conhecimento de todos, mantinha relações muito estreitas com o mundo invisível, se assustou. Sua Reverendíssima na verdade não gostava de surpresas. Por isso indagava a si mesmo: Quem quer que tenha enviado aquele negro à sua porta teria por obrigação avisa-lo antes. Sim, por que o negro Wenceslau chegou até a casa do Padre com endereço certo. Viram-no, inicialmente, em frente ao velho mercado com um pequeno e amarelado pedaço de papel à mão. Ali notaram que alguém apontava para a direção da Rua da Amargura. Não haveria dúvida, aquela “aparição” repentina tratava-se de uma encomenda. De um presente. Bem, se se tratava de um presente que não fosse de gregos. Não haveria outra forma de saber senão perguntando. A curiosidade que “matou o gato” agora atazanava a vida do Padre. Ele queria saber de onde viera o negro Wenceslau, mas não queria constrangê-lo com perguntas e indagações inoportunas, até porque ele tinha isso como principio. Ajudava a todos sem sequer perguntar de onde veio ou quem foi que o abandonou. O Padre Augusto sobre quem tive o privilégio de dedicar várias crônicas era exatamente assim. Um santo na terra, diziam todos que o conheciam. Fazia tudo em beneficio dos menos favorecidos, muitas vezes em detrimento de si próprio. Quando  a Igreja de Roma não era a potência econômica que é hoje, ele deixava de comer para repassar o seu pão a uma boca mais necessitada e esfomeada. O Padre Augusto era incondicionalmente comprometido com as massas desfavorecidas pela sorte. Era, guardadas as devidas proporções, um São Vicente Brejeiro.

Durante uma semana o Padre manteve-se calado. Apenas observava as atitudes do negro Wenceslau. Quanto mais o observava mais curioso ficava. Sim, porque o negro por possuir idade aproximada de dezoito anos era mantido apartado dos pequenos onde a faixa etária atingia os 14 anos. Ele dormia numa pequena edícula nos fundos.

Wenceslau levantava-se de seu catre e já catava uma vassoura. Punha-se a varrer todo aquele casarão. Quando terminava a varrição, corria de espanador e pano em punhos a limpar os móveis rústicos. Terminada esta tarefa ia até a cozinha oferecer seus préstimos no preparo da comida. Quando tudo estava pronto, pegava os pratos que estavam sobre as mesas diante de cada menino e servia-os. Depois disso servia o Padre que tinha como hábito alimentar, primeiro se servir de um bom e fundo prato de sopas de legumes para só depois passar ao prato principal. Somente após servir a todos é que o negro Wenceslau se servia. Mesmo assim, pegava o seu pratinho e se dirigia a um dos cantos da sala. Nestas ocasiões era sempre repreendido pelo Padre que se levantava de seu lugar à mesa, geralmente na cabeceira e, de braços dados com o negro Wenceslau, levava-o até a outra cabeceira da mesa, onde fazia questão de que ele de assentasse, após lhe aplicar pequeno sermão: “Este lugar é seu por direito. Você não é aqui escravo de ninguém. Se você tem o trabalho de se dedicar a tudo e se esmerar para que tudo saia bem, você tem também o direito e a obrigação de usufruir.”

Não demorou muito e Wenceslau ganhou as graças de todas as crianças. Fruía, agora, de toda a confiança do Padre Augusto que, já meio cansado e alquebrado pelos anos, cuidava daqueles pequenos com certa dificuldade. Dotava-os de conforto alimentar pífio, que as sobras parcas da descapitalizada gente Brejeira permitiam. Não tinha mais pique para fazer gracinhas. Até porque isso não era o seu forte. Mas o negro não. Ele estava em plena flor da idade. Com todo o gás e cheio de vontade de animar aquele Orfanato com cara de velório. O Padre sentia que faltava alguma coisa para aquelas crianças. O Padre sabia que ninguém vive só de comida, bebida e estudo. Faltava alegria. Faltava motivação. Faltava entusiasmo. Wenceslau fez uma careta. A molecada caiu na gargalhada. O Padre franziu a testa. Wenceslau recolheu-se. No dia seguinte Wenceslau puxou as duas orelhas de um dos moleques. Balbuciou alguma coisa aos ouvidos e com trejeitos símios, com uma careta assustadora começou a grunhir. Todos caíram na gargalhada, inclusive o Padre. Pronto, o sorriso do Padre era a senha que Wenceslau queria. Era a assinatura da autorização que ele necessitava para daquele dia em diante tornar a vida daquele pequeno Orfanato a mais alegre possível. Definitivamente, lançava-se ali, naquele momento, os “pródromos de uma nova era.”  A era da alegria.

Wenceslau Bispo dos Santos, ou “azar”. Era esse o seu nome e apelido. Veio na verdade de Taiobeiras, na região. Não conheceu os pais. Vivia com uma avó que ao falecer, levou-o a perambular pelas estradas que davam no Brejo. O “azar” que ele fazia questão de incorporar ao seu nome, segundo ele próprio informava, era porque não tivera a sorte de conhecer os pais que segundo lhe dissera a avó, morreram de paludismo. Ele era feio de doer. Nem precisava fazer caretas. Mas era um verdadeiro templo de simpatias e cordialidades. Fazia graça com tudo. Brincava com todos sem jamais ser grosseiro. Tinha uma piada para cada menino. Visitantes do Padre eram alvos de suas brincadeiras. Até mesmo o Coronel Jacinto Silveira, meio sisudo, por natureza, recebia com sorrisos os seus gracejos. Era ele especializado na arte da mandinga inocente. No entanto ele só as realizava a pedido dos internos quando o Padre Augusto não estava por perto.

Certa vez todos os meninos se acercaram da mesa, pois “Azar” ou Wenceslau, ia fazer o número do ovo. Consistia no seguinte: ele deixava um ovo na cabeceira da mesa e se assentava na outra cabeceira de onde, gesticulando com as duas mãos e proferindo frases aparentemente desconexas, ordenava que o ovo rolasse até ele. O ovo que a primeira vista se achava imóvel, de repente começava a mover-se e dali a instantes estava na outra ponta da mesa. Nas mãos de “Azar.”

De outra feita tentou repetir a façanha. Toda a petizada ao redor da mesa. “Azar” tomou seu lugar costumeiro na cabeceira. Na outra cabeceira estava o ovo. “Azar” iniciou seu ritual com palavras incompreensíveis aos mortais. Contorcia todo em jeitos e trejeitos. Fazia diabólicas caretas. Acenava para o ovo. Em habitual gesto de chamamento para si num abrir e fechar de mãos e o ovo, nada! Permanecia inerte. Mortinho da silva. Por mais que ele se esforçava, o ovo não se movia. Os pequenos infantes já se desesperavam. Sedentos estavam para verem uma vez mais aquele ovo, qual morena faceira, partir em direção aos braços do feio Wenceslau e finalmente pousar em suas grossas mãos. Lamento informa-los mais desta vez a coisa, literalmente, não rolou. Ovo parado não tem graça. Empacou qual jumento baiano. Ninguém o faria mover-se. Total decepção.

Foi quando o pobre do “Azar” levantou a cabeça. De soslaio visualizou em meio a multidão de moleques dois enormes olhos azuis. Percebeu também que o rosto ao qual pertenciam aqueles grandes olhos era de há muito, dele conhecido. Fixou-se um pouco mais e constatou vasta cabeleira branca à guisa de véu. Era sim. Era ele mesmo. Era o Padre Augusto, o “dindinho” como o chamavam. Ele estava ali presenciando a cena. Não devia...

Num misto de assustado, envergonhado, decepcionado e constrangido, “Azar” que jamais antes houvera pronunciado qualquer palavra destoante de sua vida simples de matuto agora afinado até a medula com as cousas dos santos evangelhos,  não conseguiu se segurar. Fixando o olhar vermelho no Padre entre a molecada, começou a se justificar aos gritos.

- Diabo! Capeta! Inferno! Agora eu descobri porque este maldito ovo não me obedece. É porque  Sô Padre está ai no meio de vocês, diabos! Na frente dele o ovo não anda. O ovo só anda quando ele não está por perto!

O Padre olhou-o com piedade e brandura. Depois de lhe sorrir, agora foi sua vez de lhe tirar uma casquinha. “Pois é, meu bom “Azar”, eu só estava querendo lhe ajudar.”

- Desculpe Sô Padre, mais eu não sei “que diabo” o senhor tem nos olhos que não permite que o ovo ande.

- Engano seu, meu querido, disse-lhe o Padre, sente-se no seu lugar e chame o ovo, novamente!

Assim foi feito. O ovo sem maiores delongas andou. Caiu nas mãos do negro Wenceslau, o “Azar”. Agora  com os olhos mais esbugalhados que nunca. Assustadíssimo. Em vias de sair correndo.

- “Cruz Credo... Por mil demônios. Esse Padre é o capeta mesmo!”

Para o Padre que só queria ajudar a  emenda saiu pior que o soneto.

É...

Por vezes, dizia um certo William, há muito mais coisas entre o Céu e a Terra além do que supõe nossa vã filosofia.

E tenho dito!

Enoque Alves Rodrigues, brejeiro de nascimento e convicção, que atua na área de Engenharia, é Escritor com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

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